O secretário nacional de Saneamento do Ministério das Cidades, Leodegar Tiscoski, disse hoje (7/11) que a proposta de desoneração do setor de saneamento básico já recebeu parecer favorável do ministro Mário Negromonte.
A proposta, feita pela Associação das Empresas de Saneamento Básico Estaduais (Aesbe), é reduzir em cerca de R$ 2 bilhões por ano a carga tributária das concessionárias de água e esgoto, para que possam investir na universalização e melhoria dos serviços.
“Dentro do ministério [das Cidades], nossa posição é favorável”, disse Tiscoski, após participar de um evento sobre saneamento básico promovido pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). “Mas isso ainda precisa passar pelo Ministério da Fazenda e pelo Ministério do Planejamento.”
De acordo com Tiscoski, a desoneração viria por meio da isenção do PIS/Pasep e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), pagos pelas empresas. Somados, os dois tributos retiram cerca R$ 2 bilhões por ano do caixa das companhias de saneamento do país.
O secretário nacional ressaltou que, para a proposta avançar, é preciso ter mecanismos para assegurar que o valor da desoneração seja investido em serviços.
O presidente do Conselho Superior de Infraestrutura da FIESP, Rodolpho Tourinho Neto, defendeu a desoneração para o setor de saneamento, mas cobrou melhorias na gestão das empresas. “É preciso modernizar a gestão e os sistemas”. Uma opinião compartilhada pelo vice-presidente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Materiais e Equipamentos para Saneamento (Asfamas), Carlos Alberto Rosito. Para ele, o problema do saneamento no país é de “gestão, gestão e gestão”.
Segundo Rosito, o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis), mantido pelo governo federal, mostra que cerca de 40% da água tratada pelas empresas brasileiras não geram qualquer receita, ou seja, são perdas de faturamento. Dessas perdas, 60% são por falhas na rede de abastecimento de água tratada. As 40% restantes são referentes à água consumida e não paga, seja por falhas no sistema de cobrança das companhias como por fraudes de consumidores.
Para o representante da indústria de materiais e equipamentos para o setor de saneamento, se as empresas reduzissem gradativamente o percentual de perdas de cerca de 40% para perto de 23% nos próximos 15 anos, R$ 29 bilhões seriam adicionados aos caixas para investimento. “Não é nada absurdo. No Japão, o índice de perdas é 4%”, argumentou.
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A defesa da água como um bem público
Para uma plateia formada quase que exclusivamente por militantes de entidades contrárias a privatização da água, ocorreu nesta sexta-feira (21) a reunião final do Seminário Internacional das Águas.
Realizada no plenário da Assembleia Legislativa gaúcha, o evento contou com a presença de cerca de 300 pessoas, nenhum político acompanhou a sessão.
O seminário teve por objetivo realizar uma reflexão sobre o futuro da gestão da água no Estado, além de ser uma preparação para o Fórum Social Temático, a ser realizado no mês de janeiro, em Porto Alegre.
O foco central do debate é a visão que considera a água um bem público, um produto fundamental para a vida e a saúde que não poderia ter caráter econômico.
Entre os palestrantes, o presidente da Corsan, Arnaldo Dutra, expos a posição da estatal, contrária a privatização do setor. “A privatização de serviços veio no bojo do raciocínio de que tudo que vem do Estado é ruim – uma corrente ideológica vinda da Inglaterra, que pregava que a iniciativa privada deveria ocupar todos os espaços. E a água passou a ser objeto de cobiça por ser um bem natural finito e de fácil mercantilização”, analisou.
Arnaldo Dutra fez fortes críticas à maneira pela qual a Corsan estaria sendo retratada na grande mídia e por inúmeros prefeitos do Estado: “há um patrocínio de ataques a empresa. Um rompimento de cano, por exemplo, numa estrutura grande e complexa é quase normal, mas, muitas vezes, usa-se isso como justificativa e prova da ineficiência da estatal”.
