Eleições 2024: o papel do homem do chapéu de palha

Em 2004 foram interrompidos os 16 anos da Frente Popular na prefeitura de Porto Alegre, com a eleição de José Fogaça, do PPS, e Eliseu Santos, do PTB, como vice.

Oito candidatos disputaram aquela eleição, inclusive o ex-governador Jair Soares.

O PT foi com uma chapa “puro sangue”, com Raul Pont e Maria do Rosário, como vice. Venceu com quase dez pontos na frente de Fogaça, mas não conseguiu evitar o  segundo turno.

Na final, Fogaça venceu obteve 53, 3% dos votos, menos de 7 pontos na frente de Raul, com 46,6%. Estava rompido o ciclo da Frente Popular, que de resto já estava trincada.

O primeiro movimento ostensivo para consolidar a surpreendente mudança se deu quatro anos depois, às vésperas da eleição que daria um segundo mandato a José Fogaça.

Foi um seminário promovido pela Câmara Municipal para debater “O Futuro da Cidade”. Uma semana de palestras e discussões no auditório da PUC, envolvendo urbanistas, economistas, empresários, ambientalistas, coordenado pelo ex-secretário do planejamento, João Carlos Brum Torres.

Quem era o presidente da Câmara? Sebastião Melo.

No amplo leques de propostas aprovadas no seminário sobressairam  demandas antigas do empresariado, por mais flexibilidade nas regras para a construção, para os licenciamentos ambientais, para as atividades comerciais. Em síntese, era preciso destravar o desenvolvimento da cidade, com grandes investimentos e geração de negócios. Não por mera coincidência o slogan da campanha de Fogaça à reeleição era: “Cidade Melhor Futuro Melhor”.

Ainda não se fez (não veio a público, pelo menos) um estudo sobre a evolução desse projeto, passando pelas duas gestões Fogaça, uma de José Fortunati (com Melo na vice), até chegar em Nelson Marchezan Junior quando ele adquiriu suas feições atuais: privatizações, parcerias, terceirizações de serviços e espaços públicos, enfim uma  gestão municipal subjugada pela lógica dos negócios, tracionada pela construção civil, o grande comércio, turismo de eventos e comunicação.

Sebastião Melo, amargou uma derrota nesse processo. Credenciado como o vice que concluiu a gestão Fortunati, quase um ano a frente do Executivo municipal, sofreu clamorosa derrota para Nelson Marchezan em 2016. Entrou em crise, pensou em largar a política e dedicar-se à advocacia. Reabilitou-se, voltou a ser candidado e venceu em 2020.

Encontrou o projeto radical de Marchezan em andamento, deu continuidade e aprofundou, até o ponto de propor a concessão do Parque da Redenção, simbolo da resistencia comunitária, para uma empresa privada.

Melo frequentemente faz menção à alma da cidade, mas o projeto que ele desde então representa, afronta vários paradigmas históricos de Porto Alegre.

O planejamento urbano, por exemplo. Porto Alegre foi a primeira capital a ter um plano de melhoramentos, em 1914. Foi a primeira a ter um Plano Diretor, em 1979, e que acompanha o desenvolvimento da cidade através de revisões periódicas.

Em vez de fazer a revisão que está atrasada, Melo valeu-se da folgada maioria que formou na Câmara para aprovar mudanças isoladas, que descaracterizam o plano, mas atendem demandas da construção civil e do mercado imobiliário.

Foram alterados os limites de construção e ocupação do solo, para estimular a verticalização, para “adensar o Centro Histórico” e o 4° Distrito.

A ideia é dobrar a população do centro, hoje em torno de 50 mil habitantes. Para o 4° Distrito, as mudanças têm por objetivo triplicar o número de moradores no bairro.

São duas áreas inundáveis, cujo sistema de drenagem mostrou-se precário na enchente de maio. Como fica o trânsito, como fica a rede de esgotos, a rede elétrica, quem sabe?

Outro paradigma da cultura urbana de Porto Alegre é o meio ambiente. Foi nessa cidade que nasceu e cresceu José Lutzenberger, brincando nas águas límpidas do Riacho. Foi para ela que ele voltou quando decidiu-se lançar na sua cruzada ambientalista.

