Estupro mancha imagem das Unidades Pacificadoras no Rio

As 38 Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) instaladas desde dezembro de 2008 em várias favelas do Rio de Janeiro estão definitivamente no olho do furacão.
Depois de vários casos de corrupção e violência desenfreada que já vinham manchando a imagem de diversas unidades, o contingente pacificador destacado na favela do Jacarezinho, uma área da zona norte do Rio outrora conhecida como Faixa de Gaza, é agora alvo de uma denúncia de estupro tendo como vítimas três jovens de baixa renda, uma delas menor de idade.
Segundo as vítimas, o crime foi cometido na madrugada de terça-feira por quatro agentes que já estão sob prisão preventiva e que serão julgados por tribunais da Polícia Militar.
Dessa maneira, o mesmo projeto que surgiu sob a aprovação quase unânime dos principais especialistas em segurança pública enfrenta hoje uma crescente resistência por parte de um setor nada desdenhável das favelas ocupadas, e a nova denúncia solapa ainda mais a sua credibilidade.
“É um incidente muito grave, que demonstra que a relação entre a polícia e essas comunidades está muito longe do objetivo inicial do projeto das UPPs”, opina o sociólogo Ignacio Cano, especialista na questão da violência.
Diante da gravidade do fato, a Polícia Militar se apressou em emitir uma nota afirmando que “as medidas adotadas serão rigorosas, incluindo a prisão e a possível expulsão da instituição [dos autores do crime, uma vez que se confirme sua culpa].
O comando da PM lamenta o episódio e repudia esse crime bárbaro, ressaltando que não coincide em nada com o comportamento que se espera de um policial”, conclui a nota.
“É uma reação positiva, já que se abre a possibilidade de uma investigação, algo que não tem sido frequente na Polícia Militar. Isso é fundamental para que se acredite no sistema e para que as pessoas continuem denunciando esses crimes”, comenta Cano.
Já a socióloga Jacqueline Pitanguy, coordenadora-executiva da ONG Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia), afirma que “quando quem comete esse delito é um agente do Estado, a mulher passa a ser triplamente vulnerável, já que é muito mais difícil que sua denúncia chegue a bom porto e, o mais preocupante, que ela não sofra represálias”.
A agressão relatada pelas vítimas, que já identificaram os agressores entre 60 agentes apresentados para reconhecimento, aconteceu a poucos metros de umas das vias ferroviárias que cruzam a favela do Jacarezinho. Ali costumam se reunir consumidores de crack, fazendo dessa zona uma das cracolândias mais conhecidos da zona norte carioca. As operações policiais e de agentes sociais são permanentes na região, embora até agora não tenham conseguido acabar com o acampamento improvisado de consumidores.
Segundo os primeiros relatos, uma patrulha de seis agentes se aproximou das jovens e as obrigou a irem até um local próximo, onde o estupro coletivo teria ocorrido. O Instituto Médico Legal (IML) do Rio submeteu as vítimas a perícia para determinar a autoria do crime. Os soldados Gabriel Machado Mantuano, Renato Ferreira Leite, Wellington de Cássio Costa Fonseca e Anderson Farias da Silva, todos com menos de três anos de serviço na Polícia Militar, encontram-se detidos no presídio militar de Benfica, no Rio do Janeiro. Só um deles confirmou o estupro.
O episódio põe sobre a mesa o debate a respeito da violência sexual, frequentemente ofuscado pelas notícias de tiroteios, homicídios e autos de resistência no Rio de Janeiro. Pitanguy acredita que “enquanto o tráfico de drogas imperava nas favelas atualmente ocupadas pelas UPPs, as mulheres estavam mais indefesas. Uma vítima de violência doméstica ou sexual dificilmente podia sair da comunidade e denunciar [o caso] à polícia”.
Segundo dados contabilizados no Dossiê Mulher, elaborado anualmente pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro, o número de estupros no Estado vem crescendo exponencialmente desde 2008. Em 2012 (6.029 casos), 82,8 % das agressões sexuais tiveram como vítimas mulheres, a maioria entre 5 anos e 19 anos de idade, brancas ou pardas, e solteiras. De acordo com Cano, “não se sabe se esse aumento se deve ao fato de que as pessoas denunciam mais ou à ocorrência de mais estupros”.
Pitanguy acrescenta que “a partir do momento em que a violência sexual tem uma maior visibilidade pública e passa a ser um fenômeno descrito nas estatísticas criminais, já estamos diante de um avanço. O mais perigoso é quando é invisível, quando não é contabilizada e quando não há espaços para denúncia. Durante muitas décadas, no Brasil, essa era a situação”. (Reportagem El Pais)

Polícia do Rio mata mil por ano

Mateus Frizzo | Marcus Leonardo | Bruno Bruno Lourenço

*Colaborou Tiago Baltz

A Polícia Militar do Rio de Janeiro matou uma pessoa a cada oito horas nos últimos dez anos, segundo estatística da própria Secretaria de Segurança. A maioria dos mortos tombou na chamada “guerra ao tráfico” e tem como certidão de óbito um documento chamado de auto de resistência – é o jeitinho da PM carioca “fazer justiça” ignorando o Código Penal Brasileiro.

O caso da juíza Patrícia Acioli, assassinada por policiais numa emboscada, faz parte desse quadro. Nos últimos anos, a juíza mandou mais de 60 policiais à cadeia, boa parte deles acusados de abusar de um recurso legal que concede à Polícia Militar do Rio de Janeiro salvo-conduto por mortes cometidas em operações. É o auto de resistência, portaria instituída na plena ditadura militar para legitimar mortes em oposições armadas ou, como ainda é comum, encobrir casos de execuções sumárias.

Por condenar este e outros tipos de crimes semelhantes, Patrícia foi assassinada com 21 tiros numa conspiração de PMs, com a participação inclusive de um comandante de batalhão.

Tiroteio com mortos numa favela? Os policiais que participaram do incidente redigem um auto declarando-se vítimas de ataque, tendo, em legítima defesa, revidado e ocasionado mortes. O morto passa então a ser réu. Réu morto, caso encerrado na maioria das vezes.

Os legisladores que escreveram a Constituição de 1988 esqueceram de revisar a portaria de 1969 que instituiu o auto de resistência. Ela só mudou agora, depois do recente assassinato do menino Juan, de 11 anos, cometido por PMs. O corpo de Juan foi atirado num rio com a intenção de eliminar evidências.

A Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro determinou, a partir do caso, que uma perícia independente deverá ser feita quando a polícia matar alguém e lavrar um auto – providência simples, procedimento padrão no resto do país.

