A ponte Chapecó-Medellín

O gosto pelo futebol me levou recentemente a acompanhar os jogos da Chapecoense, clube que se apegou com garra ao lugar recém-conquistado entre os 20 integrantes da Série A do Campeonato Brasileiro. Com pouco mais de 40 anos de existência (fundado em 1973), o time ganhou cinco campeonatos catarinenses e no Brasileirão fez o suficiente para disputar a Copa Sul-Americana. Estava a caminho da primeira partida final em Medellínquando o avião em que viajava caiu a cinco minutos do aeroporto local. O jogo foi cancelado. Em seu lugar, a população das duas cidades lotou os estádios de Chapecó e Medellín, formando uma inédita ponte de solidariedade na noite em que a partida seria jogada.
Nunca se viu tamanha corrente de paz e amor.
Chapecó, a capital das carnes brancas e um dos principais polos brasileiros de cooperativismo.
Medellín, o primeiro centro difusor da teologia da libertação cristã (em 1968, na conferência episcopal latino-americana).
Pelo retrospecto, a Chape levaria uma surra do Atlético Nacional, o time mais competitivo do continente, no momento, tanto que é o atual campeão da Taça Libertadores da América. Mas, se perdesse por pouco em Medellín, a Chape poderia reverter o placar no Brasil. Já estava certo que a segunda partida final não poderia ser realizada na Arena Condá, onde só cabem, apertadas, 20 mil pessoas. A disputa fora marcada para o estádio do Coritiba por influência do técnico Caio, paranaense de Cascavel que fazia sucesso em Chapecó depois de ter treinado clubes do Rio, São Paulo, Porto Alegre e do Oriente Médio.
Caio e mais 19 jogadores, além de jornalistas, dirigentes e torcedores, tiveram a carreira liquidada pela queda do avião da LaMia, fretado por 140 mil dólares, mais do que o dobro do orçamento mensal do time de Chapecó, onde se misturavam veteranos e novatos irmanados por um espírito de grande depreendimento, algo que acontece frequentemente na prática dos esportes, sejam pequenas ou grandes as agremiações. Aí está o Brasil de Pelotas dando a volta por cima após um grave acidente de ônibus, anos atrás. O Juventude de Caxias ganhou uma Copa Brasil. O XV de Novembro de Campo Bom andou aprontando numa temporada mais ou menos recente. É o futebol. O esporte. A energia inexplicável dos coletivos.
A ascensão e queda da Chapecoense traz à lembrança o episódio do ano passado, quando a Ponte Preta só caiu na semifinal da Copa Sulamericana. Fundada em 1900 em Campinas, a Ponte nunca ganhou nada mas é um dos clubes mais queridos do Brasil. Possui uma aura popular que se traduz na bandeira alvinegra e no símbolo do seu estandarte – uma macaca brincalhona que vive de dar susto nos times mais representativos das capitais. Já ganhou vários vice-campeonatos, como o paulista de 1977, quando quase montou uma zebra sobre o Corinthians.
Aqui abro um parágrafo para lembrar que o escritor paulista Renato Pompeu (1941-2014) escreveu um romance – A Saída do Primeiro Tempo (Alfa Omega, 1978) – cujo protagonista central é “o espectro da Ponte Preta”. Difícil explicar um livro tão genial. Melhor dar a palavra ao próprio romancista, que abre sua narrativa nos seguintes termos – primeiro parágrafo:
“Noite alta, quase madrugada (…) é a hora em que o espectro da Ponte Preta começa a rondar Campinas. Trata-se de grande mãe preta velha gorda, de saia e blusa branca e manto bordado de seda negra, que sobrevoa como mancha leitosa os prédios e ruas. Está sempre à noite pelos ares da cidade, flutuando como fiapo de algodão. (…) Quando não há ninguém atento, entretanto, o espectro da Ponte Preta paira no ar e penetra pelos cômodos das casas, roçando as testas das pessoas adormecidas e causando mudanças pequenas mas definitivas nos seus sonhos.”
No parágrafo seguinte, um delegado sonha que virou mulher de olhos verdes momentos antes de discursar numa reunião política da burguesia de Campinas, a cidade que serve como cenário do romance em que diversos personagens — professores, executivos, operários, aposentados, moças, senhoras – são afetados pelo toque mágico da negra velha, naturalmente identificada com a alma popular da Associação Atlética Ponte Preta.
Ao longo de 182 páginas, o escritor zomba sutilmente da soberba campineira e desenvolve uma série de episódios mais ou menos hilários, como narrar o Jogo Zero ou discutir a expressão “a bola é nossa”. Ele gasta 70 páginas do livro para elaborar o que chama de “crítica da economia política do futebol”. No final conclui, citando nominalmente a Ponte Preta, seu rival Guarany e outros clubes, que “os times de futebol constituem as bandeiras da consciência do povo brasileiro”.
Recordando esse gol de placa do grande Renatão, eis o que temos no momento: a bandeira da hora é verde-e-branca e pertence à Associação Chapecoense de Futebol, que encontra na solidariedade internacional um forte motivo para retomar sua caminhada.
Segundo a língua caigangue, Chapecó significa “lugar de onde se avista o caminho da roça”.

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