Por sua influência a cidade teve as primeiras leis ambientais, a primeira secretaria de Meio  Ambiente, tornou-se a capital do ambientalismo, a cidade mais arborizada do Brasil. 

Um caso exemplar: o Parque da Harmonia, criado na gestão de Guilherme Socias Villela para ser o “pulmão verde” do centro histórico, conforme a campanha nos jornais. Foi entregue a um consórcio privado que derrubou as árvores e a transformou num parque temático, todo asfaltado e ocupado com prédios.

O transporte coletivo é outro exemplo cabal de como o interesse empresarial se sobrepõe.

Na campanha de 2020, Melo disse que ia “repactuar os contratos”. Com a pandemia não havia o que fazer, quando passou a pandemia, ele nada fez.

Voltou-se para Brasília em busca de subsídio federal, fez várias viagens que renderam manchetes, mas nada conseguiu.  Enquanto isso, foi atendendo aos interesses das empresas: cortou benefícios de estudantes e idosos, cortou o cobrador,  ampliou o prazo de uso dos ônibus, flexibilizou as metas de melhorias, como ar condicionado e acessibilidade, e permitiu a redução de linhas.

Para manter a passagem em R$ 4,80, instituiu um subsídio, que neste ano será de R$ 130 milhões, segundo a imprensa. São quase trinta milhões de passagens, equivalendo a mais de 80 mil passagens diárias de subsídio.

Enquanto o equilíbrio das empresas está garantido, o trabalhador, os usuários do transporte coletivo enfrentam o serviço piorado: longa espera, ônibus lotados, veículos velhos…

Enfim, para qualquer lado que se olhe – do lixo ao patrimônio histórico – fica claro o papel de Sebastião Melo, com seu chapéu de palha, seu sorriso de matuto, sua simpatia, sua lábia populista:  encobrir o desastre que esse “modo de governar” está causando em Porto Alegre.

Eleções 2024: porque Sebastião Melo estava inseguro no último debate

Sebastião Melo, candidato à reeleição em Porto Alegre, estava irreconhecível no último debate na RBS, nesta quinta-feira, a quatro dias da eleição.

Gaguejou, se mostrou inseguro, o que é surpreendente num político experiente como ele.

Um sinal de que algo inesperado está acontecendo, é a evolução das pesquisas.

Em levantamento realizado nos dias 14/16 de setembro, a Quaest registrou 41% para Melo, 24% para Maria do Rosário e 17% para Juliana Brizola.

Já a Futura, em pesquisa feitas nos dias 18 a 23/09, deu 52,9% para Melo e 21,2% para a segunda colocada, Maria do Rosário.  Melo ganharia no primeiro turno, nesse caso.

A pesquisa da Real Big Data, realizada entre os dias 27/28 de setembro, dava 44% de intenções de voto para Melo e 23% para Maria do Rosário.

Outra da Atlas Intel, feita entre os dias 26/29 de setembro, deu 32,4% para Melo e 28,9 para Maria, em virtual empate técnico.  Melo tentou impedir a divulgação desta pesquisa, mas teve seu pedido negado pela justiça eleitoral.

Mas a causa principal do mau desempenho do prefeito no ultimo debate pode ter sido a reportagem publicada na véspera pelo Matinal, revelando um fato que o “jornalismo profissional” ignorou: as investigações da Polícia Federal sobre fraudes na gestão terceirizada do Hospital da Restinga. As irregularidades implicariam num desvio de mais de R$ 173 milhões, segundo a reportagem ( a Secretaria da Saúde informou que desconhece qualquer inquérito e Melo no debate tentou desqualificar o jornal dizendo que “é financiado pelo PT”.

Depois dos escândalo com as compras de livros sem licitação pela secretaria de Educação, que resultou na demissão da secretária e numa CPI… depois do incêndio na Pousada Garoa, com 10 mortes e a revelação de irregularidades nas terceirizações na área da assistência social… esse inquérito para averiguar irregularidades na área da Saúde pode ser fatal para a candidatura do prefeito.

Melo, com sua verve populista, pode ter conseguido minimizar suas responsabilidades pelas graves consequência da enchente de maio.

Mas estas ocorrências em áreas vitais como Educação, Assistência Social e Saúde podem levar sua candidatura ao naufrágio.