Criticou ainda o modelo da privatização usado na cidade de Uruguaiana, primeiro município que firmou acordo com a iniciativa privada no Estado. Segundo Dutra, “foi feito um contrato com uma nova empresa sem nenhum ressarcimento a Corsan, ou a qualquer órgão do Estado, e há ainda vantagens em contrato que garantem empréstimos públicos no caso de eventuais prejuízos em investimentos feitos pela empresa privada”.
A Foz do Brasil, empresa ligada ao Grupo Odebrecht, desde o último mês de junho é responsável pelos serviços de água e esgoto em Uruguaiana.
Para Dutra, a chamada universalização da água precisa de um olhar social, e não apenas um viés econômico. A Corsan atende hoje 324 municípios, cobrando uma taxa igual em todos eles, inclusive nos menores, quase todos deficitários.
Sobre a PEC da água, proposta para mudar a constituição do Estado que visa impedir a entrada de capital privado no setor de abastecimento, foi colocado que não é um projeto da Corsan. A PEC representaria as preocupações do povo – “a Corsan tem que se ajudar, ela mesmo procurar se modernizar e atingir seus objetivos. A PEC discuti o conceito da água com bem público”, finalizou Dutra.
Já Leandro Almeida, representante do Comitê em Defesa da Água Pública/Brasil, e diretor do Sindagua- RS, falou sobre o novo Plano Nacional de Saneamento. O PAC prevê investimentos no setor de R$ 45 bilhões até o ano de 2015. Porém, o próprio governo diz que tais metas não seriam atingidas sem a ajuda do setor privado.
Para Almeida, há promessa do governo de garantias financeiras a empresas que invistam em saneamento, o que faz com que muitos municípios fiquem deslumbrados com a possibilidade de investimento do setor privado.
Com uma defesa enfática do setor público, alegou que não há interesse do setor privado por cidades onde o lucro é pequeno ou nulo, pra ele só o setor publico daria conta de atender comunidades menores, que não possuem atrativos financeiros.
“No caso de Uruguaiana, não houve ressarcimento pela iniciativa privada, a Foz do Brasil, braço da Odebrecht, se diz interessada na cidade em outras do mesmo porte – mas não sabe se quer outras cidades menores”, mencionou Almeida.
Marco regulatório
Vale lembrar que empresas públicas como a Corsan vivem um novo momento deste a regulação do setor, com a lei nº11.445 de 2007. Com o marco regulatório os municípios passaram a ser responsáveis pelo planejamento do saneamento básico. Com isso, as estatais têm um novo papel, são agora prestadoras de serviços, somente cabendo a elas a execução dos trabalhos.
Até 2007 existia o modelo ainda implantado no Regime Militar. Os Estados constituíram empresas públicas ou sociedades de economia mista (Companhias Estaduais de Saneamento Básico – CESBs), que passaram a prestar o serviço nos Municípios, mediante a celebração de contratos de concessão. Com o passar do tempo o modelo mostrou-se antidemocrático e ineficaz, principalmente pelo uso político do setor e falta de investimentos.
Agora, muitos municípios no país têm optado por desvincular-se da companhia estadual, na expectativa de poder oferecer serviços de melhor qualidade a menores tarifas.
Exemplos internacionais
Último a falar no debate, O ambientalista italiano Maurizio Gubbiotti, Coordenador do Comitê Nacional de Legambiente/Itália, destacou as mudanças ocorridas tanto na Europa quanto na América Latina sobre o caminho a seguir na questão do saneamento.
França, Itália, Bolívia, Argentina e Uruguai são exemplos de países que discutiram amplamente o modelo de gestão dos serviços de abastecimento de água e optaram por mantê-lo sob controle público.
Em alguns casos, os serviços que foram privatizados voltaram a ser públicos, em função de reajustes abusivos das tarifas e da exclusão de segmentos da população pobre. Em Paris, por exemplo, os serviços de água foram remunicipalizados em 2010, depois da privatização comandada por Jacques Chirac em 1985, cujo resultado foi a apropriação dos lucros pelos controladores privados, em detrimento dos investimentos.
