Acorda Rio Grande (5)

Tratadas como “boas notícias”, neste cenário de guerra do pós-enchente no Rio Grande do Sul, duas medidas anunciadas nesta terça-feira indicam a visão de curto prazo, de quem toma providências paliativas.

A longo prazo, ambas são “más notícias” para o Rio Grande do Sul.

A primeira, anunciada pelo governador Eduardo Leite,  é a suspensão do pagamento da dívida que o Rio Grande do Sul tem com a  União.

O governador disse que o acordo representa “um “alívio” nas contas do governo Estadual, de 11 bilhões de reais..

Esse “alívio” é relativo, porque há sete anos o governo gaúcho não paga as parcelas da dívida com a União. Os pagamentos iriam recomeçar a partir da renegociação com o Tesouro Nacional, agora concluída com a suspensão, por conta da enchente. .

Com a suspensão por três anos, Leite salva seu mandato e empurra com a barriga uma situação insustentável, uma dívida impagável que foi gerada por contratos lesivos ao Estado.

Era uma dívida de R$ 9 bilhões em 1997, quando foi renegociada pela primeira vez. Depois de ter pago algo como R$ 60 bilhões,  nos últimos sete anos, o Estado deixou de pagar as parcelas.  Mas o saldo devedor supera os  R$ 95 bilhões.

Ao aceitar a suspensão por três anos, sem questionar as condições de pagamento da dívida, Eduardo Leite livra seu mandato, mas empurra com a barriga um problema estrutural e perde a oportunidade de uma revisão nos fundamentos dessa dívida que, segundo estudos já feitos na Assembleia, já foi paga. Deixa uma bomba-relógio para o próximo governo.

Já o prefeito Sebastião Melo anunciou a contratação de uma “consultoria internacional” para gerir a reconstrução da capital arrasada pelas águas do Guaíba.

O prefeito, segundo ele mesmo disse, foi procurado pelo diretor no Brasil da Alvarez & Marsal, que é gaúcho,  e se prontificou. Nos primeiros 60 dias, a consultoria não cobra nada, depois haverá um contrato. Algumas concessionárias de serviços públicos, como a Equatorial,  já manifestaram seu apoio ao projeto.

A Alvarez& Marsal é uma consultoria americana que tem escritório no Brasil desde 2004.  Suas especialidades são as soluções corporativas, reestruturações financeiras, gestão empresarial.  Suas credenciais para assumir a gestão da reconstrução de Porto Alegre seriam suas atuações no desastre provocado pelo ciclone Catrina, em Los Angeles, e na tragédia de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais.  Mas essas “atuações” são questionadas e sequer aparecem no site da empesa.

Sejam quais forem as qualificações da A&M para atuar em desastres climáticos, sua contratação pela prefeitura de Porto Alegre  sinaliza para o caminho das soluções paliativas, pontuais. Qualificar os quadros técnicos existentes e preparar a estrutura pública, não só para  reparar os estragos de agora, mas para uma ação permanente de prevenção e redução de riscos, seria o prioritário, numa visão de longo prazo.  Em vez disso, contrata-se uma consultoria, que vai se valer do conhecimento local para montar um plano de gestão da crise e, depois da crise, quando termina seu contrato, ela vai embora, levando a expertise em seu port-folio.  Voltará na próxima enchente.

Acorda, Rio Grande.

(Elmar Bones)

 

 

Acorda, Rio Grande (4)

Porto Alegre foi pioneira em planejamento urbano no Brasil. Em 1914, há exatos 110 anos, colocou em prática um Plano de Melhoramentos e, nos anos 1970, foi a primeira capital a ter um Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano. Jaime Lerner, que ganhou notoriedade mundial pelas soluções urbanas em Curitiba, prestava tributo aos urbanistas gaúchos.

Essa cultura se extraviou. Uma revisão do Plano Diretor, que deveria ocorrer de dez em dez anos, para atualizá-lo, vem sendo adiada desde 2010.

Enquanto isso, mudanças pontuais vão desmontando o plano , substituindo  as regras do ordenamento urbano por medidas de estímulo à expansão imobiliária.

Duas  mudanças localizadas  – no Centro e  no Quarto Distritos – foram feitas pela atual gestão, de Sebastião Melo, com o objetivo estimular o adensamento urbano. O plano diretor foi arrombado, para permitir maiores índices construtivos em áreas com mais serviços urbanos.

O projeto, anunciado pelo prefeito, é (era) simplesmente dobrar a população do Centro Histórico e do Quarto Distrito, as duas áreas mais inundadas na atual enchente.

Situação análoga ocorreu no Estado.

Em 1961, o governo do Estado tinha um Gabinete de Assessoria e Planejamento, o famoso GAP onde uma equipe multidisciplinar articulada com as universidades coordenava um projeto de desenvolvimento regional. Nem mesmo os governadores nomeados pelo regime militar ousaram extinguir as estruturas de planejamento do governo estadual.

Na redemocratização, uma das primeiras providências do governo Pedro Simon (1987/90) foi criar, por inspiração de Siegfried Heuser, a Fundação de Economia e Estatística, cujo objetivo era produzir as informações necessárias ao planejamento, sem a influência governo.

Tudo isso foi dizimado. Em 2020, a FEE foi extinta, assim como outras nove fundações públicas ligadas à pesquisa no Estado, como a Cientec, a Fepagro, a Zoobotânica, que tinham convênios inclusive com universidades estrangeiras.

No ano passado,  quando decidiu  dar forma ao que seria a grande obra da atual gestão, o  governo estadual contratou, com pompa e circunstância, o BNDES para “modelar” o projeto de revitalização do Cais Mauá, o antigo porto da capita gaúcha.

