Movimento denuncia "intervenção inédita" na Comissão de Anistia

Intervenção do governo Temer na Comissão de Anistia, criada no governo FHC, foi denunciada pelo Movimento por Verdade, Memória, Justiça e Reparação, na sexta-feira.
O Diário Oficial da União publicou duas portarias do ministro Alexandre de Moraes: uma com a nomeação de 20 novos conselheiros e outra com a exoneração de 6 membros atuais da Comissão. Outros 10 conselheiros foram mantidos.
Abaixo, a íntegra da nota do Movimento e, mais abaixo, nota do vice-presidente da Comissão até então, José Carlos Moreira da Silva Filho, professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS, que atualmente concentra suas pesquisas e demais atividades acadêmicas na temática da Justiça de Transição e dos Crimes do Estado.
NOTA PÚBLICA DO MOVIMENTO POR VERDADE, MEMÓRIA, JUSTIÇA E REPARAÇÃO
O governo Temer anunciou uma intervenção inédita na Comissão de Anistia, órgão do Estado brasileiro responsável pelas políticas de reparação e memória para as vítimas da ditadura civil-militar. Pela primeira vez se efetivou uma descontinuidade de sua composição histórica.
Desde a sua criação pelo governo FHC, a comissão é composta por conselheiros e conselheiras com grande histórico de atuação na área dos direitos humanos, mantendo-se, ao longo do tempo, a integralidade dos seus membros e as composições integrais advindas dos governos anteriores. Os eventuais desligamentos de conselheiros(as)sempre ocorreram por iniciativas pessoais dos próprios membros, sendo substituídos(as) gradativamente.
Essa característica sempre assegurou a pluralidade em seu formato que, até pouco tempo atrás, abrigava inclusive membros nomeados para sua primeira composição ainda no governo FHC em 2001. Isto reflete a compreensão da Comissão de Anistia como um órgão de Estado e não de governo.
Além disso, novas nomeações sempre foram precedidas por um processo de escuta aos movimentos dos familiares de mortos e desaparecidos, de ex-presos políticos e exilados, além de organizações e coletivos de luta por verdade, justica, memoria e reparação.
Pela primeira vez na história da Comissão de Anistia foram nomeados novos membros sem nenhuma consulta à sociedade civil e pela primeira vez foram exonerados coletivamente membros que não solicitaram desligamento.
O Diário Oficial da União publicou duas portaria do Ministro Alexandre de Moraes, uma com a nomeação de 20 novos conselheiros e outra com a exoneração de 6 membros atuais que não haviam solicitado desligamento do órgão. Outros 10 atuais conselheiros foram mantidos. Não foram divulgados os critérios desta seletividade.
Os conselheiros desligados são Ana Guedes, do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia e ex-presidente do Comitê Brasileiro pela Anistia na Bahia; José Carlos Moreira da Silva Filho, vice-presidente e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC-RS; Virginius Lianza da Franca, ex-coordenador geral do Comitê Nacional para Refugiados; Manoel Moraes, membro da Comissão Estadual da Verdade de Pernambuco e ex-membro do GAJOP; Carol Melo, professora do núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio; Marcia Elayne Moraes, ex-membro do comitê estadual contra a tortura do RS.
Ao dispensar esse grupo de Conselheiros, o governo Temer coloca a perder quase uma década de memória e de expertise na interpretação e aplicação da legislação de anistia no Brasil.
Uma outra portaria nomeou no mesmo dia, de uma só vez, 20 novos conselheiros e conselheiras. Alguns dos nomes anunciados são vinculados doutrinariamente ao polêmico professor de Direito Constitucional da USP Manoel Gonçalves Ferreira Filho, conhecido teórico e apoiador da ditadura civil-militar instaurada no Brasil em 1964, por ele denominada “Revolução de 1964” e escreveram um livro em sua homenagem.
O jornal O Globo, por sua vez, trouxe uma outra grave denúncia de que pelo menos um dos novos membros são suspeitos de terem sido colaboradores da ditadura militar. Veja aqui: http://m.oglobo.globo.com/brasil/nomeado-para-comissao-da-anistia-aparece-como-colaborador-da-ditadura-20043410
Caso a nova composição da Comissão de Anistia reflita o pensamento de Manoel Gonçalves Ferreira Filho e tenha entre seus membros simpatizantes ou colaboradores com a ditadura trata-se de uma desfuncionalidade e um sério risco à posição oficial do órgão sobre a devida responsabilização penal dos agentes públicos que praticaram crimes de lesa-humanidade na ditadura.