No caso italiano, o ambientalista salientou a enorme vitória em referendo realizado em junho de 2010, naquele país. Os Italianos rechaçaram a privatização dos recursos hídricos por 95,7% dos votos validos. E 96,2% foram favoráveis à revogação de outro artigo que previa que a taxa de serviço da água fosse determinada tendo em conta o retorno sobre o investimento.
Segundo dados oficiais, 57% dos italianos participaram das consultas. O movimento vitorioso, composto por associações de consumidores e instituições populares recolheram um milhão e 400 mil assinaturas pela realização do plebiscito, e fez uma intensa campanha para que os eleitores votassem.
“Em conjunto, propusemos os referendos pelo retorno ao serviço público do serviço de águas. Com a ajuda de todos, podemos reapropriar-nos deste bem precioso: a água… Existem 2.6 bilhões de pessoas que não tem acesso a água potável e tratamento de esgoto. A maior parte dessas pessoas são mulheres e crianças, e dever de todos lutar pela não comercialização da água” conclui Maurizio Gubbiotti.
Bairros sem água no fim de semana
Dezesseis bairros ficam sem água do início da tarde de sábado até o fim do domingo, em Porto Alegre.
O DMAE instala equipamento no Sistema Moinhos de Vento e vai suspender o fornecimento de água a partir das 17 horas do sábado para os seguintes bairros: Mont’ Serrat, Bela Vista, Petrópolis (parte), Rio Branco, Moinhos de Vento, Independência, Centro, Bom Fim, Farroupilha, Cidade Baixa (parte), Santana (parte),Floresta (parte), Azenha (parte) , Santa Cecília (parte), Auxiliadora (parte), e Higienópolis (parte).
A obra é a primeira etapa da instalação de um sistema de proteção na Estação de Bombeamento de Água Bruta Moinhos de Vento, localizada na Av. Voluntários da Pátria, 2100, no Bairro Floresta.
A iniciativa visa a proteger contra rompimentos a adutora que interliga a Estação de Bombeamento de Água Bruta à Estação de Tratamento de Água Moinhos de Vento, localizada na Rua 24 de outubro, 200, propiciando assim maior segurança na operação deste sistema de abastecimento.
O processo de instalação é composto por três etapas: montagem mecânica, instalação do equipamento e testes de operação. Neste sábado, será realizada a primeira etapa. O restante do trabalho será feito sem a necessidade de interrupção no abastecimento.
O restabelecimento do sistema se daráa partir da tarde de domingo, 4, sendo que nas áreas mais altas poderá demorar mais.
Em caso de chuva o serviço será transferido.
Informações podem ser obtidas no Fala Porto Alegre, pelo fone 156.
Só em 2030 Guaiba estará livre de esgoto
A previsão é do Departamento Municipal de Águas e Esgotos (DMAE) e consta de um folder distribuido pela prefeitura, sobre o Programa Integrado SocioaAmbiental.
O programa é um conjunto de obras que vai ampliar o tratamento do esgoto em Porto Alegre. Hoje 73% do esgoto vai direto para o Guaiba.
Em 2012, segundo a prefeitura, quando o Socioambiental estiver concluído, o volume de esgoto lançado sem tratamento no lago estará reduzido para 23%.
Para zerar o lançamento de esgoto bruto no manancial onde a cidade tira a água para beber, o DMAE quer prazo até 2030.
O material que a prefeitura está distribuindo resulta de uma pesquisa entre jornalistas, onde foi constatada a necessidade de “ampliar informações” sobre o Programa Socioambiental.
Junto com o folder, um dossiê “contrapondo manifestações que geraram informações distorcidas no processo da licitação do PISA”.
Em quatro página, o texto procura responder às acusações e denúncias que circularam na imprensa sobre favorecimento de empresas na disputa pelas obras.