Uma área de 81 hectares à margem do Guaíba seria concedida para um grande projeto imobiliário.  Para tornar mais atraente o negócio para o investidor privado, o governo estadual e a prefeitura cogitaram até retirar o muro que, agora, apesar do mau estado, impediu o pior em Porto Alegre.

O Cais Mauá, que se estende por três quilômetros à margem do Guaíba, está há duas semanas inteiramente encoberto pelas águas da enchente.

Acorda, Rio Grande (3)

Viralizou a imagem do cavalo Caramelo, como  “símbolo da resiliência dos gaúchos ante a tragédia das enchentes que assolam o Rio Grande do Sul”.

Na imagem daquele cavalo magro que ficou quatro dias num telhado cercado pelas águas, pode-se ver também  a metáfora perfeita de um Rio Grande do Sul, ilhado no seu mundo mítico pastoril, acossado por desafios de todos os lados.

Como um Caramelo, indefeso, o Rio Grande do Sul não tem como se reconstruir sozinho. Não só a reconstrução material, que requer um esforço sobre-humano. Uma reconstrução de valores – histórica, cultural, científica – tem que ser empreendida.

O Rio Grande do Sul tem a segunda maior rede de rios navegáveis do país, depois do Amazonas. Mas o Rio Grande pastoril, filho do pampa, acredita que suas fronteiras foram conquistadas “a pata de cavalo”.

Caudilhos do pampa, os chefes da Revolução Farroupilha tomaram Porto Alegre, mas esqueceram a única ligação por mar, por onde o Império português fez entrar as forças para derrotá-los.

Pelo porto de Rio Grande entrou a frota de Greenfeld que iria encurralar Bento Gonçalves na Ilha do Fanfa.

O abandono da infraestrutura hidrográfica, o descaso com os regimes dos rios, o desmatamento das margens, a ocupação de áreas de inundação, são exemplos atuais desse erro histórico.

Pode-se dizer,  no terreno das analogias, que essa enchente sem precedentes é uma revolta das águas contra o homem que não reconhece as dádivas que a natureza lhe deu – não sabe aproveitá-las como riquezas e não cuida da sua preservação, não respeita suas margens, suas matas ciliares, os banhados e tudo mais.

Fernando Henrique Cardoso, que escolheu a escravidão no Rio Grande do Sul como tema de seu doutorado em sociologia, pesquisou nas principais obras da historiografia riograndense da época (1962)  e concluiu: elas construíam uma “uma autoimagem deformada do gaúcho”.

Pode ser ressentimento, pelo desprezo com que o jovem FHC, discípulo de Florestan Fernandes, foi tratado pelos doutos da província, que sustentavam a tese da “democracia racial” nas estâncias e a predominância da “cepa lusitana” na formação  do Estado.  Mas ele tem sua razão.  A mitificação do meio pastoril  como fonte cultural única na formação do Estado, não deixa de ser deformação numa sociedade diversificada como é a riograndense, onde convivem mais de 20 etnias e nacionalidades.  Reduzir a história do Rio Grande do Sul aos feitos da Revolução Farroupilha, por maiores que tenham sido, não é uma questão menor, quando se trata de identidade social.

Resulta, de tudo isso, que em pleno século 21, um Estado urbano e industrializado,  se vê simbolizado pelo cavalo Caramelo, salvo da enchente por uma equipe de veterinários e bombeiros de São Paulo.

Acorda, Rio Grande!

(Elmar Bones)

 

Acorda, Rio Grande (2)

Claro, a fúria do Taquari seria destrutiva em qualquer circunstância, o nível do Guaíba a mais de cinco metros seria arrasador de qualquer jeito.

A questão é que a calamidade encontra o Rio Grande do Sul na contramão do que pede uma emergência desse porte.

O que pede a emergência  colossal?

Poder público com capacidade e meios de ação, serviços públicos eficientes e ágeis, informações, planejamento, prevenção… Não é o que se tem no Rio Grande do Sul.

No Rio Grande do Sul, há mais de 30 anos, com pequenos hiatos, se implanta um modelo de gestão pública voltado exclusivamente para o equilíbrio das contas do governo, sempre pelo lado do corte de despesas.

Resultado é que o Estado vendeu patrimônio, precarizou os serviços públicos (servidores estaduais ficaram sete anos sem reajuste salarial), perdeu a capacidade de planejar e prevenir e chega aos dias de hoje com uma dívida impagável, que deixa o poder público estadual manietado.

No Plano Plurianual (2024/2027) que o governador Eduardo Leite encaminhou à Assembleia está escrito: “Mesmo com os bons resultados fiscais alcançados em 2021 e 2022, o ano de 2023 e para o período 2024-2027, o Estado do Rio Grande do Sul terá ainda que lidar com os problemas estruturais das suas finanças (…)  sem deixar de ter um olhar atento para a sustentabilidade do pagamento da dívida estadual”.

“É o único caminho”, diziam e dizem os defensores deste modelo de Estado mínimo, serviços públicos exíguos, políticas sociais restritas e irrestrita  liberdade empresarial para que o mercado resolva o que o governo não consegue. É um mau caminho,  agora fica escancarado.

Quando as águas baixarem, o que vai ficar exposto, como os escombros das cidades destruídas, são as fragilidades desse modelo, a sua incapacidade de prevenir e enfrentar eventos desta dimensão. Pior: sua incapacidade para reconstruir em bases que não sejam um mero paliativo. Acorda, Rio Grande!