 

 

 

 

Presidente do PL gaúcho diz que “aquecimento global é discurso de esquerda e será desmascarado em breve”

Passou quase em branco a bombástica declaração do presidente do PL no Rio Grande do Sul, deputado federal Giovani Cherini, na Convenção do MDB, que formalizou a candidatura do prefeito Sebastião Melo, com o apoio do partido de Jair Bolsonaro.
Apenas a colunista Taline Opitz, do Correio do Povo, registrou um trecho do discurso negacionista radical de Cherini, de 64 anos, que segundo a colunista, “constrangeu os presentes”.
Cherini disse que “em breve, será provado que esse discurso da esquerda de aquecimento global é o mesmo discurso mentiroso de usar máscara, fazer vacina e tudo isso será desmascarado ali na frente.
Giovani Cherini, natural de Soledade, tem suas origens políticas no trabalhismo (cinco mandatos estaduais, dois mandatos federais pelo PDT).
Foi expulso do PDT por votar a favor do impeachment da presidente Dilma, contrariando a orientação do Partido. Foi para o PR e, em 2022, ganhou novo mandato de deputado federal já pelo PL, que fez a convenção conjunta com o MDB, neste sábado, 27,  indicando para vice na chapa de Melo a tenente-coronel Betina Worm.

“Sou mais candidato do que nunca”, diz Melo em evento do MDB

“No dia 15 de abril eu anunciei que seria candidato à reeleição. Se não tivesse dito isso, talvez a minha melhor contribuição neste momento seria dizer que não sou candidato, mas eu disse e, agora, sou mais candidato do que nunca”.

A declaração do prefeito Sebastião Melo foi feita num evento promovido pelo Instituto Ulysses Guimarães para apresentar um programa de ações para reconstrução do Rio Grande do Sul, na segunda feira, 17/06.

O público, umas 50 pessoas, era formado por  deputados, prefeitos e vereadores do MDB. O vice, José Fogaça, representou o presidente regional do partido, Vilmar Zanchin.

Na abertura do evento, o presidente do Instituto Ulysses Guimarães, deputado Alceu Moreira, fez uma defesa do prefeito de Porto Alegre e cobrou do MDB “que até agora ficou calado, enquanto o Melo era culpado injustamente pelos estragos das cheias”.

Melo foi o último  falar. Recordou sua chegada a Porto Alegre, com 18 anos, vindo de Goiás, e sua trajetória, de balconista a prefeito de Porto Alegre.

Fez um balanço dos estragos que a enchente causou em Porto Alegre, enumerou as providências que vem tomando para enfrentar a calamidade e se disse “injustiçado” ao ser apontado como “o único culpado” pelas falhas no sistema de contenção de cheias.

E deu pistas de sua estratégia na campanha eleitoral: mostrar que  a falta de manutenção no sistema de prevenção a cheias é uma deficiência que se acumula há 25 anos. Antes dele, oito prefeitos foram negligentes na prevenção das cheias. “Estou louco por esse debate”, disse Melo. “Vamos chamar quem por lá passou… Por que bombas não mudaram em  25 anos?”

Outro pilar de sua estratégia eleitoral é atribuir ao governo federal a falta de investimentos nas obras de prevenção e a demora na liberação dos recursos.

Essa manifestação é a primeira reação de Melo às críticas generalizadas pelas falhas na manutenção do sistema de prevenção, na rede de esgotos e na drenagem pluvial, que agravaram as consequências da enchente em Porto Alegre. Sua declaração mostra que ele mesmo pensou em desistir da candidatura, tal o desgaste que sofreu.

  • Em sua fala no evento da FUG ele não deixou de fustigar o ex-prefeito José Fortunati, cujo nome circulou como uma possível alternativa na chapa situacionista: “O Fortunati saiu do PT, mas o PT não saiu do Fortunati”.

Rio Grande do Sul: a reconstrução e a dívida “que já foi paga”

O projeto de lei que, desde 15 de maio, suspendeu por três anos o pagamento da dívida do Rio Grande do Sul com a União  “é um crime contra os gaúchos”, segundo o advogado Hermes Zaneti.

“Em três anos o problema estará de volta, agravado porque as receitas tendem a cair. O Estado não conseguirá se reerguer sem uma imediata e profunda revisão dessa dívida com a União”, diz ele, taxativo.