As obras do programa iniciaram em dezembro de 2007 e muitas já estão em fase de conclusão, como é o caso das redes da Restinga, Ponta Grossa e Cavalhada e a estação de bombeamento da Ponta da Cadeia.
O Socioambiental conta com recursos do BID, da Caixa Federal e da prefeitura de Porto Alegre, num total de R$ 586,7 milhões.
O arroio Dilúvio, ilustre ignorado
Por Felipe Prestes, especial para o Jornal Já
Prefeitura vai levar 586 milhões do BID para despoluir o Guaíba, mas nada faz pelos 17 quilômetros do arroio mais sujo da cidade.
Garças tem habitat no arroio Dilúvio (Felipe Prestes)
“Ir até lá sozinho, sem a companhia de um guarda, é muito perigoso”, alerta um funcionário da prefeitura. Refere-se à nascente do arroio Dilúvio, no meio do mato, no Parque Saint-Hillaire, em Viamão. Longe da área de vivência do parque, em um lugar inóspito que serviria de acolhida para bandidos, tem início a trajetória de 17.605 metros do riacho que depois divide uma das principais avenidas de Porto Alegre.
No parque, a água flui limpa para a superfície. Mas ali mesmo a falta de acesso da população à infra-estrutura básica se faz sentir. “As vilas próximas à nascente não possuem saneamento básico. Pequenos cursos d’água que não nascem no Saint-Hilaire acabam levando a poluição para o Dilúvio”, explica o biólogo da Secretaria Municipal do Meio-Ambiente de Porto Alegre (Smam), Rodrigo da Cunha. Mesmo que apenas 10% da unidade de conservação façam parte do município, a secretaria é responsável pela preservação do local.
Após se esconder embaixo de vias urbanas, canalizado, e depois se embrenhar nas matas do morro Santana, o Dilúvio reaparece espremido entre o pé deste morro e os fundos de oficinas, depósitos de ferro-velho, brechós, restaurantes e moradias localizadas na Avenida Bento Gonçalves, já em Porto Alegre. Ainda rodeado por mata densa, recebe sofás, colchões, todo tipo de saco plástico e restos de materiais de construção.
Mais estreito, devido às estruturas de concreto construídas nos barrancos das duas margens, o riacho passa por baixo da Avenida Antônio de Carvalho e vira característica marcante da Avenida Ipiranga.
Segundo o “Guia Histórico de Porto Alegre”, de Sérgio da Costa Franco, a canalização começa a ser pensada em 1905, por causa das constantes cheias. Entretanto, a obra só foi levada a cabo após a grande enchente de 1941.
Até então, o Dilúvio saía da Azenha e percorria a Cidade Baixa. Naquela região, nas palavras do escritor, “começava a descrever extensos meandros, em terreno baixo e alagadiço, até alcançar a antiga Ponte do Menino Deus, que dava acesso à Av. Getúlio Vargas. Um destes meandros, imediato à Praça Garibaldi dava uma volta de tal modo acentuada, que quase encerrava uma ilhota no seu interior”. Foi nessa região, conhecida então como Ilhota, que nasceu, em 1914, o compositor Lupicínio Rodrigues. Conta-se que o pai de Lupi teve que buscar uma parteira de barco, devido a mais uma enchente.
Para evitar fatos semelhantes, a obra que se arrastou por duas décadas tratou de fazer uma retificação, deslocando esta parte do arroio, formando um único curso reto, até o fim da Avenida Ipiranga. Deslocou também uma bifurcação que ia em direção ao Centro, e passava por baixo da Ponte de Pedra. E os porto-alegrenses já estão tão acostumados que muitos nem se perguntam por quê, afinal de contas, há uma ponte naquele pequeno espelho d’água.
A última alteração se deu nos anos 70, quando o arroio se estendeu até o aterro criado para que surgisse o Parque Marinha do Brasil. Hoje, doze quilômetros do leito são canalizados.