(Elmar Bones)

ACORDA, RIO GRANDE

Todo o esforço para  reconstruir o que a enchente arrasou será paliativo se não incluir  uma discussão ampla sobre o “modelo de desenvolvimento” que se implantou no Rio Grande do Sul nos últimos 30 anos.

Claro, é um fenômeno global, mas aqui temos  um recorte exemplar de um projeto econômico, hoje em crise no mundo inteiro.

O Rio Grande do Sul é um caso exemplar porque foi pioneiro no despertar da consciência ambiental.

Em Porto Alegre nasceu pela flama de José Lutzenberger a Agapan, em 1971, já alertando para as mudanças climáticas provocadas pela ação do homem.

O Estado foi o primeiro a ter um código de proteção ambiental.

A lógica dos negócios que se estabeleceu nas últimas décadas fez terra arrasada dessas conquistas. Historicamente, o desmatamento no Rio Grande do Sul é maior do que na Amazônia, nas devidas proporções.

O Estado que tinha dois terços do seu território coberto com florestas, hoje tem pouco mais de dois por cento de áreas preservadas.

O Rio Grande do Sul é um caso exemplar porque teve um parque fabril moderno e diversificado, que exportava para uma centena de países e era o terceiro polo industrial do país. Hoje tem uma indústria em crise, até de identidade. Duas commodities, soja e pasta de celulose, dominam a pauta de exportações do Estado.

O Rio Grande do Sul é um caso exemplar porque já foi chamado de “celeiro do Brasil”, pela diversidade da sua produção agrícola. Hoje vive a lógica da monocultura, na dependência da soja exportada em grão para alimentar porcos na China.

O Rio Grande do Sul é um caso exemplar porque já teve um serviço público que era modelo no país. Hoje o poder público opta pelas privatizações e terceirizações.

O Rio Grande do Sul é um caso exemplar porque um terço do seu território é pampa, bioma único, riquíssimo, que está sendo entregue às monoculturas, da soja e do eucalipto…

O Rio Grande do Sul é um caso exemplar pela diversidade social que abriga mais de 20 etnias, que vem sendo reduzida a uma única expressão, da cultura pastoril.

Por fim, o Rio Grande é um caso exemplar porque uma tragédia que comoveu o mundo aconteceu aqui. Ela  obriga à reflexão sobre o que nos trouxe até esse ponto.

Milton Santos, o geógrafo, dizia que a concretude do global se realiza no local. É o Rio Grande do Sul, caso exemplar para se perceber os estragos do neoliberalismo num estado periférico.

Acorda, Rio Grande!

(Elmar Bones, editor)

Pousada Garoa: as dimensões da tragédia

Dez pessoas mortas, quinze feridas, duas em estado grave.

Esse é o custo humano do incêndio na Pousada Garoa, que funcionava num prédio de três andares na  avenida Farrapos, no centro de Porto Alegre.

As verdadeiras dimensões da tragédia, cinco dias depois, ainda não podem ser avaliadas.

Desde a origem do fogo que irrompeu por volta da uma hora da manhã e devorou o prédio em poucos minutos, até as responsabilidades e implicações políticas e eleitorais do caso, são muitas as perguntas sem resposta.

O dono da pousada levantou a suspeita de “incêndio criminoso”. Declarou que uma câmera da pousada registra um homem entrando por volta de uma hora da madrugada, saindo minutos depois. A cena ainda não apareceu.

Todos os relatos de sobreviventes e de quem entrou no local apontam para um curto-circuito, pela precariedade das instalações elétricas, mas o prefeito Sebastião Melo e o Secretário Leo Voigt, em declarações, não descartaram a hipótese de um crime. “Não se sabe se a causa foi estrutural ou se foi provocado”, declarou o Secretário.

Independente da causa ou causas do fogo, os estragos do incêndio se propagam em várias direções.

Começa que a Pousada Garoa não era um pequeno negócio tocado por um casal de aposentados. O prédio que queimou fazia parte de uma rede de 23 pousadas que têm como principal cliente a Prefeitura de Porto Alegre.

Desde o início da atual gestão, tem contrato para abrigar pessoas atendidas nos programas sociais do município. Na renovação de dezembro de 2023, ficou estabelecido que a garoa vai receber R$ 2,7 milhões dos cofres públicos municipais. No dia da tragédia a rede abrigava às expensas da Prefeitura 320 pessoas em suas unidades.

Nesse nesse ponto, a tragédia atinge um dos pilares da atual gestão: a terceirização de serviços públicos e a desregulação de atividades econômicas.

Nesse terreno, do custo político, o incêndio da Pousada Garoa em Porto Alegre, onde morreram dez e ficaram feridas 15 pessoas “em situação de vulnerabilidade”, tem potencial de provocar estragos maiores do que os da Boate Kiss, em Santa Maria, em que morreram 442 pessoas, a maioria jovens da classe média e da elite local.  Vai depender dos próximos capítulos.

Fontes: Matinal, G1, Brasil de Fato, Correio do Povo, Sul21, GZH

Estátua do ex-presidente João Goulart na Orla: a decisão será da GAM3

Depende da GAM3, a empresa concessionária do trecho 1 da Orla, a localização de uma estátua do ex-presidente João Goulart junto à avenida que já leva seu nome, no centro histórico de Porto Alegre.

O projeto é da Fundação Caminhos da Soberania, que arrecadou fundos para bancar a obra do escultor carioca Otto Dumovitch, o mesmo  autor da estátua de Leonel Brizola instalada  no pátio externo do palácio Piratini.

A escultura já foi feita e paga, mas há dois anos está encaixotada num depósito da Transportadora Gabardo, em Porto Alegre, porque ainda não foi encontrado um local para ela.