Zaneti, de 80 anos, foi deputado constituinte e integrou o grupo seleto de parlamentares que deu suporte ao trabalho de Ulysses Guimarães na elaboração da Constituição de 1988.

Desde então ele se debruça sobre as relações do sistema financeiro* com o Estado, principalmente a questão da dívida pública do Rio Grande do Sul.

Foi crítico desde a primeira hora do acordo que o governador Antônio Britto assinou com o ministro Pedro Malan, em 1998, origem da situação atual.

É crítico do atual Regime de Recuperação Fiscal, desde quando começou a ser negociado pelo governador Ivo Sartori, em 2017. “Em ambos os casos, as condições negociadas foram péssimas para o Estado”

No acordo de 1998,  Britto consolidou todas as dividas do Rio Grande do Sul com a União, num total de R$ 9,7 bilhões, para pagar em 30 anos, com juros de 6,17% ao ano e correção mensal pelo IGP-DI, um indexador privado, da Fundação Getúlio Vargas, geralmente mais alto que o IPCA, que é o índice oficial da inflação.

Nessas condições o Estado comprometia  13% de sua receita anual com o pagamento da dívida, mais do que gastava com a folha de seus funcionários.

Em 2013, o Rio Grande do Sul havia pago mais de três vezes o valor original da dívida e o saldo devedor, de R$ 47 bilhões, era sufocante.

Em busca de uma saída, o então governador Tarso Genro mobilizou os parlamentares gaúchos e conseguiu no ano seguinte aprovar um projeto que trocou o índice de correção – o IGP-DI pelo IPCA – e redução dos juros para 4%. Reduziu o peso da dívida de 13% para 8% da receita líquida, a partir daí.

Ainda assim, era o que “garroteava o Estado”, como dizia Zaneti na época, ao defender uma solução mais drástica.

Em 2015, ele reuniu em sua casa, em Brasilia. os três senadores gaúchos Paulo Paim (PP),  Lasier Martins (PDT) e Ana Amélia Lemos (PP) e do encontro resultou um projeto de Lei, assinado pelos três, que está tramitando  no Senado  sob acompanhamento do Senador Paulo Paim. Em recente entrevista o senador Paulo Paim disse que o projeto Lei do Senado  561/2015 é “inspiração e construção do Zaneti”

O projeto propõe a troca de indexador, do IGP-DI para o IPCA , não a partir de 2014, como Tarso conseguiu, mas  retroativo ao início do contrato de renegociação, em 1998.  Esse projeto proíbe qualquer outro encargo sobre a dívida, além da correção monetária  sob a justificativa de que não cabe cobrança de juros numa transação entre a União e um de seus  “entes federados”.

Nestas condições, segundo os cálculos que fez, com assessoria de experientes auditores da Fazenda e do TCE*,  Zaneti conclui que  a dívida do Rio Grande do Sul está quitada desde 2013 e o Estado tem a receber R$ 17,7 bilhões de reais pagos a mais.

A conta que a União cobra do Rio Grande do Sul, depois de dois contratos de renegociação, chega aos R$ 97,5 bilhões em maio de 2024. Ou seja, de uma dívida inicial de R$ 9,5 bilhões em 1998, o Estado já pagou R$ 44 bilhões e deve R$ 97,5 bilhões.

Com o projeto aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente da República, para fazer frente às perdas com a enchente, o Estado deixará de pagar R$ 11 bilhões de amortizações e mais R$ 12 bilhões dos juros sobre o saldo no período.  Ao aceitar isso, o Estado abre mão de questionar as condições da dívida.

O que o governo faz, segundo Zaneti,  é empurrar pra frente em vez de enfrentar o problema: “Nos termos em que está posta, a dívida inviabiliza o desenvolvimento do Estado, pelo menos até o ano 2048. É tão grave quanto o descaso com as questões ambientais, diz Zaneti.

Não é só a “dívida indevida” que dificulta as possibilidades de recuperação do Rio Grande do Sul, segundo ele:   “Ao mesmo tempo em que cobra com juros e correção uma dívida que já foi paga, a União não paga o que deve ao Estado como compensação da famigerada  Lei Kandir, que isentou de ICMS a exportação de produtos primários e semi-elaborados. A legislação que previa a indenização do Estado veio sendo alterada e as compensações foram mínimas. Um estudo recente, de técnicos da Fazenda, mostra que desde 1996 até 2025, o ressarcimento ao Rio Grande do Sul deveria ser de R$ 125,8 bilhões de reais”.