Cláudio Frankenberg, coordenador acadêmico da Faculdade de Engenharia e diretor do Instituto de Meio Ambiente da PUC-RS, explica que o Dilúvio recebe as águas de diversos pequenos córregos que a cidade foi soterrando para construir novas vias, novos bairros. Sua sub-bacia é responsável pelo escoamento de água em uma área de cerca de 83km2 – mais de oito mil campos de futebol – na qual vivem aproximadamente 446 mil pessoas, na capital e em Viamão.
O que poucos sabem também é que o riacho não foi projetado para ser um grande recebedor de esgoto cloacal. Segundo o Departamento de Esgotos Pluviais de Porto Alegre (DEP), o arroio carrega este tipo de detritos de apenas três bairros de Porto Alegre até o Guaíba. Contudo, o mesmo problema de ligações irregulares de esgoto cloacal encontrado na nascente ocorre por toda a parte, nestes pequenos arroios que vão desembocar no Dilúvio, além de ocorrer diretamente no próprio.
“O sujeito descobre que há um duto perto de onde vai morar, faz uma pequena obra e manda seus dejetos para lá, sem saber que se trata de algo que escoa a água da chuva”, relata Frankenberg. As dificuldades para se descobrir essas ligações são grandes, o que dificulta a ação do estado em reparar sua omissão no provimento de necessidades básicas. “Para testar se uma casa tem esgoto irregular é preciso entrar nela, jogar corante no vaso sanitário e ver onde ele vai parar. Precisa da autorização do morador, o que é complicado. Já há robôs que podem ser colocados na rede de esgotos e rastrear isso, mas é um labirinto muito grande, também é difícil”.
Do pé do morro Santana até a foz, pode-se fazer uma imagem como esta em qualquer trecho do Dilúvio. (Felipe Prestes)
Essa foi uma das causas da poluição no arroio apontadas por uma análise preliminar feita pelo Núcleo de Estudos do Dilúvio, chefiado por Frankenberg. Em 2007, um grande número de peixes apareceu morto na frente da PUC-RS, o que motivou a criação deste grupo. Entre os outros fatores, estão a sujeira que provém da própria água do esgoto pluvial, pela sujeira das ruas; e o lixo que é jogado diretamente no riacho. “Além disso, não sabemos, por exemplo, se um posto de gasolina não joga produtos químicos no arroio”.
A grande quantidade de terra no leito colabora para a acumulação da sujeira, por isso há rotineiramente dragas na Avenida Ipiranga retirando este barro. “Um dos entraves para uma maior eficácia é que a Prefeitura de Porto Alegre não possui este equipamento, precisando alugar toda vez que vai fazer este processo”, lamenta o professor universitário. Ao todo, o córrego recebe anualmente 50 mil metros cúbicos de terra e lixo, o equivalente a dez mil caminhões-caçamba cheios.
O pulso ainda pulsa
Chama atenção que com tantos problemas o Dilúvio atraia cada vez maior população de aves, e ainda répteis e peixes, inclusive nas partes onde há mais selva de pedra no entorno. O biólogo da Smam, Rodrigo da Cunha, acredita que isso possa confundir a população e alerta que não é necessariamente um bom sinal. “Os animais que ali se encontram, como garças, bagres e lambaris, além de tartarugas, são altamente resistentes à poluição. O arroio não vai bem”.
Tartarugas resistem à sujeira do Dilúvio. (Felipe Prestes)
Muitas pessoas também usam as margens do riacho para descansar e fazem das pontes um teto para morar. Das sinaleiras da avenida, tiram o ganha-pão. Uso de drogas, conflitos com os familiares e incompatibilidade com o tipo de assistência oferecida pelo estado nos albergues, vão levando gente humilde a se juntar em verdadeiras repúblicas em torno do Dilúvio.
Na esquina da Santana com a Ipiranga, Gabriel vende santinhos amassados para os motoristas. Mora com o pai, no bairro Glória, e lhe faltou apenas um ano para concluir o segundo grau. Como gosta de “tomar umas”, prefere evitar brigas com o velho, passando a maior parte da semana com um pessoal que dorme embaixo da marquise de uma loja de pneus localizada naquele entroncamento.
