Consumado o golpe, o pais tinha um poder real, representado pelos chefes militares, e um poder formal encarnado pelo presidente do Congresso, Rainieri Mazzilli, que dava aparência de normalidade política ao processo.
As “instituições” seguiam funcionando, como diziam.
Os generais insistiam no discurso do “golpe preventivo” e, por um certo tempo, acreditou-se que eles voltariam aos quartéis.
“Todos nós achávamos que era uma questão de dias”, disse depois o ex-prefeito Sereno Chaise, um dos primeiros a ser preso, em Porto Alegre.
“Brizola, escondido num apartamento no centro de Porto Alegre, na primeira semana ainda fazia planos para voltar a ocupar sua cadeira de deputado em Brasília”.
O primeiro “ato institucional”, estabelecendo punições aos “inimigos da revolução”, deveria ser o único e inicialmente foi cogitado como uma medida do Congresso, uma “quebra momentânea da normalidade” para poder afastar os indesejados – subversivos e corruptos.
Foi editado no dia 9 de abril de 1964: eleição indireta para presidente, prazo para cassação de político e exoneração de funcionários.
No dia seguinte sai a lista com os primeiros cem cassados políticos, começando por Luiz Carlos Prestes, João Goulart, Jãnio Quadros, Miguel Arraes, Darcy Ribeiro e encerrando com José Anselmo dos Santos, o controvertido “Cabo Anselmo”.
Em seguida começaram as prisões e cassações em todo o país.
Violência continuada
As tropas que marcharam de Minas não precisaram dar um tiro para derrubar o presidente.
Mas as tentativas de prisão e a repressão a manifestações populares resultaram em sete mortes no país, já no dia primeiro de abril.
No dia 4, um crime hediondo foi encoberto: o tenente coronel Alfeu Monteiro que apoiava o governo de João Goulart, foi metralhado na sala do comando da Base Aérea de Canoas, no Rio Grande do Sul.
Em Recife, o líder comunista Gregório Bezerra foi amarrado a um jipe e arrastado, só de calção, pelas ruas.
Em 6 de maio, um memorando do Departamento de Estado Dos EUA à Casa Branca calcula que os presos naquela data eram “pouco mais de cinco mil”. Nas embaixadas havia filas de pedidos de asilo.
Os jornais publicam listas de “políticos cassados”, “funcionários exonerados”. Milhares de militares são expurgados das Forças Armadas.
Casos de morte são encobertos. Eduardo Barreto Leite, sargento do Exército, pulou do sétimo andar de um prédio no Rio, no mês de abril de 1964. A família nunca aceitou a tese de suicídio. O zelador disse que ele foi arremessado por cinco homens que invadiram o seu apartamento.
O capitão Darcy José dos Santos Mariante apoiava o PTB de Jango e Brizola. Preso e torturado no 1º.Batalhao da PM em Porto Alegre em 1965. Em 1966 suicidou-se com um tiro na frente da família.
O jornalista Elio Gaspari anota 13 mortes ao longo de 1964, entre elas a do sargento Bernardino Saraiva “que se matou com um tiro na cabeça depois de ferir um soldado da escolta que fora prendê-lo em São Leopoldo”no dia 14 de abril.
A lista de militares cuja morte não foi esclarecida tem 27 nomes, cinco do Rio Grande do Sul.
A partir de 1968, quando “o regime assumiu sua natureza ditatorial”, com o AI5 , a violência dos primeiros eventos de 1964 foi sendo esquecida, como se fossem casos pontuais, acidentes de trabalho.
Na verdade, a violência contra os vencidos era intrínseca e continuada, desde o início: “As torturas foram o molho dos inqúeritos levados a efeito nos desvãos do DOPS ou dos quartéis… Castello foi fraco,” registra o general Olympio Mourão Filho, ao tempo em que era ministro do STM.
Era pouco
Castello Branco ficou 32 meses na presidência. Assinou três atos institucionais, 37 atos complementares, cassou cerca de 500 pessoas e demitiu 2 mil.
Era pouco. Quando já estava fora do poder, Castello confidenciou a seu ex-lider no Senado, Daniel Krieger: “Um grupo dentro do atual governo deseja partir para a exceção e a ditadura”.
Foram três levas de cassações de mandatos e direitos políticos. Primeiro os notórios “subversivos” e “corruptos”. Não ficava claro quem era quem. Preso nos primeiros dias, o deputado Wilson Vargas ainda tinha humor para brincar com quem ia visitá-lo na prisão: “Aqui tem corruptos e subversivos, eu sou subversivo”.
Depois foram cassados os grupos submetidos a inquéritos policiais militares, depois as cassações puramente políticas, em que os punidos não sabiam de que eram acusados.