A Comissão de Anistia tem estimulado, como parte dos compromissos internacionais do Brasil, o debate público nacional sobre o alcance da lei de anistia e possui uma posição clara e oficial pela imprescritibilidade e impossibilidade de lei de anistia para os crimes da ditadura, bem como defende o cumprimento integral da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o caso Araguaia, sediada em São José da Costa Rica.
A atual composição da Comissão de Anistia foi responsável pela redução dos valores das indenizações milionárias concedidas no início da era FHC, ajustando-as a valores de mercado, e acelerou o julgamento dos pedidos de reparação, instituindo o pedido de desculpas às vítimas e as famílias.
A Comissão de Anistia também é conhecida internacionalmente por ter empreendido de maneira inovadora e sensível políticas públicas de memória e projetos vanguardistas como as Caravanas da Anistia, as Clínicas do Testemunho, o Projeto Marcas da Memória, e por ter iniciado a construção do Memorial da Anistia, realização de eventos e intercâmbios acadêmicos e culturais, e inúmeras publicações que aprofundam o sentido da Justiça de Transição no Brasil e na América Latina. Estes programas e projetos compõem hoje o Programa Brasileiro de Reparação Integral, reconhecido e celebrado internacionalmente, e fazem parte do rol dos direitos de todos aqueles que foram atingidos por atos de exceção durante a ditadura civil-militar e aos seus familiares. Esses direitos devem ser preservados, sob pena de ruptura com o dever integral de reparação.
Os movimentos de direitos humanos e cidadãos abaixo assinados repudiam a arbitrariedade destas exonerações e nomeações na Comissão de Anistia e denunciam o início da tentativa de desmonte destas políticas que marcam a nossa transição democrática e que são parte de obrigações internacionalmente assumidas pelo Estado brasileiro. Do mesmo modo denuncia o absurdo de ter entre os membros da nova Comissão nomes de pessoas que não possuem posição de oposição enfática de condenação à ditadura e aos crimes militares ou, pior, que possam ter sido colaboradores da Ditadura.
O governo Temer com esta atitude arbitrária comete um erro histórico que afeta a continuidade da agenda pendente do processo de transição democrática, e com isso aprofunda as suas características de um governo ilegítimo, sem fundamento na soberania popular.
São iniciativas muito graves e unilaterais que sinalizam o início de um desmonte na Comissão de Anistia, conquista histórica da sociedade democrática brasileira, e uma ofensa aos direitos das vítimas da ditadura e os seus familiares.
Não aceitaremos retrocesso nas conquistas da Justiça de Transição no Brasil. Nem um direito a menos!
Assinam individualmente ativistas de direitos humanos, professores e intelectuais. Entre eles, Leonardo Boff (teólogo e escritor), Martin Almada- (Premio Nobel Alternativo Y  Miembro Del Comité Ejecutivo De La Asociación Americana De Juristas), Luiz Claudio Cunha (jornalista), Bete Mendes (atriz), Rogério Sottili e Maria do Rosário Nunes (ex-ministros dos Direitos Humanos do governo Dilma), Ana Maria Araújo Freire (viúva de Paulo Freire), e vários nomes de destaque na miltância contra a ditadura, como  Anivaldo Padilha, Aton Fon Filho, Ana Burzstyn Miranda, Iara Xavier, Rose Nogueira, Lucia Alencar, Aluisio Palmar, Amparo Araújo, Derlei Catarina de Luca, Vera Vital Brasil, entre outros.
O documento será enviado para o ministro da Justiça e para a secretária de Direitos Humanos Flavia Piovesan; para a Procuradoria Geral da República, para os ministros Ricardo Lewandowski e Carmem Lúcia (atual e futura presidente do STF), para a Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão Débora Duprat, para a Corte Interamericana de Direitos Humanos e para o Relator da ONU para Justiça de Transição Pablo De Greiff; Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos; Comitê de Direitos Humanos da ONU; Relator da ONU sobre Desaparecimentos Forçados.
…………………….
Carta aberta do professor José Carlos Moreira da Silva Filho, um dos seis conselheiros exonerados da Comissão de Anistia:
Reproduzo a carta firmada pelo CASC (Comitê de Assessoramento da Sociedade Civil), órgão criado para acompanhar, apoiar e monitorar os trabalhos da Comissão de Anistia, e que possui entre os seus integrantes personalidades na luta por verdade, memória e justiça no Brasil e no mundo, lutadores de ontem e de hoje. O documento também é firmado por outras entidades e coletivos da sociedade civil, e por centenas de personalidades dentre intelectuais, artistas, acadêmicos, ativistas e cidadãos do país.
 
