O projeto de lei que, desde 15 de maio, suspendeu por três anos o pagamento da dívida do Rio Grande do Sul com a União “é um crime contra os gaúchos”, segundo o advogado Hermes Zaneti.
“Em três anos o problema estará de volta, agravado porque as receitas tendem a cair. O Estado não conseguirá se reerguer sem uma imediata e profunda revisão dessa dívida com a União”, diz ele, taxativo.
Zaneti, de 80 anos, foi deputado constituinte e integrou o grupo seleto de parlamentares que deu suporte ao trabalho de Ulysses Guimarães na elaboração da Constituição de 1988.
Desde então ele se debruça sobre as relações do sistema financeiro* com o Estado, principalmente a questão da dívida pública do Rio Grande do Sul.
Foi crítico desde a primeira hora do acordo que o governador Antônio Britto assinou com o ministro Pedro Malan, em 1998, origem da situação atual.
É crítico do atual Regime de Recuperação Fiscal, desde quando começou a ser negociado pelo governador Ivo Sartori, em 2017. “Em ambos os casos, as condições negociadas foram péssimas para o Estado”
No acordo de 1998, Britto consolidou todas as dividas do Rio Grande do Sul com a União, num total de R$ 9,7 bilhões, para pagar em 30 anos, com juros de 6,17% ao ano e correção mensal pelo IGP-DI, um indexador privado, da Fundação Getúlio Vargas, geralmente mais alto que o IPCA, que é o índice oficial da inflação.
Nessas condições o Estado comprometia 13% de sua receita anual com o pagamento da dívida, mais do que gastava com a folha de seus funcionários.
Em 2013, o Rio Grande do Sul havia pago mais de três vezes o valor original da dívida e o saldo devedor, de R$ 47 bilhões, era sufocante.
Em busca de uma saída, o então governador Tarso Genro mobilizou os parlamentares gaúchos e conseguiu no ano seguinte aprovar um projeto que trocou o índice de correção – o IGP-DI pelo IPCA – e redução dos juros para 4%. Reduziu o peso da dívida de 13% para 8% da receita líquida, a partir daí.
Ainda assim, era o que “garroteava o Estado”, como dizia Zaneti na época, ao defender uma solução mais drástica.
Em 2015, ele reuniu em sua casa, em Brasilia. os três senadores gaúchos Paulo Paim (PP), Lasier Martins (PDT) e Ana Amélia Lemos (PP) e do encontro resultou um projeto de Lei, assinado pelos três, que está tramitando no Senado sob acompanhamento do Senador Paulo Paim. Em recente entrevista o senador Paulo Paim disse que o projeto Lei do Senado 561/2015 é “inspiração e construção do Zaneti”
O projeto propõe a troca de indexador, do IGP-DI para o IPCA , não a partir de 2014, como Tarso conseguiu, mas retroativo ao início do contrato de renegociação, em 1998. Esse projeto proíbe qualquer outro encargo sobre a dívida, além da correção monetária sob a justificativa de que não cabe cobrança de juros numa transação entre a União e um de seus “entes federados”.
Nestas condições, segundo os cálculos que fez, com assessoria de experientes auditores da Fazenda e do TCE*, Zaneti conclui que a dívida do Rio Grande do Sul está quitada desde 2013 e o Estado tem a receber R$ 17,7 bilhões de reais pagos a mais.
A conta que a União cobra do Rio Grande do Sul, depois de dois contratos de renegociação, chega aos R$ 97,5 bilhões em maio de 2024. Ou seja, de uma dívida inicial de R$ 9,5 bilhões em 1998, o Estado já pagou R$ 44 bilhões e deve R$ 97,5 bilhões.
Com o projeto aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente da República, para fazer frente às perdas com a enchente, o Estado deixará de pagar R$ 11 bilhões de amortizações e mais R$ 12 bilhões dos juros sobre o saldo no período. Ao aceitar isso, o Estado abre mão de questionar as condições da dívida.
O que o governo faz, segundo Zaneti, é empurrar pra frente em vez de enfrentar o problema: “Nos termos em que está posta, a dívida inviabiliza o desenvolvimento do Estado, pelo menos até o ano 2048. É tão grave quanto o descaso com as questões ambientais, diz Zaneti.
Não é só a “dívida indevida” que dificulta as possibilidades de recuperação do Rio Grande do Sul, segundo ele: “Ao mesmo tempo em que cobra com juros e correção uma dívida que já foi paga, a União não paga o que deve ao Estado como compensação da famigerada Lei Kandir, que isentou de ICMS a exportação de produtos primários e semi-elaborados. A legislação que previa a indenização do Estado veio sendo alterada e as compensações foram mínimas. Um estudo recente, de técnicos da Fazenda, mostra que desde 1996 até 2025, o ressarcimento ao Rio Grande do Sul deveria ser de R$ 125,8 bilhões de reais”.
Sem desatar essas duas amarras, não haverá verdadeira reconstrução do Rio Grande do Sul, segundo Zaneti.
* Zaneti é autor do Livro O COMPLÔ, como o sistema financeiro e seus agentes políticos sequestraram a economia brasileira, o qual deu origem ao premiado internacional documentário sob o mesmo nome.