Sem desatar essas duas amarras, não haverá verdadeira reconstrução do Rio Grande do Sul, segundo Zaneti.

 

* Zaneti é autor do Livro O COMPLÔ, como o sistema financeiro e seus agentes políticos sequestraram a economia brasileira, o qual deu origem ao premiado internacional   documentário sob o mesmo nome.

Lomba do Sabão: uma reserva estratégica de água e um desafio para Porto Alegre

Adroaldo se criou na Lomba do Sabão. Tem 42 anos, tinha cinco quando seus pais, foram removidos da Vila Matias Velho, em Canoas, para aquela área no entorno da barragem, numa porção do Parque Saint Hilaire, a maior reserva ambiental da Porto Alegre.

“Era tudo campo isso aqui”, diz ele com um gesto que abrange uma grande área, morro abaixo, ocupada por casas e barracos.. A estradinha que sobe o morro, ladeada de casas, tem pequenos desmoronamentos em vários pontos. “Alguns tem medo, mas não tem pra onde ir”, diz Adroaldo.

Hoje, a prefeitura de Porto Alegre estima que 30 mil pessoas vivam nas vilas irregulares que já tomam 10% do parque Saint Hilaire,

A maioria delas estão no entorno dos 75 hectares do lago formado pela barragem da Lomba do Sabão.

A barragem foi construída em 1940, por uma empresa privada que fornecia água para a região central de Porto Alegre.

Desde 1998, a água que abastece  Porto Alegre é captada do Guaiba. A estação da Lomba do Sabão foi desativada.

As instalações do DMAE, remanescentes no local, indicam que por sua a posição ( a 18 quilômetros do centro de Porto Alegre ), pelo volume e pela qualidade da água de vertentes acumulada na barragem, a Lomba do Sabão ainda é uma reserva estratégica pára o abastecimento da Zona Central de Porto Alegre.

A questão é que a barragem exige conservação.  Denúncias do Movimento dos Atingidos por Barragens apontam riscos graves de ruptura por falta de manutenção.

O próprio DMAE, na atual enchente, emitiu alerta para que moradores deixassem as áreas de risco.

Assunto que na reconstrução não pode ser esquecido, inclusive porque um acidente com a represa da Lomba do Sabão – que não é descartado por nenhum órgão de controle – poderá atingir uma região de Porto Alegre onde vivem mais de 200 mil pessoas.

 

 

 

 

Acorda Rio Grande (6)

Tento organizar nestes relatos uma memória que acumulei em meio século de atividade jornalística, a maior parte no Rio Grande do Sul e em Porto Alegre.

Não adianta só ter coragem e olhar pra frente, para reconstruir. Não é só a reconstrução material, essa medida em bilhões, que desafia o Rio Grande do Sul, depois dessa mega enchente.

Num segundo  momento, quando passar a fase das urgências e dos resgates, muitas outras demandas surgirão.

Será preciso avaliar o que vale a pena ser reconstruído e o que deve ser descartado (e tem muita coisa para descartar!) para que se avance num outro rumo, de longo prazo, com horizontes para o futuro.

O recado da enchente é claro: o que vem sendo trilhado é o caminho do desastre.

Será preciso rever muita coisa, será preciso reconhecer que em algum momento de sua rica história o Rio Grande do Sul entrou por um atalho que o está levando ao brejo.

Acorda, Rio Grande!

(Elmar Bones)

Acorda Rio Grande (5)

Tratadas como “boas notícias”, neste cenário de guerra do Rio Grande Sul pós-enchente, duas medidas anunciadas nesta terça-feira, 15 de maio, indicam a visão de curto prazo, de quem toma providências paliativas.

A longo prazo, ambas são “más notícias” para o Rio Grande do Sul.

A primeira, anunciada pelo governador Eduardo Leite,  é a suspensão do pagamento da dívida que o Rio Grande do Sul tem com a  União.

O governador disse que o acordo representa “um “alívio” nas contas do governo Estadual, de 11 bilhões de reais.

Esse “alívio” é relativo, porque há sete anos o governo gaúcho não paga as parcelas do principal da dívida com a União. (Paga apenas os atrasados, renegociados em 30 anos.)  Os pagamentos iriam recomeçar a partir da renegociação com o Tesouro Nacional, agora concluída com a suspensão, por conta da enchente. .

