Enio Squeff
As cordas da Filarmônica de Israel já foram consideradas as melhores do mundo. O estatuto de Israel como país civilizado passava necessariamente pela grande música e não foram poucos os grandes regentes do mundo, entre eles o inesquecível Arturo Toscanini – o maior entre os maiores da primeira metade do século XX – que subiram ao pódio da orquestra, também pela honra de a regerem. Difícil prever o que tais músicos diriam da ofensiva de Israel pela Faixa de Gaza num dos massacres mais assustadores de um país que nem por isso se julga menos civilizado.
Um deles, o argentino israelense Daniel Barenboim, igualmente um grande pianista e regente, já expôs a sua inconformidade com o tratamento que Israel vem dispensando aos palestinos. Muitos israelenses o consideram um “traidor”. Nem por isso, entretanto, apesar da polêmica, o governo de Israel julga que deva qualquer explicação à civilização pelo que está fazendo.
A alegação, como sempre, vai na rasteira da política norte-americana da qual Israel é caudatária: nada do que Israel faz, não se faz à imagem e semelhança das ações inauguradas no mundo como a doutrina “made in USA” de combate ao terrorismo – seja o que for que se entenda por tal.
O comentarista internacional Emir Sader disse há dias na TV Brasil que era impossível tratar a mediação do conflito da Faixa de Gaza, pelos Estados Unidos, como coisa realmente séria. De fato, o tempo que os EUA concedem a Israel para um cessar fogo, vem sendo contada menos pelos dias ou pelo horror provocado no mundo, do que pelo número de árabes mortos.
Parece haver um consenso de que a razzia israelense tem de ser dura o suficiente para mostrar que os pogroms contra os árabes são meticulosamente programados com o Império. O castigo tem que ser cruel e inesquecível para que a afronta de qualquer resistência dos palestinos nunca se repita.
Um massacre programado e prorrogável até o limite do genocídio? Pode ser.
Sob a alegação da extirpação do terrorismo, os EUA mataram dezenas de milhares de iraquianos – que não tinha nada a ver com o chocante atentado às Torres Gêmeas. Valeu, no entanto, pelo exemplo. Nunca se terá qualquer justificativa para que o Hamas mate indiscriminadamente civis israelenses. Mas sua ameaça latente será sempre uma justificativa para que Israel enterre qualquer veleidade de país civilizado.
E faça as vezes de país terrorista, por sua vez, “preventivamente” digamos, matando milhares de palestinos da Faixa de Gaza. Que, se não têm nada a ver com o Hamas, quem sabe devam ser mortos por ostentarem os mesmos nomes de alguns deles, ou pior, a cor amorenado dos árabes: “Se não foste tu, foi teu pai”: é isto que o lobo diz ao cordeiro na fábula de La Fontaine, não é mesmo?
Há uma relutância – deve-se reconhecer – normalmente inspirada no medo global aos Estados Unidos, em condenar a ação do Estado Hebreu. Aqui e ali, uma ou outra voz tenta uma desculpa. A de que Israel precisa se defender chega às raias da imbecilidade: imaginem as polícias do Rio, de São Paulo ou de Porto Alegre a bombardear favelas e vilas para livrá-las dos bandidos.
Todos concordam que é um absurdo. Mas, no fundo, é exatamente a mesma coisa. Ah, dizem alguns defensores de Israel – lamentavelmente, morreram algumas crianças (em Gaza já são centenas): paciência, que se vai fazer? Israel tem o direito de defender as suas.
Mas a morte de crianças não justifica a morte de outras. Ou justifica?
Outra tese – essa mais estapafúrdia, confere à indústria bélica a culpa pelo conflito. O Hamas, com seus foguetes busca-pés, alimentaria parte da indústria que, por sua vez, cumularia os israelenses de armas de destruição em massa – mas tudo dentro da lógica de que, quanto mais destruição, melhor. Israel, com mais dinheiro, provindo principalmente dos EUA, levaria mais armas, as mais sofisticadas – quanto ao Hamas, com seus traques, ficaria patente que são todos celerados. Eles venceram, as eleições em Gaza, ao que se diz, legitimamente.
Mesmo assim, não duvidariam um só instante de deixarem que seus filhos, mulheres, irmãos e irmãs morressem sob os bombardeios israelenses – ou seja, uma estultice. Mas assim como alguns rabinos de extrema direita insistem em que os palestinos gostam de expor seus parentes aos alvos das bombas de Israel, há quem retome as teses genocidas dos nazistas. E tudo para argumentar que Israel tem de ser destruída a qualquer preço.
Não parece haver o que argumentar enquanto a ideia de civilização não for prevalente. Uma coisa é certa. Enquanto Estado, com a sua bela Filarmônica, para ficar apenas na grande música, cabe a Israel cumprir as leis que a direita fascista de seus atuais dirigentes teima em ignorar e que tem a respaldá-los justamente os Estados Unidos, um país que, por sua vez, bem que poderia mostrar que suas portentosas instituições culturais são índices de civilidade e não de mero marketing. Ou propaganda “para inglês ver”.
Elias Canetti, judeu, um dos maiores escritores contemporâneos, parece ter entrevisto o que Israel e todos os países que se julgam acima da humanidade, podem fazer e fazem. E em nome, não da sua preservação, mas da sanha de alguns de seus dirigentes. Em sua trilogia autobiográfica, conta Elias Canetti, de um judeu vienense que ele considerava acima de tudo um homem justo e bom. E que, ao saber que na primeira Guerra Mundial os aviões começaram a ser usados para bombardeios, teria exclamado: “ E as cidades, meu Deus, que será das cidades?”
Os Estados Unidos mostraram, em primeira mão, o que o pior pesadelo não poderia engendrar, ao destruírem, sob bombas atômicas, as cidades de Hiroshima e Nagasaki. Talvez não tivessem feito mais do que os nazistas e os ingleses fizeram, respectivamente, com Londres, Berlim, Dresden e Leipzig. Mas os israelenses não estão fazendo menos, ao bombardearam criminosamente a Faixa de Gaza.
Em tempo: nunca o Brasil foi tão digno quanto no episódio em que chamou seu embaixador de Israel ao Brasil. O governo de Israel que vocifere à vontade pela afronta. Mas não contará com o Brasil na passividade vergonhosa do resto do mundo, com os atos criminosos perpetrados por sua cúpula dirigente. É uma boa nova, digna de um grande país.