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Executado por PMs, André foi o primeiro ‘auto de resistência’ registrado após a instalação das UPPs.

Ao longo de anos, vários autos foram desmascarados. Por pressão de familiares e movimentos sociais comprovaram-se execuções encomendadas, vinganças, puro sadismo, enganos…

Para dar voz e rosto às famílias das vítimas inocentes desta guerra, o Jornal Já enviou os repórteres Bruno Lourenço, Marcus Leonardo Bruno e Mateus Frizzo aos morros cariocas por 15 dias, em julho. Eles entrevistaram familiares dos que tombaram frente a PMs matadores que se escudaram atrás de autos de resistência e outras farsas. Estas são suas histórias:

Vítimas da violência policial

Faltava apenas uma semana para o funcionário do Carrefour André Ferreira, 21 anos, se tornar pai. Como de costume, fora comprar o lanche da noite para a mulher Ana Paula Vieira no Point do Açaí, morro do Pavão-Pavãozinho, Zona Sul do Rio. No caminho, dois PMs da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), à paisana, o abordaram. Conforme testemunhas, a ação foi truculenta. Truculência é a palavra de ordem nos depoimentos sobre a conduta da polícia na favela. Após revista, pediram os documentos do rapaz e o liberaram. Ao dar as costas, André foi alvejado com um tiro na altura da região lombar. Era dia dos namorados.

Caído no beco, ainda consciente, suplicou para ficar vivo e ver sua filha nascer. Os PMs o deixaram no chão. Coube aos vizinhos prestar socorro. O táxi de José Gonçalves serviu de ambulância para levar o ferido até o Hospital Municipal Miguel Couto. A mulher chegou em seguida, já passava das duas da manhã. Os dois policiais na porta da UTI barraram sua passagem. “Disseram que se tratava de um criminoso”, explica a viúva de 17 anos, mãe da bebê Ana Vitória, testemunha muda da tragédia.

Ana Paula, mãe e viúva aos 17 anos, não recebe assistência do Estado para cuidar da filha Ana Vitória.
Ana Paula, mãe e viúva aos 17 anos, não recebe assistência do Estado para cuidar da filha Ana Vitória.

Este foi o primeiro auto de resistência registrado em uma favela pacificada no Rio de Janeiro, dia 12 de junho de 2011. O jovem corresponde ao perfil da maioria das vítimas da polícia: pobre, negro e favelado; homens de 14 a 21 anos com pouco estudo, até a 5ª série.

O povo se mexe. A Associação de Moradores do bairro e a ONG Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência agora buscam na Justiça indenização para a família e punição aos policiais. Uma das batalhadoras de ONGs é Deize Silva de Carvalho. Ela vem dando o maior apoio para Ana Paula e Ana Vitória, pois já passou por situação semelhante.

"Me entregaram um ser humano estraçalhado", diz Deize, que teve o filho morto dentro de um Centro de Triagem para menores
“Me entregaram um ser humano estraçalhado”, diz Deize, que teve o filho morto dentro de um Centro de Triagem para menores

Deize traz o nome do falecido filho tatuado nas costas: Andreu. Aos 17 anos, ele  foi conduzido ao Centro de Triagem e Recepção (CTR) da Ilha do Governador, por suposto envolvimento no assalto a um coronel norte-americano. A mãe admite que Andreu já havia cometido pequenos delitos, mas assegura que vinha se recuperando. Pretendia visitar o pai, brasileiro residente nos Estados Unidos.

A versão oficial foi que o rapaz tentou fugir do CTR. Teve dentes, costelas, maxilar e pescoço quebrados. A perícia concluiu que o corpo apresentava mais de 30 perfurações feitas com cabo de vassoura, resquícios de sabão em pó na boca, marcas de estrangulamento.

Deize recebeu um cadáver. “Me entregaram um ser humano estraçalhado”, lembra-se ela. As autoridades informaram que Andreu morreu ao cair do telhado e quebrou o pescoço.

Não só no Rio de Janeiro, mas em todo o Brasil, não existem meios independentes para investigar abusos policiais com imparcialidade. A investigação dos crimes cumpre então um rito fajuto. “A Polícia Militar não fiscaliza, a Polícia Civil não investiga, o Ministério Público é omisso e a sociedade civil aceita”, diz o sociólogo Ignácio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio.

Despreparo

Com salário base de R$ 900, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) possui 41 mil homens na ativa. Na UPP do Pavão-Pavãozinho/Cantagalo são 177; 25 destes, oficiais. Um dos comandantes da Unidade, tenente Pesqueira, reconhece o despreparo da corporação: “a formação da PM do Rio é precária para a responsabilidade que temos e ninguém se revolta com isso, só se revoltam quando o PM mata”.

Menos de 24 horas após ter sido baleado pelas costas, André Ferreira faleceu, não resistindo à segunda cirurgia a que foi submetido. A menina Ana Vitória nasceu no dia anterior à missa de sétimo dia do pai. Dorme embalada pela mãe que relembra o primeiro encontro com o marido. Na favela, marido e mulher não precisam de papel passado.

Ana Paula já trocava olhares com André nos bailes funk do Pavão-Pavãozinho. Numa certa noite de 2007, os dois ficaram e trocaram telefones. Marcaram de ir à praia de Copacabana na manhã seguinte. Começava ali o namoro que duraria quatro anos. Ela tinha 13, ele 17.

Na época, André morava na comunidade Jardim América e era cobrador da Kombi que o pai dirigia. Para visitar Ana Paula, pegava dois ônibus, por isso logo decidiram morar juntos; uma semana na casa de cada. Em 2010, aos 16 anos, ela ficou grávida. Quem teve que dar a notícia para a mãe da menina foi o genro, enquanto Ana se refugiava na casa da irmã.

A sogra aceitou bem, chamou-a para uma conversa e discorreu sobre o peso da responsabilidade. No início, a família não gostava muito do relacionamento, mas conhecendo melhor André, aprovaram. Ele queria casar na igreja – como a mãe, era religioso. Não fumava nem bebia. Também não gostava que sua mulher bebesse.

Em decorrência da gestação, o futuro pai deixou de vez sua casa e os nove irmãos e se mudou para o Pavão-Pavãozinho. De acordo com a mãe, a manicure Missilene Maria de Lima, André sempre quis deixar o Jardim América por medo da guerra entre traficantes e policiais. O jovem e a UPP chegaram quase juntos ao morro.

