Entrevista: "Foram os consumidores que criaram a primeira feira ecológica"  

“Nada acontece na vida se não houver esse alinhavo, uma junção de elos que vai tendo uma energia de coletivo, com muita clareza do que está sendo construído”.
Foi com esse sentimento que Glaci Campos Alves idealizou junto com amigos a montagem de algumas banquinhas na Redenção, que mais tarde dariam origem à Feira da Coolmeia, considerada a primeira feira ecológica do Brasil. .
Engenheira agrônoma de 74 anos, ex-diretora da Agapan e professora da Escola Técnica de Agricultura (ETA), de Viamão, Glaci falou ao JÁ sobre as origens da Feira dos Agricultores Ecologistas – FAE, que prepara para comemorar neste sábado três décadas de união entre produtores e consumidores em torno da alimentação saudável.

Cleber Dioni Tentardini
A feira foi organizada pelos integrantes da Cooperativa Coolmeia, que instalaram as primeiras banquinhas no dia 16 de outubro de 1989, no Dia Mundial da Alimentação Saudável?
Sim, mas é preciso frisar que a cooperativa foi fundada em 1978 e a feira, na José Bonifácio, aos sábados, começou em 1989. Eu não estava entre os fundadores da cooperativa, como a Ana Lombardi, o Marciano. Até porque eu não vivia no Brasil. Fiquei exilada na França por oito anos devido à ditadura militar e só retornei em 1981, quando fui morar no Bom Fim e vi que o movimento ecológico urbano estava bem forte através de entidades mais antigas como Agapan.
Os pioneiros da ecologia.
Sim, pioneiros do movimento ecológico em muitos aspectos, a ponto de contribuir decisivamente com a elaboração de uma lei estadual sobre os agrotóxicos, em 82, a primeira no Brasil, que viria a inspirar a aprovação de uma lei nacional sobre os venenos, na constituinte de 88. Mas ainda vivia-se a fase da anistia, do movimento Diretas Já, o movimento político-partidário ganhando força novamente, a construção do Partido dos Trabalhadores que começou no final da década de 70.

Esse movimento ecológico era basicamente urbano?
Mas a Agapan conseguiu um feito muito importante ao criar núcleos em vários municípios gaúchos e inspirou o surgimento de outras entidades ecológicas. O grande referencial, o ideólogo era José Lutzenberger, mas começaram a se aproximar outros nomes importantes, como Sebastião Pinheiro, Jacques Saldanha, Magda Renner e Giselda Castro, ambientalistas e integrantes da Ação Democrática Feminina Gaúcha (ADFG), Flavio Lewgoy e tantos outros com muita base teórica e informação.

Onde eram encontrados produtos orgânicos nessa época?
Quase não havia consumidores de produtos biológicos, que é mais correto de dizer do que produtos orgânicos. Quando os jornais gaúchos começaram a dar espaço para grandes reportagens sobre o meio ambiente, principalmente desastres ambientais como em Hermenegildo, foi se criando uma fundamentação dos ecologistas, uma consciência ecológica entre os consumidores. Está aí um dos motivos porque as feiras ecológicas deram muito certo em Porto Alegre. É que foram os consumidores, e não os agricultores, os primeiros a serem estimulados, motivados. Porque não adianta criar um núcleo de produtores de alimentos sem veneno e não ter consumidores, é o que dizíamos aos integrantes de movimentos sociais de países latino-americanos durante os encontros. Eles não entendiam porque as feiras deles não davam muito certo. Provavelmente, porque não houve nesses países um processo de conscientização ambiental tão forte como aqui, capitaneado pela Agapan, que espraiou esse movimento para todo o Rio Grande do Sul.

As feiras ecológicas vêm desse processo de construção de uma consciência ambiental
Muitos não sabem, mas a Coolmeia foi uma cooperativa que tinha por fim uma atividade mais espiritualista. Foi criada por 40 integrantes, a maioria ligada à Grande Fraternidade Universal, preocupada com a qualidade do alimento, a qualidade de vida espiritual. Vivíamos a Era de Aquário. A questão era holística. Soube que fizeram até um mapa astrológico para a criação da Coolmeia. Até aí, a Coolmeia oferecia cursos de ioga, meditação… Era o público alternativo. Então, a partir da construção dessa consciência coletiva, era preciso criar pontos comerciais para vender os produtos.

Uma das entradas, esquina com a rua Santa Teresinha. Foto: Feira Matheus Chaparini/Arquivo JÁ

Dentre os fundadores da cooperativa havia produtores de alimentos naturais?
Basicamente consumidores. Um ou outro poderia ter um sitio que produzisse mel, vegetais. Então, eles visitavam muito o meio rural para trazer alimentos saudáveis.