Nesse ciclo se inserem as oito cassações de 1966, feitas exclusivamente para dar maioria ao governo na Assembléia Legislativa, que acabou elegendo o coronel Peracchi Barcelos ao governo do Rio Grande do Sul.
No Rio Grande do Sul, a primeira lista de cassados saiu a oito de maio, com o nome de cinco prefeitos do PTB. Estava no Diário Oficial, ato do presidente, e ninguém sabia o que fazer. “Fui para a prefeitura fiquei esperando, não veio ninguém”, conta Sereno Chaise, recém eleito prefeito de Porto Alegre. Dias depois foi preso por um mês sem que lhe acusassem de nada.
A escola que foi presídio
A escola que serviu de prisão nos primeiros meses do regime militar, está assinalada com uma placa e uma inscrição.
O ato ocorreu no exato dia 23 de abril de 2014, para marcar o dia em que, há 50 anos, entraram ali os primeiros sargentos da Brigada Militar, removidos das prisões nos quartéis, onde se temia uma reação dos nacionalistas/brizolistas.
A escola, recém-construída na época, por falta de equipamento estava sem uso. Foi transformada temporáriamente em Presídio Militar Especial. Funcionou oito meses como prisão política. Atualmente é o Grupo Escolar Paulo da Gama, onde estudam 1.400 alunos em dois turnos.
Sete sobreviventes e três viúvas, dos 86 militares que ali estiveram encarcerados, compareceram ao ato simbólico, dirigido pelo presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair Kritschke, e com a presença do prefeito de Porto Alegre, José Fortunati.
A placa foi decerrada na calçada à frente do prédio, número 555 da rua Silvado, no bairro Partenon. O intenso tráfego de veículos no local perturbou a rápida cerimônia, mas não tirou a emoção dos relatos e a veemência dos discursos de fé democrática.
Aos 86 anos, o coronel Emilio Neme, ex-chefe da Casa Militar de Brizola, era o centro das atenções. Amparado por um andador, era abraçado com emoção pelos antigos comandados. “Tudo o que nós fizemos foi defendendo nosso país. Nós arriscamos a nossa vida!”, explicou o coronel.
Ao seu lado o filho, Sérgio, que com dez anos o visitava na prisão, lembrou: “Eu via ele aqui, ficava com medo, não sabia o que estava acontecendo”.
Em entrevista ao Jornal do Comércio, o capitão Reginaldo Ives da Rosa Barbosa contou que 50 anos após sua prisão, ainda carrega cicatrizes de baioneta em suas costas. Lembrou seu tio Danilo Elizeu Gonçalves, já falecido, preso junto com ele. Sua filha, Dalila Gonçalves, presente ao ato, chorou. A diretora da Escola, Nilse Christ Trennetohl, ficou emocionada durante a cerimônia. “É difícil, mas um lado se alegra, pois é muito bom que agora se possa falar”.
A placa identificando a antiga prisão é parte do projeto Marcas da Memória, do Movimento Justiça e Direitos Humanos com a prefeitura de Porto Alegre, para identificar todos os locais que serviram para prisão e tortura durante a ditadura.
Alguns números
1964 e 1966:
• Cerca de 2 mil funcionários públicos foram demitidos ou aposentados compulsóriamente
• 386 políticos tiveram seus mandatos cassados por dez anos
• 421 oficiais foram punidos com passagem compulsória para a reserva, transformando-se em mortos vivos, com pagamento de pensão aos familiares
• Outros 200 oficiais se retiraram, 24 generais foram expurgados
• Nos sindicatos e associações foram expurgadas um total de 10 mil pessoas
Ao encerrar suas atividades, em novembro de 1964, a Comisão Geral de Investigações divulga os seguintes números:
• 1.110 processos envolvendo 2.176 pessoas.
• O IPM sobre a Rebelião dos Marinheiros, indiciou 839, levou 284 a julgamento e terminou com 249 condenados, “todos com penas superiores a cinco anos de prisão”.
Os cassados no RS
Em 8 de maio de 1964, além dos cinco prefeitos, também foram presos e tiveram seus mandatos cassados oito deputados estaduais e 12 suplentes, todos do PTB:
• José Lamaison Porto
• João Caruso Scuderi
• Wilson Vargas da Silveira
• Justino Costa Quintana
• Antonio Simão Visintainer
• Breno Orlando Burmann
• Rubem Dario Porciuncula
• Suplentes: Hélio Carlomagno, Edson Medeiros, Jair de Mora Calixto, Nelson Amorelli Viana, Guilherme do Vale Tonniges, Bruno Segala, Fulvio Celso Petracco, Vicente Martins Real, Carlos Lima Aveline, Alberto Schroetter, Jorge Alberto Campezatto e Otomar Ataliba Dillenburg.
Isso foi só o começo.
(Textos publicados originalmente na Revist JÁ )