O presidente da Fundação, ex-deputado e Procurador de Justiça,  Vieira da Cunha, já participou de duas reuniões com o prefeito Sebastião Melo.

Na primeira o prefeito se mostrou simpático à ideia mas informou que o local pretendido está dentro de uma área concedida à iniciativa privada. Qualquer intervenção no trecho 1 da Orla tem que ser aprovada pela concessionária, a GAM3.  Na segunda, ocorrida há duas semanas, a GAM3, que estava convidada, não compareceu.

Segundo Vieira da Cunha, Sebastião Melo ficou de marcar uma nova reunião com a empresa, para avaliar a questão.

O prefeito até sugeriu uma alternativa, no trecho 2 da Orla, junto a um prédio do DMAE, mas o local demanda terraplanagem e o custo da operação foi estimado em 100 mil reais.    ´

João Goulart, o Jango, nascido em São Borja, teve toda sua trajetória ligada a Porto Alegre, para onde veio adolescente, onde estudou, onde se formou e onde iniciou sua carreira política, como deputado estadual.

Viveu em Porto Alegre seus últimos momentos como presidente da República. Em Porto Alegre ele tomou a decisão de não resistir, “para evitar derramamento de sangue”. De Porto Alegre ele partiu para o exílio de onde só voltou morto.

Neste 31 de março de 2024 completaram-se 60 anos que Jango foi derrubado por um golpe civil-militar e se exilou primeiro no Uruguai, depois na Argentina onde morreu em 6 de dezembro de 1976.

Primeira vítima da ditadura, militar que impediu bombardeio do Palácio Piratini foi esquecido

Quarenta e três pessoas compareceram ao Salão Mourisco, da Biblioteca Pública do Estado na tarde chuvosa de sábado, 13 de abril, para uma homenagem ao tenente coronel Alfeu  Alcântara Monteiro.

“Ele é um mártir, um nacionalista, legalista, perdeu a vida por defender a democracia”, disse a sobrinha neta do militar, Isabela Monteiro.

Evento na Biblioteca Pública do Estado, início de um movimento para resgatar a memória de Alceu Monteiro Alcântara

Alfeu Monteiro, oficial de carreira exemplar na Força Aérea Brasileira,  foi fuzilado na sala do comando da Base Aérea de Canoas no início da noite de 4 de abril de 1964. Tinha completado 42 anos três dias antes.

Sua sorte estava selada desde agosto de 1961, quando se colocou ao lado dos sargentos que esvaziaram os pneus dos aviões para não cumprir a ordem  de bombardear o Palácio Piratini, em Porto Alegre, no episódio da Legalidade.

“Ali o Alfeu ficou marcado na paleta”, disse o o presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke, no evento de sábado.

Em 1964, quando nova tentativa de golpe foi deflagrada, Monteiro assumiu o comando e colocou a Base Aérea de prontidão. Havia rumores de que João Goulart seria sequestrado quando desembarcasse em Porto Alegre, onde chegou no dia 2 de abril, para avaliar as chances de resistência ao golpe. Legalista, Monteiro tomou providências para defender o presidente.

Na tarde de 4 de abril, no momento em que o presidente João Goulart deixava o país rumo ao exílio no Uruguai, desembarcou na Base Aérea de Canoas  o brigadeiro Nelson Lavanère-Wanderley e uma escolta de oficiais chefiados pelo coronel aviador Roberto Hipólito da Costa, que vinha “para segurar o Alfeu na bala”, conforme depoimento de uma testemunha.

Lavanère assumiu o comando e convocou o tenente coronel Monteiro para uma reunião.

O que aconteceu na sala do comandante da Base Aérea foi motivo de controvérsia durante muito tempo.

Um inquérito sigiloso feito no âmbito da Justiça Militar, concluiu que o coronel Roberto Costa atirou em legítima defesa, ante a tentativa de Alfeu de sacar o revólver ao receber voz de prisão.

Uma ação do Movimento de Justiça e Direitos Humanos em 2014, levou o Ministério Público Federal  a reabrir o inquérito e reconstituir os fatos.

O resultado, depois de três anos de investigações, derrubou a versão da legítima defesa, concluindo que Monteiro foi fuzilado, inclusive recebendo quatro tiros pelas costas.

Ficou, oficialmente, reconhecido que ele  foi o primeiro militar morto pela ditadura de 1964.

O evento de sábado, promovido pelo jornalista Landro Oviedo com apoio da Biblioteca Pública, pretende ser a primeira de uma série de iniciativas para resgatar a memória do tenente coronel Alfeu Monteiro, hoje praticamente esquecido.

Um busto dele, erguido na praça central de Canoas, foi roubado há vários anos e não mais recolocado.

A Câmara Municipal de Porto Alegre, por iniciativa dos então vereadores Raul Carrion e Manuela D’Ávila, chegou a discutir a colocação de uma  estátua dele numa praça  próxima  ao aeroporto, mas o projeto não saiu do papel.

O movimento iniciado sábado para resgatar a memória de Alfeu Monteiro Alcântara tem o apoio de diversas entidades de defesa dos direitos humanos e da democracia, além de familiares e lideranças de Itaqui, onde o militar nasceu em 31 de março de 1922.

A vereadora Abigail Pereira (PCdoB), presente ao evento,  anunciou que vai reapresentar na Câmara de Municipal o projeto de uma estátua para Alfeu Monteiro num logradouro da capital.