E como se deu a união entre produtor e consumidor?  
Foi muito interessante. Aqui no estado esse movimento da agricultura ecológica começou aos poucos, com a Pastoral da Terra, através da Teologia da Libertação, alcançou muitos jovens do campo, que cresceram vendo seus pais colocando muito veneno nos alimentos. A Pastoral da Terra começou a trabalhar essa consciência nos agricultores já na década de 70, um processo de convencimento dos agricultores para dizer não ao veneno. Então, as três forças do campo foram a Pastoral da Terra, os técnicos que formaram ONGs (Organizações não-governamentais) para orientar os agricultores a plantar sem veneno e as ONGs estrangeiras, que financiavam as ONGs nacionais. O Centro Ecológico de Ipê, por exemplo, criou toda uma estrutura a partir de financiamento de entidades da Suécia. Na Europa, na década de 70, já se falava em embalagens sustentáveis, reciclagem de lixo, acondicionamento de óleo vegetal. Em Paris, já havia um movimento forte de agricultores e um comércio em feiras bem constituído para a agricultura biológica. E os grandes escândalos já estavam acontecendo. Foram descobertos os fosforados, os clorados que estavam presentes no leite que as mães amamentavam seus filhos, as contaminações, a coctecnologia dura, termo cunhado por Lutzenberger que achávamos muito pedagógico. A partir da Revolução Verde, no período pós-guerra, pegaram as tecnologias descobertas para a guerra e transformaram em insumos agrícolas. A Revolução Verde criou aditivos e solúveis sintéticos. O que eles fizeram com toda a tecnologia criada para a guerra, que teve um alto custo? Transformaram tudo em produtos agrícolas. Primavera Silenciosa (Rachel Carson, 1962), O escândalo das sementes (Pat Roy Mooney, 1987) esses livros foram traduzidos para o português. O livro do Sebastião Pinheiro ‘O Amor à arma e a química ao próximo’ trata disso.

Então, as primeiras bancas com produtos biológicos em Porto Alegre foram instaladas pelos próprios consumidores, ligados à cooperativa Coolmeia?
Bom, tem uma história bem interessante antes. Mas, sim, apresentei a ideia de montar a feira na José Bonifácio, em frente ao prédio dos padres, nem havia a Maomé ali. Então, marcamos uma audiência com o prefeito Collares (1986-89) para apresentar nosso projeto. Ele não se opôs, mas não viu possibilidade de manter sempre presente os órgãos da Prefeitura porque era sábado e teria que ter escalas de plantões para os funcionários públicos. Bom, seria com a gente mesmo, então escolhemos a semana da luta contra os agrotóxicos e dia mundial da alimentação, em 16 de outubro, para iniciarmos a feira. Estavam presentes, no mínimo, umas dez bancas. Chegaram a participar aqui da feira o deputado federal Henrique Fontana, que plantava num sítio em Viamão com um sócio, o Floriano Isolan, ex-secretário da Agricultura do Collares. O Valdo e o Lovato são dos que estão desde o início da feira. Todos os agricultores tinham consciência politica, com influência principalmente da Pastoral da Terra. Então, desde o início nos preocupamos com o regulamento. Nós tínhamos que esclarecer a opinião pública que era uma feira de produtos vendidos direto do produtor, sem intermediário. Agricultores que estavam ali porque se negaram produzir com veneno. Nas primeiras edições, os produtores ficaram espantados porque vinham pra cá e vendiam toda a produção. Foi a primeira feira desse tipo no Brasil. Começou mensal, depois, quinzenal e semanal. Antes, os agricultores tinham dificuldade de vir a Porto Alegre, devido ao custo alto. Em São Paulo, foi criada uma feira aos moldes da nossa cerca de dois anos depois.

Perto do meio-dia começa a movimentação para recolher os produtos. Foto: Cleber Dioni

E qual é a história “bem interessante” que mencionaste?
Eu conheci a Coolmeia na Barros Cassal, depois ela foi para Gonçalves de Carvalho, passou pela João Teles e, finalmente, se estabeleceu na José Bonifácio. Na João Teles, a Coolmeia alugou uma casa junto com a Agapan e a ADFG. Ali, a Cooperativa tinha uma lojinha e uma fruteira nos fundos da casa. O Nelson Diehl, que era naturista, ligado à juventude da macrobiótica, se associou e passou a participar da administração da cooperativa. Trouxe alguns referenciais administrativos para a Coolmeia, cuja gestão era muito empírica. Começamos a participar de todos os eventos de movimentos sociais, mobilizações políticas, e montamos uma banquinha no Brique da Redenção, aos domingos, onde vendíamos produtos não alimentícios, porque não era permitido. Isso foi entre 82 e 88, quando as mobilizações ecológicas foram muitos fortes para garantir emendas na Constituinte de 88, que teve uma metodologia participativa. Uma das nossas bandeiras é para que desburocratizassem a criação de coletivos de trabalho, no caso as cooperativas, para que não precisasse ser grandes cooperativas. Em 86, organizamos um grande evento na área central da Redenção (espelho d’água) para comercializar produtos ecológicos. A feira Tupambaé (palavra de origem tupi-guarani que significa lavoura do comum) foi mais do que isso, levamos artesãos que trabalhavam com papel, o poder público para falar em lixo reciclado, entidades ecológicas para palestras, montamos barracas com bambu. Em 87, fizemos a segunda edição da feira Tupambaé, agora na área do Ramiro Souto, onde montamos uma lona de circo com toda estrutura feita com bambu e cobramos entrada. Havia bancas de entidades espiritualistas, ecológicas, agricultores, e grupos de eventos culturais. Em 88, fizemos uma terceira Tupambaé, em uma escola infantil Amiguinhos do Verde, para levar as questões ecológicas para as crianças. Convidamos várias escolas estaduais, mas pegamos um período de greve do magistério e não deu muito certo. Bom, a partir daí, começamos a pensar em uma feira que fosse permanente, promovida pela Coolmeia, com participação das entidades ecológicas. Ainda montamos outras duas feiras, lá na Secretaria da Agricultura, no Menino Deus, no sábado e às quartas-feiras. Ideia minha. A do sábado, a proposta original era repetir o modelo da Tupambaé, com yoga, artesanato, pintura, livros, alimentos.