No Registro de Ocorrência André aparece como réu, acusado de tráfico de drogas e porte ilegal de arma de fogo. O soldado Paulino Mendes Pereira narra, na dinâmica do fato, que fazia patrulhamento de rotina com seu colega, soldado Goulart, quando avistaram dois suspeitos. Ao realizar a abordagem, ouviram um tiro.

Paulino então efetuou um disparo “revidando a injusta agressão”. André, prossegueo relatório, trazia consigo 63 sacolés contendo pó branco, um rádio transmissor, um revólver calibre .32 e munição. A versão da polícia diz ainda que o atendimento não foi realizado porque populares se aglomeraram no local e arremessaram pedras.

O laudo final ainda não foi divulgado, porém, o tenente Pesqueira assegura que André de Lima Cardoso Ferreira, mulato sem ensino fundamental completo, era traficante e adianta: “ele não trabalhava desde dezembro do ano passado. Eu posso antecipar pra vocês que o laudo vai mostrar vestígio de pólvora na mão dele. Se ele fosse mesmo inocente, já teriam acontecido protestos aqui na frente”.

No inquérito aberto após a morte, 17 pessoas testemunharam a favor de André. Uma contra. A carteira de trabalho do rapaz informa que ele estava empregado quando foi morto.

Foi comprar cigarros e não voltou

Um dos cinco traficantes rendidos por quatro policiais militares na frente do bar do Seu Rubens, no Morro da Coroa, disse que estava de aniversário. “Então eu quero ouvir todos cantando parabéns bem alto!” ironizou um dos PMs. Nesta abordagem havia um sexto elemento de joelhos, mãos para cima como os outros. Era Josenildo dos Santos. Saíra apenas para comprar cigarros e tomar uma com os amigos. Não sem alegar ser trabalhador, conhecido no bairro, foi obrigado a se juntar ao coral. Boa parte da comunidade pode ouvir a canção aflita e os disparos que deram fim a vida de cada um daqueles homens. No dia seguinte, Josenildo virou manchete de jornal popular: “Bandidagem perde feio para a polícia”.

O mecânico Josenildo era auxiliar na horta comunitária do Morro da Coroa; foi assassinado por ter presenciado ação policial indevida
O mecânico Josenildo era auxiliar na horta comunitária do Morro da Coroa; foi assassinado por ter presenciado ação policial indevida

Informado pelos moradores sobre o acontecimento e preocupado com a demora do irmão para voltar pra casa, Luciano Norberto dos Santos foi à unidade de polícia do morro. Lá sugeriram que se dirigisse ao Hospital Municipal Souza Aguiar, para onde os corpos foram encaminhados.

Ao chegar, foi levado direto à sala de necropsia. Abriu o primeiro saco, o segundo, no terceiro reconheceu o irmão mais novo sem metade do crânio. Sacou o celular e tirou fotografias, pois já pensava em utilizar as imagens para obter justiça.

O laudo cadavérico comprova que Josenildo Estanislau dos Santos, cor parda, nascido em sete de maio de 1966, foi atingido por um projétil de arma de fogo na região occipital, a nuca. Apresentava barba e bigode por fazer e trajava camisa de malha cinza com a inscrição “a serviço da CEG da empresa KONTEL”.

Luciano, irmão mais velho, reconheceu o corpo de Josenildo no necrotério.
Luciano, irmão mais velho, reconheceu o corpo de Josenildo no necrotério.

Após a ação, os policiais tentaram ocultar os vestígios de sangue perfurando à bala um cano d’água no estreito e inclinado corredor onde ficava o bar, hoje fechado.

“O corredor da morte”, como se refere o outro irmão de Josenildo, o taxista Josilmar Macário dos Santos, de 47 anos. Nenhum perito oficial foi ao local do crime. Os próprios PMs deram encaminhamento aos corpos, que foram enrolados em tapetes roubados dos moradores e levados ao hospital.

Pelo vídeo amador disponível no youtube , nota-se a simulação de atendimento realizada pelos policiais. Os seis mortos, mais um ferido, são colocados em macas às pressas. De carro, o percurso do morro ao hospital é feito em no máximo 20 minutos. Os PMs levaram uma hora. O Registro de Ocorrência indica que as mortes foram classificadas como autos de resistência.

Segundo o depoimento sumário, os homens, incluindo Josenildo, reagiram a um procedimento legal. “Trata-se de fato em que Policiais Militares lotados no 1ºBPM, em OPERAÇÃO no Morro da Coroa, foram recebidos a tiros por traficantes que portavam, ilegalmente, armas e drogas, reagiram e causaram a morte de seis opositores”.

Na intenção de diminuir o número de autos, a Secretaria de Segurança instituiu uma premiação às delegacias que registram queda nos índices. Desde que assumiu o governo do Estado, Sérgio Cabral (PMDB) conseguiu reduzir o quadro: foram 1.330 em 2007 (ano com maior número de ocorrências) contra 854 em 2010. Os dados são do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP).

No estado, são 29,8 homicídios para cada 100 mil habitantes ao ano. Se acrescentarmos os autos de resistência nas estatísticas, o número sobe para 35. Na capital argentina Buenos Aires, o índice é de 5,03 – mantendo o mesmo comparativo populacional. Bogotá, capital da Colômbia, já foi considerada uma das cidades mais violentas da América, hoje possui uma taxa de 20. O aceitável pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é de no máximo 10.

O auto de resistência é tão comum que as autoridades criaram um formulário padrão, está disponível na internet. O procedimento sempre foi contestado por defensores dos direitos humanos. Até a Anistia Internacional já denunciou, mas a portaria atravessou a democratização do regime político com os mesmos poderes que tinha no autoritarismo.

Roberto Sá, subsecretário de Planejamento e Integração Operacional da Secretaria de Segurança, acredita que a portaria serve como proteção ao policial. “Não podemos acabar com o auto de resistência e deixar o policial exposto”, defende. Nos últimos cinco anos, a cada PM morto, 52 civis perderam a vida.

“Tiraram o sonho do meu irmão”, lamenta Luciano, hoje com 51 anos. No final de 2008, a notícia chegou pelos Correios – Josenildo fora aprovado em 462º no concurso do Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás Natural (Prominp), para o cargo de caldeireiro. A intenção, conforme relata o irmão, era chegar a um cargo de chefia antes mesmo das Olimpíadas de 2016.