 

 

31/03/1964 : ASSIM COMEÇOU O GOLPE

Juiz de Fora, 31 de março de 1964

Uma e meia da madrugada, o general Olympio Mourão Filho desiste de tentar dormir e retoma as anotações em seu diário.

Há quase uma semana ele se considera pronto para o golpe contra o governo, mas desconfia que o estão traindo.

Esperava um manifesto do governador de Minas, Magalhães Pinto, que seria a senha para colocar as tropas na rua.

Em vez de mandar-lhe o texto antes,  o governador entregou o manifesto à imprensa. E o conteúdo não era o que haviam combinado!

“Eu estava uma verdadeira fúria”, anotou Mourão. “Meu peito doía de rachar. Tive que por uma pílula de trinitrina embaixo da língua”

Olympio Mourão Filho, general de três estrelas, comandante da 4ª Região Militar, uma das principais forças terrestres do Exército brasileiro, estava mesmo descontrolado:

“Idiotas. O Chefe Militar sou eu. Magalhães não terá desculpa perante a história… E o Guedes, um falastrão vaidoso que aceitou o papel triste… Fizeram isto, bancando os heróis, porque sabiam que eu era a própria revolução. Do contrário não se atreveriam a dar um passo. Irresponsáveis! Arriscando uma revolução tão bem planejada num momento de vaidade!”

Depois da explosão, acalma-se e anota no diário: “Acendi o cachimbo e pensei: não estou sentindo nada e, no entanto, em poucas horas deflagrarei um movimento que poderá ser vencido porque sai pela madrugada e terá que parar no caminho. Não faz mal…”

Em seu plano original, Mourão previa sair de Juiz de Fora, no início da noite, com 2.300 mil homens. Cobriria os 200 quilômetros até o Rio de Janeiro em cinco ou seis horas. Antes de clarear o dia, tomaria de surpresa o prédio do Ministério da Guerra e o Palácio das Laranjeiras, onde estaria ainda dormindo o presidente João Goulart. Depois começaria a caçar os comunistas.

Há uma semana “estava pronto”, mas vinha sendo retardado por artimanhas do governador Magalhães Pinto que, mineiramente, temia “se envolver numa aventura”.

Agora ele está decidido: “Vou partir para a luta às cinco da manhã… Ninguém me deterá. Morrerei lutando. Nosso sangue impedirá a escravização do Brasil”.

Depois se acalma novamente: “E o mais curioso de tudo isto é que, passada a raiva, (já estou normal, bebi água e café) não sinto nada, nem medo, nem coragem, nem entusiasmo, nem tristeza, nem alegria. Estou neutro.”

Anotou alguns nomes num papel e, quando o relógio marcou cinco horas, chamou a única telefonista de plantão na central de Juiz da Fora: “Quero prioridade absoluta e rápida para as ligações que vou pedir. Estou mandando a PM ocupar a Estação e a senhorita não diga palavra a ninguém”.

Considerou-se em ação: “Eu já havia desencadeado a Operação Silêncio”, anotou.

No primeiro telefonema, tentou alcançar o tenente coronel Everaldo Silva, que estava de prontidão no QG, “o telefone estava enguiçado”. Tocou, então, para o major Cúrcio e mandou desencadear a “Operação Popeye”, o plano militar que ele, Mourão, havia traçado e ao qual batizara com o apelido que lhe haviam dado no quartel pelo uso constante do cachimbo.

Em seguida, convocou os coronéis Jaime Portela e Ramiro Gonçalves para que se apresentassem imediatamente no quartel (nenhum dos dois apareceu). A seguir, ligou para o almirante Silvio Heck, comandante da Marinha, golpista de primeira hora: disse que estava partindo em direção ao Rio, para depor Goulart.

O próximo foi o deputado Armando Falcão, para que avisasse Carlos Lacerda, governador da Guanabara, o mais notório dos inimigos do presidente.

Falcão, assustado, ligou para o general Castello Branco, que era o líder militar de uma outra conspiração e que evitara sempre se envolver com Mourão.

Os recrutas de Mourão começam a se deslocar em direção ao Rio de Janeiro

Castello, que não tinha tropas, tentou falar com Amaury Kruel, o comandante do II Exército, a maior força militar do país. “Isso não passa de uma quartelada do Mourão, não entro nessa”, disse Kruel, quando foi alcançado por emissários. Kruel ainda era amigo de João Goulart.

Nesse meio tempo, Castello recebeu uma ligação do general Antônio Carlos Muricy, outro conspirador sem comando.

Muricy diz que foi chamado a Minas por Mourão, “que está rebelado”. Castello aconselha que vá “para prevenir qualquer bobagem”.

Enquanto isso, Mourão segue anunciando o golpe por telefone. Ao final de sua rajada de chamadas, fez questão de registrar que “estava de pijama e roupão de seda vermelho”. E não esconde o “orgulho pela originalidade”: “Creio ter sido o único homem no mundo (pelo menos no Brasil) que desencadeou uma revolução de pijama”.

Subiu um lance de escada até o quarto onde estava seu hóspede e cúmplice, o desembargador Antônio Neder, “que dormia como um santo”. Gritou: “Acabo de revoltar a 4ª Divisão de Infantaria e a 4ª Região Militar”.

O amigo “entre espantado e incrédulo”, perguntou: “Você agiu certo? Tem elementos seguros?”.

Mourão desdenha : “Vocês, paisanos, não entendem disso”. Eu estou certo, pode crer”. Na verdade, ele não tinha certeza de nada, nem mesmo se conseguiria tirar suas tropas do quartel.