Com a suspensão por três anos, Leite salva seu mandato e empurra com a barriga uma situação insustentável, uma dívida impagável que foi gerada por contratos lesivos ao Estado.

Era uma dívida de R$ 9 bilhões em 1998, quando foi renegociada pela primeira vez. Depois de ter pago algo como R$ 40 bilhões,  nos últimos sete anos, o Estado deixou de pagar as parcelas.  Mas o saldo devedor supera os  R$ 95 bilhões.

Ao aceitar a suspensão por três anos, sem questionar as condições de pagamento da dívida, Eduardo Leite livra seu mandato, mas empurra com a barriga um problema estrutural e perde a oportunidade de uma revisão nos fundamentos dessa dívida que, segundo estudos já feitos na Assembleia, já foi paga. Deixa uma bomba-relógio para o próximo governo.

Já o prefeito Sebastião Melo anunciou a contratação de uma “consultoria internacional” para gerir a reconstrução da capital arrasada pelas águas do Guaíba.

O prefeito, segundo ele mesmo disse, foi procurado pelo diretor no Brasil da Alvarez & Marsal, que é gaúcho,  e se prontificou. Nos primeiros 60 dias, a consultoria não cobra nada, depois haverá um contrato. Algumas concessionárias de serviços públicos, como a Equatorial,  já manifestaram seu apoio ao projeto.

A Alvarez& Marsal é uma consultoria americana que tem escritório no Brasil desde 2004.  Suas especialidades são as soluções corporativas, reestruturações financeiras, gestão empresarial.  Suas credenciais para assumir a gestão da reconstrução de Porto Alegre seriam suas atuações no desastre provocado pelo ciclone Catrina, em New Orleans, e na tragédia de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais.  Mas essas “atuações” são questionadas e sequer aparecem no site da empesa.

Sejam quais forem as qualificações da A&M para atuar em desastres climáticos, sua contratação pela prefeitura de Porto Alegre  sinaliza para o caminho das soluções paliativas, pontuais. Qualificar os quadros técnicos existentes e preparar a estrutura pública, não só para  reparar os estragos de agora, mas para uma ação permanente de prevenção e redução de riscos, seria o prioritário, numa visão de longo prazo.  Em vez disso, contrata-se uma consultoria, que vai se valer do conhecimento local para montar um plano de gestão da crise e, depois da crise, quando termina seu contrato, ela vai embora, levando a expertise em seu portfolio.  Voltará na próxima enchente.

Acorda, Rio Grande.

(Elmar Bones)

 

 

Acorda, Rio Grande (4)

Porto Alegre foi pioneira em planejamento urbano no Brasil. Em 1914, há exatos 110 anos, colocou em prática um Plano de Melhoramentos e, nos anos 1970, foi a primeira capital a ter um Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano.

Jaime Lerner, que ganhou notoriedade mundial pelas soluções urbanas em Curitiba, prestava tributo aos urbanistas gaúchos.

Essa cultura se extraviou. Uma revisão do Plano Diretor, que deveria ocorrer de dez em dez anos, para atualizá-lo, vem sendo adiada desde 2010.

Enquanto isso, mudanças pontuais vão desmontando o plano , substituindo  as regras do ordenamento urbano por medidas de estímulo à expansão imobiliária.

Duas  mudanças localizadas  – no Centro e  no Quarto Distritos – foram feitas pela atual gestão, de Sebastião Melo, com o objetivo estimular o adensamento urbano. O plano diretor foi arrombado, para permitir maiores índices construtivos nessas áreas, mais bem providas de serviços urbanos.

O projeto, anunciado pelo prefeito, é (era) simplesmente dobrar a população do Centro Histórico e do Quarto Distrito, as duas áreas mais inundadas na atual enchente.

Situação análoga ocorreu no Estado.

Em 1961, o governo do Estado tinha um Gabinete de Assessoria e Planejamento, o famoso GAP onde uma equipe multidisciplinar articulada com as universidades coordenava um projeto de desenvolvimento regional. Nem mesmo os governadores nomeados pelo regime militar ousaram extinguir as estruturas de planejamento do governo estadual.