Oficina de Josenildo, agora abandonada
Oficina de Josenildo, agora abandonada

Na pequena oficina de sua propriedade, Josenildo, conhecido também como Téo, consertava carrocerias de automóveis. Na última vez que conversaram, Luciano repetiu a brincadeira de sempre. Batendo no capô da Caravan em reparo, disse: “depois desse tem esse outro”. Josenildo trabalhava em uma Kombi; respondeu o usual: “bota na fila”.

A mãe, TerezinhaMaria dos Santos, faleceu um dia antes da morte do filho completar dois anos. Nesta mesma data, a família recebeu a 23ª Medalha Chico Mendes de Resistência. Para embalar a cerimônia, Josilmar escolheu a música Once upon a time in the West (Era uma vez no Oeste), de Ennio Morricone, trilha do western de 1968 que leva o mesmo nome. “É isso que vivemos no Rio de Janeiro” – avalia – “um faroeste de policiais militares com garantia de impunidade”.

Luciano define o irmão como tranquilo, pacato. As fotografias que ele mostra evidenciam o caráter descontraído, sério apenas em momentos solenes, como no batizado das gêmeas filhas de Josilmar – o responsável por dar andamento a praticamente toda a investigação do caso.

No dia seguinte ao enterro do irmão, Josilmar fotografou as perfurações dos projéteis na parede. Os buracos ainda são visíveis. Encontrou até pedaços de massa encefálica no muro da execução. Coube a ele procurar a perícia, feita de bom grado pelo Dr. Leví Inimá de Miranda, quase um ano após o ocorrido. Este constatou, pelas “orlas de tatuagens” (marcas deixadas na pele devido ao disparo à queima roupa) presentes no laudo e pelas evidências no local, a posição de Josenildo durante a execução. De joelhos, mãos para o alto. Rendido.

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Josilmar encena execução do irmão, a marca do disparo ainda está visível
Josilmar encena execução do irmão, a marca do disparo ainda está visível

Os policiais estavam de tocaia, ou “Troia” como é conhecido o procedimento, em uma casa abandonada aguardando a chegada de traficantes que não haviam pago o “arrego”, conforme explicam testemunhas.

O local fica a cerca de 50 metros de onde foram feitas as execuções. Pelas escadarias em frente, já imaginavam, subiriam os criminosos. Se viessem por cima teriam de passar pelo Departamento de Polícia Ostensiva (DPO), unidades hoje desativadas em toda a cidade. No momento da travessia, deram o bote. Josenildo vinha por outro lado, um caminho rotineiro, e, por ter visto demais, teve que ser eliminado.

Quase todo dia Josenildo saía de sua oficina mecânica e subia o morro para tomar uma cachacinha e jogar umas partidas de purrinha (ou porrinha, jogo de aposta envolvendo moedas, pedaços de papel ou palitos quebrados) com os amigos.

Naquela noite de 2 de abril de 2009, iria também buscar um maço de Derby azul, já que no mercado da Rede Econômica – onde minutos antes comprara pães e uma garrafa de sangria – só havia cigarros paraguaios. Trazia no bolso as luvas sujas de graxa quando o renderam. Sem nunca ter deixado o estado do Rio de Janeiro, o lanterneiro de formação técnica, auxiliar da horta comunitária, foi assassinado com um tiro de fuzil FAL 7.62 na nuca.

A presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), Maria Margarida Pressburger, classificou o crime como queima de arquivo. “Foi uma execução bárbara”, declarou quando soube do caso. A OAB então designou um advogado criminalista para acompanhar de perto o inquérito policial.

Uma menor viu tudo da janela de seu quarto. Um dos policiais mandou que fosse lavar roupa e disparou três vezes contra a parede da casa da menina. “Eles fazem a própria lei”, comenta Luciano. Uma das coisas que mais indigna a família é a mácula ao nome do irmão, taxado como traficante pela polícia e por alguns veículos da mídia. “A vida dele era só trabalho e família, nunca usou drogas”, afirma.

Josenildo era solteiro, sem filhos, doava sangue regularmente; serviu ao exército e teve baixa com honra ao mérito. No morro, instituiu o trabalho de reciclagem de garrafas pet. O reconhecimento é comprovado pelo abaixo assinado feito pela comunidade, onde mais de 1.600 assinaturas com RGs e endereços foram colhidas apenas nos dois primeiros dias que sucederam à morte.

Os policiais Vagner Barbosa Santana, Carlos Eduardo Virgínio dos Santos, Jobson Alencar Cruz Souza e Leonardo José Jesus Gomes, antes vítimas no auto de resistência, agora são réus no processo que está nas mãos do Esselentíssimo Senhor Jorge Luiz Le Coq d’Oliveira. Um documento que exige a apuração imediata foi encaminhado por Josilmar à Justiça e redigido propositalmente dessa forma, com “ss”.

Em maio de 2010, Josilmar foi vítima de um atentado. Ele teve o vidro de seu táxi estilhaçado por um projétil enquanto dirigia pelo centro da cidade. Por sorte, a bala ricocheteou e não ultrapassou o para-brisa. Esta foi o terceira e mais grave ameaça recebida pela família desde que o Ministério Público denunciou os PMs envolvidos no caso.

Massacre na Barbearia do Senhor

O frentista Paulo Cardoso Batalha, 43 anos, saiu do trabalho, buscou o filho Gabriel na creche e o levou ao barbeiro Chorão, em Nova Holanda, Complexo da Maré. Era véspera de dia dos namorados e ele não queria deixar esse tipo de tarefa para o final de semana. O menino de cinco anos ficou no colo do pai, que por medo evitava as ruas da favela à noite. Enquanto isso, policiais do 22º Batalhão estavam de tocaia na laje em frente ao local. Quando anoiteceu, abriram fogo contra todos na barbearia.

Dentro do Caveirão, Alessandro 'Chorão' levou um tiro na cabeça e sobreviveu
Dentro do Caveirão, Alessandro ‘Chorão’ levou um tiro na cabeça e sobreviveu

Paulo Batalha tomou um tiro nas costas; Gabriel, ainda no seu colo, foi alvejado na mão. Deividson, deficiente auditivo, também foi baleado. Outras duas pessoas que estavam fora do recinto, Rodson Soares Gomes (22) e Gilberto dos Santos (35) foram atingidos, mas os vizinhos conseguiram socorrê-los.

Os policiais mandaram o barbeiro e o frentista entrarem no Caveirão. “Somos trabalhadores”, respondeu Paulo. Sem sucesso, ele ainda entregou um cordão com a foto de Gabriel para a vizinha que socorreu o filho. Moradores viram Chorão entrar mancando no carro blindado.