Essas são as origens
Desde o início as decisões eram em grupo, para conservar o espírito cooperativista. Nós tínhamos os princípios mais importantes no planejamento estratégico: a visão e a missão. Reuniões periódicas, jantas e cafés uma vez em cada propriedade para as pessoas se conhecerem, trocar experiências. Eles tinham as associações no Interior, com comissões de ética. O MST, em Eldorado, e o MPA, em Torres, entraram depois.

E como vê a feira hoje, ao completar 30 anos?
Tem coisas fortes na feira que não se perderam com o fechamento da cooperativa em 2006. Essa feira não surgiu para resolver problemas de mercado nem para oferecer produtos sem veneno para o consumidor, mas para construir uma nova sociedade, com princípios do movimento ecológico. Por isso que, quando surgiu a ideia de copiar a certificação europeia (de produtos orgânicos), nós questionamos, e aí surgiu a certificação participativa. Porque nós tínhamos gente de alto nível de conhecimento e teorização. Agora que o produto orgânico criou mercado, vamos colocar um selo de certificação de um modelo pronto europeu? Não, nós vamos construir um referencial próprio, como fizemos desde o início, para a certificação participativa. Então, surgiu a Rede Ecovida, formada por consumidores, agricultores e técnicos. Mas percebo que ela está ficando mais individualizada.

Por que?
Porque está estabilizada. Embora a feira tenha criado uma associação que não permitiu que se perdesse o sentido da cidadania, ela teria que ter aventureiros, com suas missões, ou visionários, para dar uma sacudida. Só que é muito difícil mexer em algo que já está estabilizado. A presença dos jovens agricultores é maravilhosa, mas como eles não viveram a construção da feira, pode faltar identidade, então tem que entrar a associação para dar alguma orientação à nova geração. Não pode perder o espírito associativista, como ocorreu em parte com a Coolmeia que, no início da década de 2000, começou a receber pessoas que não vibravam a essência da cooperativa, talvez tenham deslumbrado ali uma forma de ganhar dinheiro porque nem comiam no restaurante da cooperativa.

5 comentários em “Entrevista: "Foram os consumidores que criaram a primeira feira ecológica"  ”

  1. Que ótimo reencontrar Glaci Campos Alves, mentora, visionária dessa experiência que foi a COOLMÉIA e, hoje, a FAE Feira dos Agricultores Ecologistas. Como também faço parte dessa história, é uma alegria poder estarmos vivos e ver que todo sonho que se sonha junto se trona REALIDADE. Parabéns, Já BOM FIM! Bairro da minha família em Porto Alegre. Nutr Claudia Lulkin, de Cavalcante/Chapada dos Veadeiros/GOIÁS

  2. Muito bom. Fui cooperativado da Coolméia
    entre 1988 e 1990. A narrativa é bem precisa e ajuda a compreender bem essa importante História. Com algumas informações próximas acompanhei a feitura de uma monografia sobre essa história da Coolméia. Glaci continua bem afiada e contribuiu muito nesse movimento. Foi um prazer ler esse depoimento. Grande abraço em todos e todas. Muita força, luz e parabéns aos trinta anos da Feira.

  3. Foi muito emocionante este relato da Glaci. Trouxe-me boas recordações. Como ainda estudante de arquitetura ajudei no projeto físico da Tupambaé. Como associado e também parte da diretoria relembro os bons momentos da Coolméia. Pautamos em família nossa alimentação e hábitos pelos ensinamentos e experiências dessa época! Parabéns pelo resgate da memória dessa tão exitosa experiência!

  4. Parabéns pela entrevista. Uma feira q embala os produtos em sacolas plásticas pode ser chamada de ecológica ou deveria ser somente orgânica?

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