Na redemocratização, uma das primeiras providências do governo Pedro Simon (1987/90) foi criar, por inspiração de Siegfried Heuser, a Fundação de Economia e Estatística, cujo objetivo era produzir as informações necessárias ao planejamento, sem a influência governo.

Tudo isso foi dizimado. Em 2020, a FEE foi extinta, assim como outras nove fundações públicas ligadas à pesquisa no Estado, como a Cientec, a Fepagro, a Zoobotânica, que tinham convênios inclusive com universidades estrangeiras.

No ano passado,  quando decidiu  dar forma ao que seria a grande obra da atual gestão, o  governo estadual contratou, com pompa e circunstância, o BNDES para “modelar” o projeto de revitalização do Cais Mauá, o antigo porto da capita gaúcha.

Uma área de 81 hectares à margem do Guaíba seria concedida para um grande projeto imobiliário.  Para tornar mais atraente o negócio para o investidor privado, permitiu-se a construção de 9 torres de 30 andares na beira do Guaiba. O governo estadual e a prefeitura cogitaram até retirar o muro que, agora, apesar do mau estado, impediu o pior em Porto Alegre.

O Cais Mauá, que se estende por três quilômetros à margem do Guaíba, foi uma das áreas mais atingidas pela grande enchente que inundou Porto Alegre.

(Elmar Bones)

Acorda, Rio Grande (3)

Viralizou a imagem do cavalo Caramelo, como  “símbolo da resiliência dos gaúchos ante a tragédia das enchentes que assolam o Rio Grande do Sul”.

Na imagem daquele cavalo magro que ficou quatro dias num telhado cercado pelas águas, pode-se ver também  a metáfora perfeita de um Rio Grande do Sul, ilhado no seu mundo mítico pastoril, acossado por desafios de todos os lados.

Como um Caramelo, indefeso, o Rio Grande do Sul não tem como se reconstruir sozinho. Não só a reconstrução material, que requer um esforço sobre-humano. Uma reconstrução de valores – histórica, cultural, científica – tem que ser empreendida.

O Rio Grande do Sul tem uma grande rede de rios navegais por onde se deu a ocupação do território   Mas o Rio Grande pastoril, filho do pampa, acredita que suas fronteiras foram conquistadas “a pata de cavalo”.

Caudilhos do pampa, os chefes da Revolução Farroupilha tomaram Porto Alegre, mas esqueceram a única ligação por mar, por onde o Império português fez entrar as forças para derrotá-los.

Pelo porto de Rio Grande entrou a frota de Greenfeld que iria encurralar Bento Gonçalves na Ilha do Fanfa.

O abandono da infraestrutura hidrográfica, o descaso com os regimes dos rios, o desmatamento das margens, a ocupação de áreas de inundação, são exemplos atuais desse erro histórico.

Pode-se dizer,  no terreno das analogias, que essa enchente sem precedentes é uma revolta das águas contra o homem que não reconhece as dádivas que a natureza lhe deu – não sabe aproveitá-las como riquezas e não cuida da sua preservação, não respeita suas margens, suas matas ciliares, os banhados e tudo mais.

Fernando Henrique Cardoso, que escolheu a escravidão no Rio Grande do Sul como tema de seu doutorado em sociologia, pesquisou nas principais obras da historiografia riograndense da época (1962)  e concluiu: elas construíam uma “uma autoimagem deformada do gaúcho”.

Pode ser ressentimento, pelo desprezo com que o jovem FHC, discípulo de Florestan Fernandes, foi tratado pelos doutos da província, que sustentavam a tese da “democracia racial” nas estâncias e a predominância da “cepa lusitana” na formação  do Estado.  Mas ele tem sua razão.  A mitificação do meio pastoril  como fonte cultural única na formação do Estado, não deixa de ser deformação numa sociedade diversificada como é a riograndense, onde convivem mais de 20 etnias e nacionalidades.  Reduzir a história do Rio Grande do Sul aos feitos da Revolução Farroupilha, por maiores que tenham sido, não é uma questão menor, quando se trata de identidade social.

Resulta, de tudo isso, que em pleno século 21, um Estado urbano e industrializado,  se vê simbolizado pelo cavalo Caramelo, salvo da enchente por uma equipe de veterinários e bombeiros de São Paulo.

Acorda, Rio Grande!

(Elmar Bones)