Alessandro de Oliveira Nascimento, Chorão para a comunidade, trabalhava sozinho na pequena peça alugada na esquina entre as ruas Bittencourt Sampaio e Santa Rita. Estava com 26 anos. O estabelecimento foi registrado no Sindicato dos Comerciários do Rio como Barbearia do Senhor. Lá só tocava música evangélica. Com frequência os clientes pediam para Chorão colocar um funk, mas nunca eram atendidos.

Barbearia onde tocaia de PMs deixou dois mortos e quatro feridos
Barbearia onde tocaia de PMs deixou dois mortos e quatro feridos

Naquele 11 de junho de 2010, a rua estava calma, não havia traficantes ali devido a uma operação policial que ocorrera pela manhã. O primo do barbeiro, Deividson Evangelista Pacheco (19), aguardava para fazer a barba. O rapaz era surdo desde os cinco anos, sequela de uma meningite. Trabalhava em um lava-jato e estudava na Escola Municipal Yuri Gagarin.

Do outro lado da rua Bittencourt Sampaio, os policiais esperavam com ansiedade o anoitecer. Eles comemoravam a prisão do traficante que atuava naquele ponto. Pela manhã, quando a viatura deixou a favela, quatro PMs ficaram de tocaia na laje. Eles estavam com o produto do criminoso nas mãos: cocaína, maconha e crack. Assim que o sol caiu no Complexo da Maré, começou o massacre.

A namorada do barbeiro, Luciane Saldanha (32), estava cruzando a Passarela 10 da Avenida Brasil quando uma amiga ligou e perguntou onde ela estava. A intenção era impedi-la de passar em frente à barbearia, o que não aconteceu. Quando Luciane viu o movimento em frente ao local, o sangue pelo chão, correu para saber o que havia acontecido. A sogra, dona Sandra, foi quem a acalmou. “Ele só tomou um tiro no pé, já está no hospital. Está tudo bem”.

Luciana pegou um moto-táxi e foi direto para o Hospital Geral de Bonsucesso. Chegou antes dos policiais e das vítimas. Ao invés de prestar socorro imediato, os PMs levaram os feridos à delegacia, onde fizeram em exatos 20 minutos o Registro de Ocorrência.

Segundo o documento, os policiais receberam denúncia de que traficantes de uma facção rival invadiriam a comunidade, e para lá se deslocaram, sendo necessário utilizar o Caveirão. A dinâmica do fato narra que a guarnição foi recebida a tiros, precisando efetuar alguns disparos “como forma de revide à injusta agressão”:

“…conforme o blindado ia progredindo em direção ao interior da comunidade, notou a presença de alguns corpos deitados ao longo da via, inclusive diversas pessoas pedindo socorro. Que naquela ocasião obteve sucesso em resgatar três elementos supostamente baleados”.

Luciane largou o emprego para cuidar do namorado que conhecera há apenas seis meses
Luciane largou o emprego para cuidar do namorado que conhecera há apenas seis meses

O RO também informa que foram arrecadadas, junto aos corpos, duas pistolas e um revólver calibre .38, além de diversos sacos contendo “erva seca picada”, pó branco, e pequenas pedras embaladas em papel alumínio, “bem como determinada quantia em espécie”. Os policiais Cláudio da Silva Lopes e Alex Borges Teixeira aparecem como testemunhas no RO.

Eles chegaram ao hospital informando às enfermeiras que os três feridos eram bandidos. Por esse motivo, os parentes das vítimas não puderam vê-las. Desesperada, Luciane invadiu o CTI e encontrou os cadáveres de Paulo e Deividson. “Onde está Alessandro?” implorou. O chefe de enfermagem a levou até o quarto onde Chorão estava. Havia tomado um tiro na cabeça e respirava com aparelhos.

O barbeiro perdeu um pedaço do crânio e ficou 76 dias internado no CTI. Há pouco abandonou a cadeira de rodas. Hoje frequenta sessões semanais de fisioterapia e fonoaudiologia, está reaprendendo a andar e a falar.

“Os médicos diziam que ele nunca mais ia voltar a andar, mas todos estão se surpreendendo com a evolução dele”, comemora Luciane. Ela teve que deixar o emprego de copeira para cuidar do namorado que conhecera há seis meses. “A alegria dele em estar vivo ajuda a acelerar a recuperação”, diz Luciane. O casal não recebe nenhum tipo de auxílio por parte do Governo.

O ex-barbeiro está consciente, parece entender o que lhe falam, mas não consegue se expressar. Questionado se tudo aconteceu dentro do Caveirão, Chorão fica sério e confirma balançando a cabeça.

Luciane acredita que os policiais tentaram executá-lo dentro do blindado junto com Paulo e Deividson, mas o companheiro sobreviveu justamente para ser a prova viva que colocaria os assassinos atrás das grades. Em maio deste ano, o promotor do Ministério Público Homero Freitas Filho pediu a prisão preventiva dos policiais Gutemberg Gonçalves de Monte Alverne, Alexander Mattoso da Silva, Claudio da Silva Lopes e Alex Borges Teixeira. Outros 11 PMs do 22º Batalhão foram denunciados por falso testemunho.

O tenente não terá perdão

Oldemar Pablo Escola de Faria cursava o último ano do ensino médio e tinha uma certeza: queria ser policial. Fora admitido na Escola Militar após oito meses de curso preparatório no Centro de Estudos às Forças Armadas (CEFA).

“O dia em que eu entrar vou dar um jeito nisso, pai!”. Esse era o discurso do jovem de 17 anos quando via na televisão alguma notícia que envolvesse policiais criminosos. Foi morto pelo tenente do batalhão de choque Carlos Henrique Figueiredo Pereira com três tiros na cabeça.

Carlos Henrique contou em seu depoimento que tentava apenas separar uma briga na porta da casa de shows Aldeia Velha, localizada no bairro do Zé Garoto, em São Gonçalo. O estabelecimento era de propriedade de sua mulher e ele costumava fazer a segurança do local.

Adilson e Teresa estampam cartazes e camisetas, organizam manifestos, lutam pela justiça no caso do assassinato do filho Oldemar
Adilson e Teresa estampam cartazes e camisetas, organizam manifestos, lutam pela justiça no caso do assassinato do filho Oldemar

O tenente diz que enquanto separava a briga foi cercado pelos baderneiros e então deu um tiro para o alto para que o grupo se dispersasse. O ato não surtiu efeito e, logo em seguida, foi agredido com um chute na bunda por Rodrigo de Oliveira Correa Nogueira. Virou-se e bateu com a arma no ombro do rapaz. No momento do impacto, ouviu um estampido. A arma havia disparado acidentalmente. A bala passou de raspão pelo ombro de Rodrigo e atravessou a rua.