Antes de me manifestar sobre o desmonte operado na sexta-feira, dia 02/09/2016 pelo governo usurpador na Comissão de Anistia, quis aguardar esta nota, pois entendo que a minha cadeira na Comissão de Anistia, primeiro como Conselheiro e depois como Vice-Presidente, não é tão-somente minha. Sem querer julgar ou depreciar os companheiros e companheiras que entenderam ser melhor uma manifestação individual já feita e divulgada antes da nota da sociedade civil organizada em torno da nossa pauta, e alguns antes mesmo de efetivado o desmonte, pois compreendo as razões e confesso me senti inclinado a fazer o mesmo tantas vezes, optei por me manifestar apenas neste momento.
 
Decidi, junto com grande parte do Conselho, permanecer na Comissão tanto na interinidade quanto após efetivado o golpe, no claro interesse de, em primeiro lugar, representar um obstáculo ao retrocesso e de interceder junto à nova situação pelos direitos de anistiados, anistiadas, anistiandos e anistiandas,  brav@s brasileir@s que lutaram contra a ditadura civil-militar e hoje estão, em grande parte, idos@s e/ou doentes. Também me preocupei com o legado da Comissão de Anistia e dos projetos ainda em curso, como o Clínicas do Testemunho e o Memorial da Anistia Política no Brasil.
 
Desde o início do golpe decidi que uma eventual dispensa minha como Conselheiro, e que se consolidou na última sexta sem que me tenha sido fornecida qualquer explicação, deveria recair na conta deles. Nunca estive disposto a facilitar o trabalho deles neste sentido. Que assumam a responsabilidade. Sinto-me até valorizado em ter sido alvo, provavelmente pelas minhas posições públicas contra o golpe, contra Temer, contra Alexandre de Moraes e seu discurso de violência. Imagino que o fato de eu ocupar a cadeira da Vice-Presidência também os tenha motivado a me incluir nessa leva. Dá até vontade de emoldurar a portaria e pendurar na parede. 
 
Como a nota revela, o perfil de boa parte dos novos Conselheiros e Conselheiras destoa em muitos aspectos das posições centrais que a Comissão construiu em torno da justiça de transição, e orbita em torno de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, jurista orgânico da ditadura. Veja-se também que o novo Vice-Presidente é nada mais nada menos que Francisco Rezek, ex-Ministro do STF nomeado pelo ditador-presidente João Batista Figueiredo. Sem falar em nomes como o potiguar Paulo Lopo Saraiva, que em 1976 escreveu um texto intitulado:  “A Maçonaria e a Revolução de 1964 – Comemoração do 9.o Aniversário da Revolução”. Escolher pessoas que tiveram um envolvimento de apoio e cumplicidade com a ditadura, ou de pessoas que são afins ao seu pensamento, para compor a Comissão de Anistia é de uma insensibilidade atroz. É causar, somente com este ato simbólico, um forte processo de revitimização das pessoas que foram perseguidas por essa ditadura, é afastar muitos cidadãos brasileiros da anistia, pessoas que hoje estão mais velhas, cansadas e muitas com doenças. É submeter essas pessoas a uma provação desnecessária e cruel.
 
