Uma nova estratégia para colocar jornalistas em risco pode estar em curso. No final de semana, a jornalista e professora de Jornalismo da Universidade Federal da Bahia (UFBa) Malu Fontes foi surpreendida por um texto assinado por ela que circulava massivamente no WhatsApp. No artigo, ela acusava milicianos e policiais de crimes graves, com palavras pesadas. Afirmava que um dos filhos do presidente eleito, Flavio Bolsonaro, saberia quem matou Marielle Franco. A questão é que Malu Fontes NUNCA escreveu esse texto.
Jornalista respeitada, com uma voz contundente em seus comentários na Rádio Metrópole e suas colunas no jornal Correio, Malu é responsável. Ela não acusa sem provas nem faz afirmações que não sejam solidamente baseadas em fontes confiáveis. De repente, ela se descobriu responsabilizada por um texto que jamais escreveu. E um texto que colocava contra ela pessoas muito perigosas. E pelo WhatsApp, uma plataforma sobre a qual, como a eleição de 2018 mostrou, não há qualquer controle.
É muito grave o que aconteceu com Malu Fontes. Nós, jornalistas, historicamente corremos riscos, às vezes de morte, por aquilo que escrevemos contra poderosos. Em 2018, até o início de outubro, a Abraji(Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) havia contabilizado 137 ameaças contra jornalistas em contexto político, partidário e eleitoral. No atual cenário do Brasil, em que um presidente de extrema-direita foi eleito estimulando o ódio de seus seguidores, os riscos de quem tem o dever profissional de fiscalizar, denunciar e iluminar os cantos escuros dos candidatos e dos eleitos, assim como de todo e qualquer governo, se multiplicam.
Os jornalistas que merecem este nome costumam pagar um preço alto por fazer o seu trabalho. Historicamente somos ameaçados pelo que efetivamente escrevemos nos jornais e revistas impressos e online ou falamos no rádio ou na TV. O que pode estar acontecendo agora é algo ainda mais perverso: ser colocado em risco por aquilo que NÃO escrevemos e NÃO falamos. Plataformas como o WhatsApp podem ser extremamente perigosas, porque a informação circula de forma privada.
Ainda não está provado se o que aconteceu com Malu Fontes foi feito deliberadamente para colocá-la em risco – ou se foi um engano de alguém que leu um post de outra Malu e, ao passar adiante, trocou seu nome. Mas o estrago foi feito. E não há como dimensioná-lo. A jornalista tem se esforçado para divulgar que não é a autora do texto. Mas quantos saberão?
Se esta for uma nova modalidade de colocar jornalistas em risco, pelo que não escrevemos mas atribuem a nós, o número de mortes de profissionais da imprensa, que já é alto no Brasil, aumentará. Ser linchado na internet ou ser concretamente ameaçado de morte pelo que escrevemos, dois atos que em geral estão conectados, é terrível para nós e para nossas famílias. Mas ser linchado e ameaçado de morte pelo que nunca escrevemos mas é atribuído a nós representa um degrau a mais na escala da perversão de criminosos de vários tipos, que ocupam diferentes posições na sociedade.
Vivemos num país – e num mundo – em que parte da sociedade tem demonstrado que não tem qualquer escrúpulo. A pessoa que usa palavras de ódio porque não leu e não gostou, ou porque leu e não gostou do que escrevemos, não percebe que este tom e estas palavras não são possíveis na vida em comum. E que o ódio que vomita verbalmente pode levar uma outra pessoa, mais desequilibrada, ou a serviço de forças criminosas, a nos destruir fisicamente.
Nós, jornalistas profissionais, escrevemos em sites confiáveis. Não reproduzam o que não está linkado, o que tem apenas nosso nome sem qualquer garantia de que efetivamente somos os autores. Especialmente no WhatsApp. Reproduzam apenas aquilo que está em sites que possam ser verificados. E deem o link.
Cada um é responsável pelo que dissemina nas redes sociais e em plataformas como o WhatsApp. Se responsabilizem. Não adianta pedir desculpas depois. As desculpas podem chegar tarde demais. Neste momento tão grave do país, precisamos todos ficar atentos. É isso também que significa a frase deste momento: “Ninguém solta a mão de ninguém”.
Precisamos voltar a compreender que não temos inimigos. Temos adversários, temos opositores, discordamos. E temos uma Constituição para nos dar uma base comum. A conversão de opositores em inimigos tem levado a assassinatos neste país. Não importa o que você defenda, cuide para não ser a mão oculta por trás daquele que aperta o gatilho. Você nunca saberá o que as suas palavras de ódio começaram quando as lança num espaço como as redes sociais e o WhatsApp.
Nenhum jornalista ou pessoa de qualquer profissão deve ser linchado verbalmente e correr risco de morte por fazer o seu trabalho numa democracia. Quando esse pacto começa a ser rompido, sabemos que é a estrutura democrática que começou a romper em alguns pontos, às vezes muitos, e começou a vazar. É preciso ficar muito atento aos sinais.
Este texto é de minha exclusiva responsabilidade. Mas acredito falar por muitos jornalistas quando afirmo: nos ajudem a ficar vivos e a seguir documentando o Brasil.