Entrou no banheiro, fez a barba e leu alguns salmos da Bíblia, como fazia todos os dias. “Eu era um homem realizado e feliz. Não pude deixar de ajoelhar-me no banheiro e agradeci a Deus a minha felicidade, havia chegado a hora de jogar a carreira e a vida pelo Brasil!”

Abriu o chuveiro, banhou-se calmamente. Só então vestiu o uniforme de campanha e foi tomar café com Maria, sua mulher (“Não consigo me lembrar se o Neder tomou café conosco”, diz ele nos registros que fez dias depois).

A notícia de um golpe militar se espalhava pelo país, mas o comandante do levante ainda não saíra de casa.

“A insurreição estava envolta numa nuvem que se parecia ora com uma quartelada sem futuro ora com uma tempestade de boatos”, registra Elio Gaspari*.

Por volta das dez horas, ainda sem saber direito o que realmente estava acontecendo, o general Castello Branco saiu de seu apartamento, em Ipanema. Foi para o Ministério da Guerra, no centro, onde tinha seu gabinete de trabalho, no sexto andar. De lá ainda insistiu com o general Luiz Guedes, comandante da 4ª Divisão de Infantaria em Belo Horizonte, e o governador Magalhães Pinto para que detivessem Mourão. “Senão voltarem agora serão esmagados”.

Guedes, em suas memórias, tentou associar-se à ousadia de Mourão, dizendo que àquela hora também já estava rebelado, mas a verdade é que até aquele momento Mourão estava sozinho.

Mourão registra, desde o primeiro encontro entre ambos, a frase que Guedes repetia: “Quem levantar a cabeça primeiro, leva pau”.

O governador Magalhães Pinto, a quem Guedes seguia, desenvolvia um plano que permitisse recuos. Sua intenção era declarar Minas Gerais em “estado de beligerância”, contra o governo federal.

Esperava obter o reconhecimento dos Estados Unidos e, então, forçar João Goulart a renunciar. Seria instalado um mandato tampão até as eleições de 1965 , quando ele, Magalhães, seria o candidato imbatível – o libertador que afastara o perigo comunista.

O manifesto que Magalhaes lançou no dia 30 de março, escrito pelo mineiríssimo Milton Campos, defendia reformas de base e era tão cauteloso que o deputado federal Wilson Modesto, do PTB de Minas, leu a íntegra por telefone para Jango e o presidente respondeu: “Diga a Magalhães que está muito bom, estou de acordo com ele”.

As ações do general Guedes, àquelas alturas, se limitavam à Prontidão da Polícia Militar, força estadual, e a consultas ao cônsul dos Estados Unidos em Belo Horizonte, para saber se os americanos estavam dispostos a ajudar com “blindados, armamentos leves e pesados, munições, combustíveis, aparelhagens de comunicações…”.

Para “mais tarde”, precisaria de “equipamento para 50 mil homens”.

***

Enquanto isso, Mourão enfrentava dificuldades para levar as tropas à rua. O comandante do 10º Regimento de Infantaria, coronel Clóvis Calvão não apoiava o levante. Mourão contornou o impasse dando férias ao coronel.

Dois outros coronéis e o comandante da Escola de Sargento de Três Corações, também rechaçaram a ordem de botar a tropa na rua e foram para casa.

Nada disso influiu no apetite do general. À uma da tarde, ele foi para casa almoçar e não dispensou sequer a sesta. Nessa hora, já se movimentavam forças para atacá-lo a meio caminho do Rio.

“Na avenida Brasil, principal saída do Rio e caminho para Juiz de Fora, marchavam duas colunas de caminhões. Numa iam 25 carros cheios de soldados, rebocando canhões de 120 mm… Noutra, em 22 carros ia o Regimento Sampaio, o melhor contingente de infantaria da Vila Militar. De Petrópolis, a meio caminho entre o Rio e Mourão, partira o 1º Batalhão de Caçadores” (Gaspari).

“Tinham-se passado oito horas desde o momento em que se considerara insurreto. Salvo os disparos telefônicos e a movimentação de um pequeno esquadrão de reconhecimento que avançara algumas dezenas de quilômetros, sua tropa continuava onde sempre estivera: em Juiz de Fora.” (Gaspari)

Fardado, de capacete, Mourão, autointitulado Comandante em Chefe das Forças Revolucionárias, foi fotografado no meio da tarde, no QG da 4ª DI. Mas aos jornalistas ainda negava que estivesse rebelado.

O general Antônio Carlos Muricy, que Mourão chamou para chefiar a vanguarda da tropa que desceria em direção ao Rio, só foi chegar a Juiz de Fora às 18 horas.

Ao inspecionar as forças de que dispunha, Muricy comprovou que mais da metade eram recrutas mal preparados e a munição dava para poucas horas.

***

“Ele não é bem visto no Exército e provavelmente não liderará uma conspiração contra o governo, em parte porque não tem muitos seguidores. É visto como uma pessoa que fala mais do que pode fazer”, dizia um informe da embaixada americana sobre Mourão.

A maioria dos 60 generais em atividade naquele momento, achava que Mourão não conseguiria tirar os soldados do quartel. Lacerda lhe disse isso diretamente. O general Muricy, que ele convidou para comandar a vanguarda de suas forças em direção ao Rio, disse-lhe: “Você está louco? Acha que pode fazer uma operação dessas com soldados meninos com um mês de treinamento!”

Quando Morão chegou a Minas, em setembro de 1963, para assumir o comando da 4ª Região Militar, o governador Magalhães Pinto, depois da primeira conversa que tiveram, comentou: “Este general que veio comandar a Região ou é agente provocador do governo ou é louco, quer fazer uma revolução logo!”

