Regulação da criptografia e bloqueio do WhatsApp

Danilo Doneda

Além de ser a maior economia da América Latina e o quinto país do mundo em número de pessoas conectadas à internet, o Brasil também aprovou uma das primeiras legislações no mundo que estabelecem direitos e deveres no ambiente online, o Marco Civil da Internet. Como em outros países, no Brasil opera-se hoje uma transição: vários serviços tradicionais estão aos poucos sendo substituídos por outros que, estruturados a partir da internet, são mais rápidos, seguros, eficientes e baratos. Isto se demonstra, por exemplo, pela impressionante popularidade de serviços de troca de mensagens como o WhatsApp e outros.
As novas dinâmicas de comunicação introduzidas pelos serviços de mensagens na internet, ampliando o alcance destas ferramentas a um número inaudito de usuários, tiveram efeitos positivos para uma série de atividades. O comércio, a prestação de serviços educacionais (existem ofertas de aulas pelo WhatsApp, por exemplo), curadoria de conteúdos, atos processuais e até mesmo consultas médicas, por exemplo, são realizadas por estas plataformas, confirmando a prodigalidade dos seus usuários em criar novas trilhas para interação via internet.
O ambiente de inovação daí resultante obriga-nos a examinar com cuidado um componente fundamental destes sistemas — a segurança. Para dotar estas comunicações da segurança devida, o WhatsApp passou a implementar uma tecnologia conhecida como criptografia ponta-a-ponta (“end-to-end”). Com ela, cria-se um canal de comunicação entre o emissor e o destinatário da mensagem que é impenetrável por intermediários — funcionando como se a mensagem fosse embaralhada e colocada em um envelope com uma chave que somente o destinatário possui. Ao ser implementada essa tecnologia, o blog da WhatsApp divulgou que “ninguém poderá ver nada dentro daquela mensagem. Os cibercriminosos, hackers ou regimes opressores não podem também. Nem mesmo nós”.
A criptografia ponta-a-ponta, dado o alto grau de segurança que proporciona, além de proteger a privacidade de comunicações privadas, favorece a criação de novas utilidades para os sistemas de trocas de mensagens: desde a transferência de valores até a viabilização de serviços em áreas críticas como saúde, assistentes pessoais e outras aplicações que necessitam elevado grau de segurança e que passam a ser viáveis.
Muitos se questionam, no entanto, se uma plataforma inviolável de troca de mensagens não facilitaria também a atividade de organizações criminosas. A criptografia ponta-a-ponta torna ineficazes as solicitações feitas aos intermediários para o fornecimento do conteúdo das comunicações privadas, pois somente seus emissores e destinatários podem, tecnicamente, ter acesso ao conteúdo. Não obstante, ordens judiciais no sentido de suspensão de serviços deste tipo foram emitidas no Brasil por conta de reiteradas negativas quanto ao fornecimento do conteúdo de mensagens trocadas justamente através do WhatsApp.
De fato, a impossibilidade de atender a tais pedidos leva a discussão para outro patamar, ao questionar se os serviços de mensagens devem ser arquitetados para permitir o acesso ao seu conteúdo por autoridades, pela introdução de uma espécie de “grampo digital”. E a solução que mais frequentemente é vislumbrada para isto é uma espécie de “chave-mestra” (ou porta dos fundos – backdoor), uma ferramenta que torne compreensível ao seu detentor qualquer comunicação em um sistema criptografado.
A solução das backdoors, que à primeira vista pode parecer razoável, infelizmente contrasta diretamente com a experiência acumulada em segurança da informação, que indica que a implementação de uma chave-mestra inexoravelmente diminui drasticamente a segurança de um sistema criptográfico. Em outras palavras, simplesmente não é possível implementar uma backdoor e manter a segurança que a criptografia tinha anteriormente, tornando-a mais vulnerável à intromissão de terceiros no conteúdo das comunicações e fragilizando as utilizações que necessitem de maior segurança.
O especialista em segurança Bruce Schneier, ressaltando que este é um imperativo técnico que não pode ser mudado por construções legais, afirmou que “não é possível criar uma função matemática que se comporte de forma diferente em função de uma determinada lei”. Vejamos o motivo.
Em primeiro lugar, a mera existência da backdoor é em si um risco potencial, pois seu vazamento (que, aliás, ocorre com frequência) ou sua má utilização podem comprometer a segurança não somente de uma determinada comunicação privada, mas de toda a plataforma de mensagens. Segundo, a sua existência funciona como um atrativo para que agentes mal-intencionados, como criminosos em busca de informações financeiras, procurem explorar as suas vulnerabilidades.
E note-se que, quanto mais valiosas as comunicações em um sistema de mensagens, maior o incentivo para que grandes recursos computacionais sejam utilizados para estes tipos de ataque. Há ainda outras considerações: existindo esta chave-mestra, quem poderia utilizá-la? As autoridades de qualquer país? Neste caso, como evitar que elas sejam utilizadas para fins, por exemplo, de repressão política ou para espionagem de um país nas comunicações em outro?
Além disso, esta chave-mestra abre a possibilidade para uma intromissão nas comunicações diferente e bem mais ampla em relação àquela que se realiza pela interceptação telefônica — que é, a rigor, pontual e limitada aos sujeitos da comunicação específica —, pois torna possível o monitoramento e vigilância não somente de comunicações entre sujeitos determinados como também o monitoramento em massa das comunicações.