Quem disse que morador de rua não pode ter jardim? (Felipe Prestes)
No barranco da mesma esquina, Rodrigo tem um jardim. O morador de rua recolhe plantas quase mortas que encontra no lixo, além de utensílios como vasos, e cuidadosamente trata de dar nova vida aos vegetais. Segue à risca os ensinamentos da mãe, com quem morava no Morro da Cruz, até a morte dela. “Um dia meu irmão me disse que três caras armados invadiram lá e eu nunca mais voltei. Tinha que ver o jardim que tinha lá”. Pretende sair da ponte e poder ser um jardineiro profissional.
Embaixo das plantas de Rodrigo, num degrau que o concreto faz em cima do Dilúvio, Kátia e o marido usam uma lona como casa. Ela diz ter vinte e um anos, embora aparente menos idade. Jovem como a maioria por ali, a garota conta que veio de Uruguaiana no ano passado. Viciada em crack, diz com naturalidade que transa por cinco ou dez reais. “Vim de avião para Porto Alegre com a minha família. Um velho com quem eu ficava pagou a passagem para todos nós. Eu disse para ele que queria conhecer a cidade”.
Kátia mora na rua para não vender seus bens
que ficam na casa da mãe. (Felipe Prestes)
Kátia tem um filho de um ano chamado Taison, em homenagem ao atacante do Internacional. A touca do Grêmio que usava havia sido emprestada por um amigo, por causa do frio. Quem cuida do menino é a avó. Os dois agora moram no bairro Bom Jesus. “Eu moro na rua por que não quero vender as minhas coisas por causa do vício. Tenho dvd, televisão”, conta.
O marido não se importa com a profissão de Kátia. “Ele me ajuda e eu ajudo ele”, resume. Foi quem a tirou das imediações do Shopping Praia de Belas, para morar no bairro Santana. Kátia foi convencida por causa da sopa, que é servida por um grupo de caridade a quem dorme embaixo da marquise da loja de pneus.
Gabriel conta que a relação entre os moradores de rua e o estabelecimento é boa, já que os primeiros só se instalam na frente do ponto de comércio após o fechamento deste. O problema maior é com a Prefeitura, que a qualquer vacilo recolhe os pertences de quem quer que viva na rua por aquelas bandas. A Prefeitura, aliás, começou em 2007 a fechar com concreto e tijolos a parte de baixo de todas as pontes que atravessam o Dilúvio. Somente as pontes históricas foram preservadas.
Uma destas construções, na Avenida Azenha, é habitada por um grande grupo de jovens, que se revezam por ali. De dia há sempre alguns sentados em colchões na calçada, com vários cachorros, descansando, enquanto outros se viram no malabarismo para conseguir um dinheiro.
Tiago dorme em um mocó embaixo de ponta histórica na Azenha. (Felipe Prestes)
Tiago, de 25 anos, conta que é possível faturar cerca de R$ 40 por dia com apresentações na sinaleira, ou simplesmente pedindo. Não é de muitas palavras. Arrepende-se quando revela que dentro da estrutura da ponte tem bons locais para dormir. “Revelei o mocó do Batman”, sorri. Só em dias de muita chuva é que é preciso se deslocar até uma marquise próxima por que o arroio enche demais. Começou a viver no local há cerca de três anos, motivado pelo uso de drogas, e pelas brigas com a mãe, com quem morava na Restinga. “Aqui é todo mundo unido, é uma família”.
Mais falante e sorridente, Glessias, de 21 anos, possui casa na Restinga, que comprou em uma área invadida. No entanto, freqüenta a região desde os dez anos, quando vinha buscar loló. Já teve visual punk, vestido sempre de preto e usando moicano, por isso ganhou o apelidado de “Sombra”. Foi nessa época que tatuou no braço os dizeres “Fascismo é uma merda”. Não costuma ficar muito tempo em casa, por não poder levar no ônibus o dálmata Beethoven.