Eram oito e meia da noite, a festa “Cala a Boca e Beija Logo” havia começado às duas da tarde e estava quase no fim. Oldemar já estava do lado de fora com um amigo. Os dois se preparavam para ir embora, mas pararam do outro lado da rua para assistir à confusão.

O tiro acertou o rosto de Oldemar, filho mais novo do cobrador de ônibus Adilson Barra de Faria e de Tereza Cristina Escola de Faria, encarregada de serviços gerais no piscinão de São Gonçalo.

A amiga Naomi Aragão (17) conta que ainda estava na festa quando ouviu o disparo. Um colega a informou que Oldemar tinha sido atingido. Naomi correu até a saída, viu que muitas pessoas choravam, algumas chegaram a desmaiar. “O policial até tentou fugir sem prestar socorro. Saiu correndo e entrou no carro, mas todos que estavam lá o cercaram. Então ele desceu, pegou o Oldemar e colocou dentro do carro, mas não deixou ninguém ir junto”, recorda.

O percurso da casa de shows até o pronto-socorro pode ser feito a pé em cinco minutos. O Palio azul de Carlos levou mais de meia hora para chegar ao local. A família acredita que ele parou o carro e atirou mais duas vezes no rapaz.

Oldemar chegou vivo ao hospital. Durante os seis dias em que esteve em coma induzido, amigos e familiares não saíram da vigília. O telefone de Adilson não parava de tocar um minuto. “Meu filho era muito querido. Fizemos três passeatas depois de sua morte, cada uma chegou a reunir mais de 500 pessoas. Teve até briga de duas namoradinhas dele na frente do hospital”, lembra o pai.

Amigos lembram de Oldemar como um jovem brincalhão e namorador
Amigos lembram de Oldemar como um jovem brincalhão e namorador

Nascido no bairro de Santa Catarina em São Gonçalo, Demáh, como era conhecido, morava com os pais e a irmã em um sobrado que seu pai ajudou o avô a construir. A vizinhança é tranquila, com praça, quadra de esportes, crianças correndo na rua…

Foi no próprio bairro que o garoto conheceu o inseparável grupo de amigos. Juntos, os adolescentes com idades entre 14 e 18 anos, viajavam, jogavam futebol, dançavam nas micaretas e sempre dormiam uns nas casas dos outros. “Fazíamos tudo juntos, a gente se conhecia melhor do que a nossa própria família”, confessa Gabriel Scarpa, que na época do crime tinha apenas 16 anos.

O pai garante que nunca teve preocupações nem dificuldades em educá-lo: “Quando ele saía eu sabia que não ia fazer nada de errado, conhecia muito bem a conduta do meu filho”. Os amigos riem enquanto lembram das histórias que viveram juntos.

Adilson conta que sempre tinha que ter em casa um estoque de miojo, pois quando o filho chegava à noite, depois de uma festa e sempre com um grupo amigos, era a única coisa que tinham vontade de comer.  “Era o clube do miojo”, suspira.

Oldemar queria montar uma banda de rock, já aprendia a tocar guitarra e incentivava os amigos para também aprenderem a tocar algum instrumento. Mal conseguia esperar para completar 18 anos e ganhar a moto que o pai prometera. Era o típico zagueiro caneleiro, torcia para o Flamengo e gostava de jogar fliperama na saída do colégio. João Gabriel de Souza Mattos, de 18 anos, o Porquinho, garante que era impossível ficar sem rir por mais de 10 minutos quando Demáh estava por perto.

“Pai, você acha que alguém vai querer fazer alguma coisa contra mim? Eu não fumo, não bebo e não cheiro. Meu negócio é namorar, dançar e internet”. Os amigos confirmam, esses eram realmente os seus ‘negócios’.

Quase no final da entrevista, a mãe, que permanecera calada durante toda a tarde, decide falar. “Sou evangélica e acredito no perdão como a maior virtude do ser humano, mas tenho certeza que nunca vou conseguir perdoar o que esse cara fez com meu filho”.

Termo de reconhecimento do corpo informa como causa mortis perfurações cranianas que levaram à hemorragia
Termo de reconhecimento do corpo informa como causa mortis perfurações cranianas que levaram à hemorragia

No dia da reconstituição do crime, Carlos Henrique usava sua própria arma, carregada, para demonstrar os fatos que ocorreram na noite do dia seis de setembro de 2008. Na ocasião, não conseguiu explicar para a juíza Patrícia Lourival Acioli os outros dois tiros, todos na região frontal da face, presentes no laudo cadavérico de Oldemar. Carlos Henrique ficou quatro meses em prisão preventiva, mas foi solto antes das investigações serem concluídas.

O amigo que acompanhava Oldemar na saída da festa, Rodrigo, era uma testemunha fundamental para o caso. Não queria depor, mas foi convencido por Adilson. No dia de seu depoimento, ia sair para almoçar com a noiva, mas recebeu uma ligação, supostamente de seu chefe. Foi trabalhar no dia de folga, de moto. Morreu atropelado na frente de um supermercado. A família não fez nem o boletim de ocorrência na delegacia.

O julgamento foi realizado no dia 8 de agosto deste ano e durou mais de 24 horas. De acordo com a família de Oldemar, o promotor responsável pelo caso entrou de férias uma semana antes da data marcada. O processo foi parar nas mãos de uma outra promotora. “Não mostraram nenhuma foto do meu filho morto, não falaram que ele chegou ao hospital com três tiros na cabeça”, diz a mãe.

O júri entendeu que Carlos Henrique não teve intenção de matar e o condenou a um ano e quatro meses de serviços comunitários. Carlos ainda deverá pagar uma pensão no valor de R$ 700 durante 17 meses à família do rapaz. “Esse é o valor da vida do meu filho?” – questiona Tereza. “Não queremos dinheiro, queremos justiça”.

Quatro dias após o julgamento, a juíza encarregada do caso, Patrícia Acioli, foi assassinada com 21 tiros quando chegava à sua casa, em Niterói. Ela era conhecida pelo braço firme nas condenações, tendo mandado 60 policias para a cadeia. O delegado titular da Divisão de Homicídios da Polícia Civil, Felipe Ettore, colocou 60% do seu efetivo na investigação do caso.