O general Costa e Silva, a quem procurou várias vezes, sempre esquivou-se. “Não temos nada”. Para o historiador Hélio Silva, Mourão era um “homem bom, sofredor, pitoresco, capaz de assomos de cólera”.

***

O embaixador americano, Lincoln Gordon, soube da rebelião por volta do meio-dia do dia 31 de março, quase doze horas depois dos primeiros avisos de Mourão.

Imediatamente avisou Dean Rusk, chefe do Departamento de Estado. Ele não tinha Mourão em boa conta, mas ponderou: “(…) pode ser a última boa oportunidade para apoiar uma ação contra Goulart”.

A segunda vitória de Mourão aconteceu já na madrugada do dia primeiro de abril, quando o Regimento Sampaio, a mais bem treinada e equipada força militar do Rio, que saiu para atacá-lo. Ao alcançar a dianteira das tropas rebeladas, em vez de atirar, os oficiais simplesmente aderiram ao golpe. Os calejados “tarimbeiros” do Regimento Sampaio abraçaram os “soldadinhos meninos” de Mourão. “Eles passaram-se quando tudo parecia indicar nossa derrota”, anotou o general em seu diário.

Pouco depois, quando se deslocava para assumir a vanguarda das tropas que se dirigiam ao Rio soube pelo rádio do carro que não havia mais resistência. O golpe vencera e o general Costa e Silva havia assumido o Comando Supremo da Revolução, por ser o general mais velho em atividade. Não lhe restou mais que ir ao QG e apresentar-se ao novo comandante. Costa e Silva dormia e atendeu-o de cuecas. Ele quis reclamar, Costa colocou a mão em seu ombro: “Mourão, foi tudo resolvido na base da hierarquia ( …) Não se preocupe, velho, isso vai dar certo”. E recomendou-lhe ficar mais uns dias no Rio antes de regressar com as tropas. “Achei razoável , de vez que Costa e Silva não contava com quase nada, não dispunha de tropa. Minha obrigação era ficar e garanti-lo”, anotou Mourão em suas memórias. Ele já era carta fora do baralho.

Conspiração começou em Santa Maria

Olympio Mourão Filho diz em suas memórias que “acordou para o perigo comunista” em janeiro de 1962. Ele recém chegara a Santa Maria para assumir a 6ª Divisão de Infantaria.

Num jantar, testemunhou uma conversa do governador Leonel Brizola com o general Osvino Ferreira Alves, comandante do I Exército, brizolista, que passava suas férias em Santa Maria…

“Ficamos conversando no jardim interno. Foi aí que percebi que os dois acreditavam que eu pertencia ao lado político deles. Abriram o papo. Fiquei horrorizado com o que ouvi”. Brizola falou de seus planos para apressar o plebiscito para voltar ao presidencialismo, da campanha pelas reformas de base, elegibilidade dos sargentos, extensão do voto aos soldados e analfabetos…

Nada mais do que a plataforma publicamente defendida por Brizola. Para Mourão foi a explanação de “um vasto plano de subversão em todo o Brasil”.

Em casa ele anotou em seu diário: “Nada tenho contra João Goulart. Acho-o até um homem bom e simpático. Mas ele não porá fogo no Brasil”.

A partir daí, ele entra num processo de conspiração delirante, movido por uma certeza: Jango e Brizola, aliados aos comunistas, preparavam um golpe para implantar uma república sindicalista.

Tanques e jipes do II Exército descem para o Vale do Paraíba. O golpe venceu

A saída era um golpe antes. Além de aliciar adeptos entre a oficialidade, Mourão procura também lideranças do meio civil.

”Em Santa Maria articulei-me com o prefeito da cidade, médico Sevi Vieira e com o bispo Dom José Sartori, “que era um revolucionário entusiasmado”.

No dia 15 de janeiro de 1962 , foi a Porto Alegre e falou com o presidente da poderosa Farsul, Antônio Saint-Pastous, que o apoiou.

Em setembro de 1962 foi convidado para um encontro na casa do bispo para expor suas ideias e planos a um seleto grupo de líderes políticos: o governador Ildo Meneghetti, o senador Daniel Krieger, o deputado Peracchi Barcelos e o secretário de Meneghetti, João Dêntice.

Krieger anota em seu livro de memórias que “aquele foi o primeiro contato de civis com militares”, para uma conspiração anti-Jango.

Em Porto Alegre teve um colaborador entusiasta no jornalista Tadeu Onar, que  colocou Mourão em contado com lideranças e autoridades. Conseguiu até um audiência com o arcebispo, D. Vicente Scherer, que o ouviu mas evitou se comprometer.

Em março de 1963, Mourão  foi para a 2ª Região Militar, em São Paulo, “primeiro comando de prestígio.” Logo tinha um grupo, com o qual conspirava: “Reuníamos, em geral nas quartas-feiras, depois que eu vinha do meu passeio na Praça da Sé. Fazia isto muitas vezes nos dias quentes sem paletó, com um terno surrado, sem gravata e uns sapatos velhos… Sumia no meio do povo…”

Mourão, ainda embuído da Operação Popeye, ouve o governador mineiro Magalhães Pinto, “chefe-civil da revolução”. Com eles, o general Carlos Muricy

Filho de um advogado, que foi deputado e líder político em Diamantina e na região Norte de Minas, Mourão era uma figura polêmica desde os temos da Escola Militar, quando era um cadete magrinho (49 quilos) e se sentia marginalizado pelos colegas, os quais invariavelmente desprezava. “Eu fui sempre desconhecido, vivia entocado, ninguém me dava a menor importância”.