Importa registrar que no mundo todo já se firmaram pactos civilizatórios com relação a ditaduras, torturas, perseguições políticas, cassação de liberdades, desaparecimento forçado, entre outras vilanias que caracterizam verdadeiros crimes contra a humanidade. Após muitas mortes, massacres e genocídios, o mundo chegou a um consenso sobre isso, a legislação internacional é unânime, a ONU, a OEA, a jurisprudência dos tribunais internacionais, a literatura acadêmica que estuda o tema, unânime inclusive sobre a necessidade de que agentes públicos que praticaram crimes contra a humanidade não possa ser beneficiados com os institutos da prescrição e da anistia.
 
Por outro lado, até onde posso vislumbrar, o nome do novo Presidente, Almino Afonso, embora tenha ligações com Serra e com o falecido Orestes Quércia, pode indicar alguma força no sentido de preservar projetos da Comissão e de refrear ações reacionárias e de revisão do que foi feito até aqui (ações que seriam altamente revitimizantes para os já anistiados). Foi Ministro do Trabalho de Jango, e tem o respeito de personalidades importantes na pauta de Verdade, Memória e Justiça. Tudo vai depender do empenho que ele quiser e puder dar à sua presidência, ou se ele será uma espécie de presidente decorativo.
 
Também compreendo e agradeço a solidariedade dos Conselheiros que optaram por sair logo que souberam da minha dispensa arbitrária e da de mais seis colegas. E quero aqui dizer que por enquanto acho importante a permanência dos que, na condição de não dispensados, se dispuseram a ficar. Os golpistas resolveram deixar nove do nosso grupo, dos quais dois decidiram renunciar. Permanecem mais sete. Quero aqui manifestar a minha solidariedade a estes que ficarão, pois terão grandes enfrentamentos pela frente, e além de poderem identificar para onde o vento soprará concretamente, significarão sempre alguma forma de contenção a medidas tomadas de modo temerário (no duplo sentido da palavra) e que impliquem retrocessos.
 
Para mim esses nove anos na Comissão de Anistia foram um período maravilhoso de aprendizado e transformação, no qual conheci, aprendi e me emocionei com as pessoas que lutaram contra uma ditadura civil-militar de 21 anos e que foram responsáveis por tantas conquistas na democracia que tivemos de 1988 a 2016, e que serão certamente imprescindíveis para as lutas que já nos chamam no presente. Foi também uma oportunidade de estreitar laços com minhas companheiras e companheiros do Conselho e das funcionárias e funcionários, especialmente os que mais perto se aproximaram do nosso convívio e do nosso ideal. Hoje sou uma pessoa melhor graças a vocês. Amigos para sempre.
 
Também me felicito por ter conhecido tantas outras e outros amig@s em torno da mesma pauta e voltados à preservação dos direitos humanos e aos esforços de construção de uma sociedade mais justa, menos desigual, menos violenta. Continuaremos juntos em tantos outros espaços, acadêmicos, políticos e culturais.
 
Por fim, um agradecimento especial ao querido Paulo Abrão, que me convidou para esta empreitada que literalmente mudou a minha vida, e me deu a oportunidade de ter feito tudo o que fizemos juntos e do que muito me orgulho e me orgulharei sempre.
 
Agradeço a todas as mensagens de apoio que tenho recebido sobre o ocorrido. Finalizo dizendo que nunca tive apego ao cargo em si de Conselheiro ou de Vice-Presidente da Comissão de Anistia, cargo honorífico que não implica em qualquer espécie de remuneração, mas sempre estive umbilicalmente ligado ao trabalho que fazia na Comissão, pois acredito fortemente nele, e sei que tanto este trabalho que fiz junto com meus companheiros e companheiras nesses nove anos, bem como o que continuarei fazendo em prol dessa pauta em outros fronts, prosseguirá muito além e contribuiu para o nosso fortalecimento democrático, para calibrar a resistência que começa agora, até recuperarmos nossa democracia e nosso projeto emancipatório da sociedade brasileira em relação à pobreza, à desigualdade e à exclusão.
 
Resistir e Lutar Sempre!
Temer Jamais!

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