A história da amizade entre o bicho e o jovem é inusitada. Há cerca de quatro anos, o antigo dono do animal pagou para Glessias matá-lo. O guri pegou o dinheiro e o cachorro para si. Também na Restinga mora sua esposa, que está grávida. O “Sombra” diz que sempre quis ter um filho, e que a mulher não se importa com sua ausência. “Ela sabe que eu sou locão”.
Passado e presente
No que seria uma tarde comum de trabalho, alertado por um colega, o economista e fotógrafo amador Cilon Estivalet desceu às pressas da repartição na Borges de Medeiros e fez o registro de uma enorme mortandade de peixes. “Cadáveres dos bichos, que tentaram passar do Guaíba para o riacho, tomavam toda a extensão dele, da foz até a Avenida Praia de Belas”, relata.
1972: família de pescadores contempla a mortandade de peixes no Dilúvio (Cilon Estivalet)
Era o ano de 1972, e aquela cena acabou o ajudando a tomar uma grande decisão na vida. “O (José) Lutzenberger estava começando a alertar a cidade sobre o mau cheiro causado pela antiga Borregard, a gente lia muito marxismo, e eu acabei me tornando ambientalista”. Estivalet optou pelo engajamento e hoje esta à frente da Associação Ecológica Canela (Assecan), que criou no município serrano.
A fotografia acabou sendo deixada de lado, mas o ensaio que fez naquela tarde se tornou um forte registro sobre o meio-ambiente em Porto Alegre e de pessoas que dependiam daquelas águas, sendo exposto em várias localidades no Rio Grande do Sul. Quando foi até a margem do riacho, o fotógrafo eternizou uma família de pescadores que tirava dali seu sustento, habitava uma ponte e se locomovia de barco pelo Dilúvio.
Diferentemente dos atuais moradores de rua, o casal – com um filho – vivia do arroio e do Guaíba, não da avenida; e as drogas ainda não eram uma questão que coloca em xeque a saúde pública no Brasil. Curiosamente, o ambientalista acredita que a poluição era maior naquela época, com uma camada de espuma cobrindo o curso d’água, principalmente nas épocas de pouca chuva.
O professor de matemática Milton Ribeiro morou na Avenida João Pessoa quase na esquina com a Ipiranga, do nascimento à juventude, entre os anos de 1957 e 1977. Ele se lembra da mesma camada de espuma e também de uma visão bem mais leve que a classe média tinha do Dilúvio e dos habitantes das redondezas. “Dava para atravessar por baixo da ponte sem ter de pisar na água, então era o melhor lugar para se brincar de esconde-esconde”.
Gatos e funcionários de uma revendedora de carros eram os que mais sofriam com os piás. “Entre as brincadeiras preferidas estavam jogar os gatos ponte abaixo, e estourar rojões dentro da loja”, recorda.
Volta e meia as crianças se deparavam com algum mendigo dormindo nas redondezas, mas os pais não demonstravam qualquer preocupação com a presença deles, ou com o fato de a garotada brincar perto daquela água poluída. “Nós éramos criados bem mais soltos em relação a como a classe média cria seus filhos nas grandes cidades hoje em dia. Muito pouco se ouvia falar em coisas como assalto e pedofilia”.
Tal ingenuidade Porto Alegre foi perdendo ao longo dos anos. Manteve-se o descaso com a degradação da natureza e com a população. O arroio Dilúvio é um espelho de como a cidade cuida de si. A saúde do riacho se assemelha à dos atingidos pela epidemia do crack. Problemas como a falta de renda, moradia digna, instrução e saúde pública fazem com que as trajetórias do esgoto cloacal irregular e dos moradores das pontes se cruzem no início e no fim do percurso.
As pessoas nos carros que voam pela Avenida Ipiranga raramente param pra ver a paisagem.