Tinha desprezo também pelos políticos: “Vil raça danada que vem desgraçando este país. Se pudesse metia-os todos na cadeia”.

Era igualmente inimigo da Escola Superior de Guerra, “escola onde se estuda uma doutrina totalitária importada dos EUA”. Achava os homens da ESG (Cordeiro de Faria, Golbery do Couto e Silva, Castello Branco) “uns cérebros doentios”.

Obcecado, Mourão Filho fez pelo menos três planejamentos para o golpe, desde que começou a conspirar. Quando ainda estava na 3ª DI, em Santa Maria, tinha um plano pronto (“Operação Junção”) para atacar Porto Alegre e prender Brizola, que ainda era governador.

Em março de 63, pouco depois de assumir a 2ª Região Militar em São Paulo, escreveu outro plano, que incluia “Serviço de sabotagem e contra-sabotagem”.

Brasília, 3 de abril: tanques ainda estacionados perto do Congresso Nacional

Via-se no poder

“Já pensei vagamente no que farei ao chegar ao Rio. Tomo o QG no peito e mando buscar o Cordeiro de Farias em casa, passo-lhe o Comando Geral e assumo o Comando das Forças em Operação (…) daremos ordem para que Mazzilli assuma a Presidência da República e formamos uma junta à parte, para tratar dos seguintes assuntos:

a) escolher o candidato que será civil para completar o quinquênio;

b) traçar diretrizes gerais para modificar a Constituição, a fim de evitar no futuro o acesso de políticos corruptos e subversivos”.

Tinha um plano para mudar o Brasil. Sua reforma tinha oito pontos, entre eles a “inelegibilidade dos atuais políticos, de seus ascendentes e descendentes e colaterais até o segundo grau”, e a criação de uma “Câmara de Planificação”, à base de concurso rigoroso de provas e títulos. “Câmara vitalícia à base dos mais altos salários da República”.

“O movimento se for vitorioso elegerá um presidente civil para completar o quinquênio, ao passo que um Conselho Militar por mim presidido estudará e apresentará as reformas à constituição com mudança da forma de governo”.

Até o fim ignorou a grande trama que envolveu chefes militares, empresários, a CIA e a embaixada norte-americana e preparou o terreno para a derrubada do governo reformista de Goulart.

Achava que tinha feito tudo sozinho. “A maior conspiração do Brasil foi feita por mim”, dizia.

A maldição do Plano Cohen

Planejar golpes parecia uma obsessão do general Olympio Mourão Filho. Quando era capitão ficou conhecido como autor do célebre “Plano Cohen”, uma das maiores farsas da história brasileira.

Era o plano de um golpe comunista, que previa atentados, sequestros e assassinato de autoridades para o assalto ao poder.

Com grande estardalhaço, o governo divulgou o plano terrorista, “descoberto” pelos serviços de segurança.

Ante a ameaça, o presidente Getúlio Vargas pediu “Estado de Guerra” e o Congresso, atemorizado, aprovou.

Os comunistas foram cassados e encarcerados e Vargas aproveitou o apoio político e popular e impôs uma nova constituição, que eliminava o parlamento. Foi ditador por oito anos, com todo o apoio das Forças Armadas.

Mourão já tinha morrido quando foi publicada a sua versão do golpe, em 1978

Em 1945, quando o ditador já estava em desgraça, o general Góes Monteiro, chefe do Estado Maior, ex-ministro da Guerra de Vargas, denunciou a farsa e acusou então capitão Mourão Filho de ser o autor. Segundo a versão de Góes Monteiro, num dia sem expediente no QG do Estado Maior do Exército, no Rio, Mourão foi flagrado por um colega datilografando o texto do que viria a ser o Plano Cohen.

Mourão não negava a autoria, mas insistiu sempre que se tratava de “um texto para estudo”, que foi usado sem o seu consentimento.

Na época, Mourão era chefe do Serviço Secreto da Ação Integralista e os integralistas (fascistas) aproximavam-se de Vargas. O plano, feito a pedido de Plínio Salgado, teria sido uma contribuição para que o presidente pudesse golpear os comunistas, que lhe atazanavam a vida. (Em seguida, depois de se livrar dos comunistas, Vargas acertou os integralistas também).

Observação : As memórias do general Mourão só foram publicadas em 1978, em plena ditadura militar, logo depois de sua morte, e por isso historiadores relativizam sua veracidade: Mourão pode, a posteriori,  ter enxertado trechos e fatos que  favoreciam  sua versão de conspirador-mor.

 

(Reproduzida da Revista JÁ, edição especial, 2014)  

 

Fontes:

Diário de Um Revolucionário (memórias do general Olympio Mourão Filho), L&PM, 1978.

A Ditadura Envergonhada, Elio Gaspari, Companhia das Letras, 2002.

1964: A Conquista do Estado, Renée Armand Dreiffus, Editora Vozes, 1981.

Reforma do Centro Histórico de Porto Alegre: a reportagem que não foi escrita

Já não tenho o Sérgio da Costa Franco para me socorrer e a memória não me dá segurança. Mas arriscaria que o centro  de Porto Alegre, onde nasceu e para onde,  ainda hoje, converge a cidade,  passa por uma das maiores reformas de sua história.

O que posso garantir: desde 1961, quando aqui aportei, nunca vi o centro tão conflagrado por obras como agora.

Meus olhos fatigados se intrigam, mas ainda não puderam ver uma reportagem sobre o que está acontecendo na vida real do centro histórico.

Ruas vazias, lojas fechadas, trânsito tumultuado, entulho pelas esquinas, obras sem operários, calçadas perigosas…

Dia desses, espero, um repórter passa por lá.

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