A saga de uma mãe em busca do filho desaparecido

O baleiro Fábio Eduardo Santos de Souza passava por baixo da roleta do ônibus ansioso. Tinha combinado de se encontrar com Ana Carla na Festa Junina de Queimados, Baixada Fluminense. Iria curtir a folia mesmo a contragosto da mãe, dona Izildete Silva dos Santos. Mas mal pode se divertir, pois, já no local, passou pelo constrangimento de uma abordagem policial. O PM Walter Mario Valim o insultou e pediu seus documentos.

Fábio, negro, baixa instrução, já estava acostumado com a polícia. Certa vez, ainda criança, andava com a bicicleta que ganhou da mãe, quando PMs o acusaram de tê-la roubado. Izildete teve que buscá-la na delegacia mostrando a nota fiscal.

Desde 2003 dona Izildete procura pelo filho Fábio, levado por PMs após uma festa junina
Desde 2003 dona Izildete procura pelo filho Fábio, levado por PMs após uma festa junina

Sob olhares de todos na festa, Walter e outros três policiais liberaram o rapazde 20 anos. Ele e o amigo Rodrigo Abílio decidiram ir embora após o sufoco e foram levar Ana Carla e mais uma menina em casa. Sem saber, foram seguidos. Ana e a amiga ficaram no pátio de casa observando eles dobrarem a esquina.

Foram testemunhas da nova abordagem dos policiais. Viram os dois serem atirados dentro da Blazer da PM e desaparecerem da favela. Ao saber da notícia, dona Izildete correu para procurar o filho na festa. Desde aquele 9 de junho de 2003 só encontra relatos.

Apesar da queda do número de autos de resistência, os desaparecimentos seguem num patamar estável: são mais de 5.400 por ano, ou 15 diários. Fábio queria entrar para o quartel. Era forte e saudável. Vendia balas pela manhã e à tarde levava o irmão Flávio Jorge, deficiente mental, à escola Abelinha Faceira.

À noite estudava, estava na 8ª série. Dona Izildete conta que os policiais que faziam a segurança em Queimados extorquiam drogas das crianças do tráfico. Ela garante que seus filhos não eram envolvidos com o “movimento”. “E como eles estavam sempre sem nada para oferecer à polícia, sobrava pra eles!”, declara indignada.

Izildete procurava um emprego para os filhos. Acreditava que assim conseguiria se livrar das ameaças policiais. Chegou a mandar uma carta para a então governadora do Rio, Rosinha Garotinho.

A mãe de Fábio Eduardo registrou o sumiço dos rapazes na 55ª DP de Queimados. Nos dias após o desaparecimento do filho, Izildete foi à antiga Secretaria Estadual de Direitos Humanos. Um motorista foi deslocado para acompanhá-la aos presídios do Rio de Janeiro atrás do filho. Ela conta que nunca pode descer da viatura.

O motorista a levava até uma delegacia, descia do carro, e após alguns minutos voltava. “O delegado disse que não quer receber você”, era o discurso recorrente. A dona de casa também não foi recebida nas delegacias de Nova Iguaçu, Belford Roxo e Morro Agudo.

Izildete retornou sozinha à 55ª DP de Queimados para obter notícias do seu filho com o inspetor Gomes. Teve a seguinte recepção: “vai procurar o seu filho no mato e para de me perturbar”.

Voltou pra casa de mãos vazias. Enquanto cuidava do filho deficiente, uma viatura da PM parou em frente ao portão do seu barraco. “Acho melhor você parar de ir à ao Ministério Público revirar papéis. Como está o doente? É bom cuidar bem dele. Estamos de olho na sua família!”, ameaçou um dos homens.

Na mesma semana do sumiço de Fábio, Izildete recebeu uma resposta do Governo do Estado de que haveria um trabalho para o seu filho. Foi ao Palácio das Laranjeiras revoltada: “agora já é tarde, a polícia desapareceu com o Fábio!”

A própria governadora, então, recebeu a mãe desolada e prometeu fazer de tudo para encontrar o menino. No entanto, assim como Fábio, os processos também desapareceram. Rosinha ofereceu o emprego aos seus outros filhos: um cargo de office-boy e ajuda de custo de R$ 320.

Ualisse, à época com 17 anos, aceitou a proposta. Com emprego ou não, ele nunca teve medo das ameaças. Mesmo sabendo que seu irmão sumiu num baile, nunca deixou de ir às festas da comunidade. Numa dessas, a história quase se repetiu.

Mesmo trabalhando para o Governo do Estado, o jovem foi abordado por policiais que o levaram para um terreno baldio atrás da Igreja Assembleia de Deus do bairro. Deixaram o garoto nu:

– Fica de joelhos, vagabundo. Te escora na viatura e bota a mão na cabeça!
– Por favor, me deixa ir embora, me deixa ir embora! – implorava o rapaz.
– Eu vou fazer com você o mesmo que fiz com seu irmão.

Torturaram Ualisse por mais de meia hora. O rapaz não quis entrar em detalhes. Antes que a violência tomasse maiores proporções, os PMs ouviram um barulho estranho no matagal. Foram averiguar. Nesse momento, o jovem saiu correndo, nu, em direção à casa de um amigo, que o acolheu.

Em 12 de abril de 2004, Dona Izildete solicitou inclusão no PROVITA – Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, através de uma carta enviada ao Secretário de Direitos Humanos do Rio de Janeiro.

No mesmo ano, denunciou os desaparecimentos perante os membros do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana.  Em 2005, perante o Ministério Público e à Secretaria de Segurança Pública. No dia 15 de março de 2007, o inquérito policial foi arquivado.

Dia desses, Izildete voltava de metrô para a favela. Conversava com uma desconhecida no banco ao lado. Ela contou a história de Fábio e ouviu um relato parecido. A mulher disse que também teve um filho sequestrado por policiais. Por meses o procurou por presídios do Rio, foi ao Ministério Público… Ninguém lhe dizia nada. Quatro meses depois, ele apareceu em casa. Fora levado para Minas Gerais, estava trabalhando como escravo num canavial.

Dona Izildete está com 60 anos. Não lembra o nome desta mãe, mas agora a sua maior esperança é que o filho esteja escravizado em alguma fazenda do Brasil.

A eterna luta de Zé Luiz

Já está em obras o Memorial do Maicon, espaço que pretende levar à comunidade da favela do Acari encenações do cotidiano, como o movimento do tráfico de drogas, as ações truculentas da polícia, agressões cometidas por mães, as “garotas do lanchinho”, além de discussões e debates sobre a realidade social da região. O projeto é idealizado e financiado (a duras custas) por José Luiz Faria da Silva, pai de criação de Maicon Faria da Silva, morto aos dois anos e seis meses por uma bala perdida, supostamente disparada pelo policial militar Pedro Dimitri Amaral.

Maicon morreu aos dois anos e meio, vítima de bala perdida enquanto brincava com os amiguinhos no quintal de casa
Maicon morreu aos dois anos e meio, vítima de bala perdida enquanto brincava com os amiguinhos no quintal de casa

Há 15 anos Zé Luiz vive em busca de justiça. É um símbolo da luta contra a impunidade. Costuma se vestir de prisioneiro durante atos públicos de protesto. Dedica-se à militância política e aos movimentos sociais. Já foi à Brasília, Belém, São Paulo…

Ficou doente (toma Gardenal 100ml e Diazepan há três anos). Aprendeu todos os trâmites legais na marra. Traz consigo uma pilha de papéis – cópias de todos os desdobramentos jurídicos do caso. Como considera Patrícia Oliveira (37), integrante do movimento Violência Nunca Mais, é isso que todo morto vira: uma pilha de papéis.

Zé Luiz se tornou símbolo da luta contra a impunidade
Zé Luiz se tornou símbolo da luta contra a impunidade

Além de viver pela sua e outras causas semelhantes, Zé Luiz transforma cartuchos de arma de fogo em arte. Durante o primeiro relato, põe cinco na mesa, quatro de pistola 9mm e um de fuzil. Eles farão parte de algum painel em mosaico que irá confeccionar.

“Ainda tive que pagar a viatura e a bala que matou meu filho”, ironiza Zé Luiz, hoje com 50 anos, referindo-se aos impostos pagos. Não quer a lei do talião para Pedro Dimitri. “É um covarde irresponsável. Não posso considerá-lo um assassino, não tenho ódio nem culpo ele. Culpo a Justiça por não tomar providências”, explica.

Pela gravidade e pela pressão de Zé Luiz, mais de 80 matérias jornalísticas já foram feitas sobre o caso. Em 15 de abril de 1996, Maicon estava com seis amigos no quintal de casa. Brincavam com tampinhas de garrafa quando uma rolou beco abaixo.

O menino a perseguiu e, antes mesmo de resgatá-la, foi alvejado no rosto por uma bala de fuzil MD2 de 5,56mm. Pouco antes, começara uma troca de tiros entre seis traficantes e dois policiais. Escondido atrás de um muro, Dimitri esticou o braço e sem olhar disparou uma rajada na direção em que se encontrava a criança.

Zé Luiz lavava a bicicleta na frente de casa. Soube da notícia pelos gritos da mãe do garoto, Maria da Penha de Souza Silva. Desesperada, ela pegou a criança no colo – o que dificultaria o trabalho da perícia. O processo aponta que foi impossível determinar a procedência do disparo. Zé Luiz conta que partiu para cima de Pedro Dimitri.

Deu um soco na cara do homem e, enfurecido, puxou a arma do policial e a forçou contra o pescoço do mesmo, dedo no gatilho. Dimitri jurou inocência. Alegou que o tiro fora dado pelos traficantes. “Maldita hora em que entrei nessa favela”, praguejou. Houve tumulto entre civis e policiais. Os traficantes já haviam sumido.

“Se Maicon tivesse dez anos seria classificado pela mídia como traficante por ser negro, pobre e favelado”, acredita Zé Luiz, já que logo após a ação outro policial encontrou um revólver e um rádio comunicador próximo ao local do crime. Na operação, também foi apreendida uma motocicleta roubada.

Um dos amiguinhos de Maicon, Renato da Silva Paixão, foi ferido com estilhaços de projétil. Parte de uma cápsula ficou alojada no seu lábio superior. Um mês depois, durante uma pelada no campinho do Acari, o fragmento caiu. Sangrando, foi logo contar à mãe a boa nova. Hoje, com 22 anos, Renato trabalha em um supermercado e cursa um preparatório para frentista. De acordo com uma das integrantes da Rede Contra a Violência, ele entrou para “o movimento”.

Anos depois da tragédia, Maria da Penha sonhou que o filho vinha num avião estendendo uma bandeira do Flamengo. Dentre tantos questionamentos sobre o que poderia ter acontecido, esse é um, para qual time o menino torceria. José Luiz é vascaíno mas planeja estampar o sonho da ex-mulher num mosaico. “Vou fazer eu no chão, com a camisa do Vasco e um estilingue na mão apontando pra ele; alguma coisa cômica”.

Há 15 anos, o pai adotivo mantém viva a memória de Maicon embora a ex-mulher condene sua fixação
Há 15 anos, o pai adotivo mantém viva a memória de Maicon embora a ex-mulher condene sua fixação

Bastante incomodada, Maria da Penha se irrita com a persistência de Zé. Os dois ainda moram juntos, porém não mais em relação matrimonial. Questionada sobre a lembrança viva do filho, respondeu:

– O Zé é meu filho. Ele ficou doente, não pensa em outra coisa. Vive para isso.

Passado tanto tempo, Maria da Penha, 51 anos, gostaria de esquecer a tragédia. O ex-marido mantém viva a memória. “O Zé só respira Maicon, dorme e acorda Maicon, Maicon, Maicon”.

– Como respirar outra coisa? – questiona ele. Se eu desistir, muita gente vai ficar triste.

Zé Luiz prepara um quartinho e um banheiro para ele no Memorial. Vai se mudar pra lá. A relação com a ex-mulher se tornou insustentável. Quando der, e se der, vai adquirir um terreno contíguo e pôr ali alguns animais para criação.

O que é auto de resistência?

“Auto de resistência” é um expediente criado no antigo estado da Guanabara com finalidade de registrar possíveis oposições armadas no decorrer de operações policiais à época. Ou, o que era mais frequente, para encobrir casos de execuções sumárias.

Instituído através da Ordem de Serviço n.º 803, de 02/10/1969, ainda é utilizado para justificar boa parte das mortes cometidas por policiais, sejam ou não fruto de confronto armado. Isto concede à polícia a manipulação dos Registros de Ocorrências.

A categoria não tem amparo no Código Penal brasileiro, e foi criada justamente para evitar a classificação destes crimes como homicídios. De acordo com o perito legista Dr. Leví Inimá de Miranda, as condições em que tais mortes ocorrem são descaracterizadas, descritas com frequência no sentido de incriminar a vítima – seja ela criminosa de fato ou inocente. Em suma, funciona em muitos casos como uma espécie de permissão para matar.

Nos últimos cinco anos, em média, a cada PM morto, 52 civis perderam a vida.