Outro aspecto a ser considerado é a ausência de evidências empíricas de que a utilização de chave-mestras possa efetivamente inibir crimes. Cogitar a possibilidade de escarafunchar conversas privadas — ainda que a intenção seja que esta possibilidade só exista para o Estado — aumenta a vulnerabilidade do sistema de mensagens ao diminuir a sua segurança de forma generalizada, para toda a sociedade.
E, ainda, note-se que há diversos outros meios disponíveis para o monitoramento pelo Estado de indivíduos ou organizações suspeitas que não passam pela devassa de suas comunicações, meios que muitas vezes não são utilizados em toda a sua potencialidade — basta notar que, entre outros recursos, os chamados metadados de comunicações (informações sobre destino e origem de mensagens que não incluem o seu conteúdo) não costumam ser submetidos à criptografia ponta-a-ponta. E há ainda a possibilidade de recuperar as comunicações diretamente dos dispositivos na ponta — pois sempre haverá uma interface analógica devassável entre a mensagem criptografada e o seu emissor ou receptor.
Ainda não sabemos todas as utilidades e benefícios que sistemas de mensagens podem trazer à sociedade. O que se pode afirmar é que eles não são mera moda ou tendência. Plataformas como WhatsApp, Telegram, Lime, Skype, WeChat e tantas outras estão expandindo as possibilidades de comunicação, aumentando a quantidade e qualidade das interações que proporcionam e, consequentemente, demandando a consolidação das medidas de proteção das comunicações, privacidade e dados pessoais que delas dependem.
A proteção da privacidade e dos dados pessoais é tema relevante a ponto do Congresso Nacional estar, no momento, analisando duas propostas de lei a este respeito. A privacidade das comunicações privadas, por ser tema bastante dinâmico e sujeito às constrições da realidade tecnológica, deve ser tutelada por soluções tecnológicas que permitam a salvaguarda dos direitos em questão sob pena de, caso seja exclusivamente confiada à regulação tradicional, padecer de escassa eficácia ou mesmo obsolescência. E é justamente para que isso não aconteça que o emprego de técnicas como a criptografia ponta a ponta são plenamente justificadas, por incorporar em produtos e serviços os valores e garantias que justificam e inspiram a sua utilização.
Após quatro episódios sucessivos em que ordens de bloqueio do aplicativo WhatsApp foram emitidas no Brasil, o assunto encontra-se em discussão pelo Supremo Tribunal Federal, que inclusive convocou audiência pública para ouvir a sociedade a este respeito. Nesta audiência, além das questões referentes à proporcionalidade e legitimidade do bloqueio de um aplicativo, encontra-se em jogo uma questão de fundo que é a liberdade para utilizar tecnologias criptográficas que, pela sua extrema segurança, proporcionem comunicações indevassáveis por terceiros, incluíndo a empresa que fornece o próprio serviço e também o Estado. E, como vimos, qualquer relativização desta segurança que permita acesso pelo Estado às comunicações acaba por gerar uma série de efeitos que, considerados na sua totalidade, acabam por criar mais problemas do que, efetivamente, resolver.
Bloquear o uso de uma plataforma de mensagens em um país no qual sua utilização é generalizada entre a população é não somente uma restrição desproporcional aos direitos fundamentais mas também um empecilho à atividade econômica e às diversas atividades críticas que se desenvolvem nessas plataformas, justamente por sua natureza ágil e democrática.
E, ao cabo, limitar o uso da criptografia é, em última análise, inútil, tendo em vista a possibilidade de quem dela realmente necessite recorra a serviços especificamente desenhados para não serem rastreáveis, ainda que não sejam acessíveis pela sociedade.
Neste sentido, qualquer proibição equivaleria também a impedir a utilização da própria matemática, algo que não chega a ser inédito — em 1976, em plena ditadura argentina, o governador da província de Córdoba proibiu o ensino da Teoria dos Conjuntos por considerá-la “abertamente subversiva”, pois que “evidentemente tende a massificar e provocar as multidões”. A proibição não teve efeito.
Danilo Doneda é professor da Escola de Direito da UERJ, doutor em Direito Civil e especialista em privacidade e proteção de dados. Este artigo foi publicado originalmente pelo Conjur e contou com a colaboração de Yasodara Córdova.

Economia Verde – O subprime ambiental

 
Amyra El Khalili

Nenhum problema pode ser resolvido pelo mesmo estado de consciência que o criou. É preciso ir mais longe. Eu penso 99 vezes e nada descubro. Deixo de pensar, mergulho num grande silêncio e a verdade me é revelada. (Albert Einstein)

O sistema financeiro internacional está em crise, enfrentando sérios problemas de credibilidade por fraudes e corrupções denunciadas desde 2008 com o escândalo do subprime, com a quebra do Banco Lehman Brothers, operações pirâmide, com a demissão de executivos de bancos por manipularem os cálculos da Taxa Libor (2012), entre outras especulações.
A Cúpula dos Povos, movimento paralelo à RIO+20, não se posicionou contra esse modelo neoliberal exclusivamente por questões ideológicas, mas por fatos comprovados à exaustão e suas consequências trágicas contra povos indígenas, povos tradicionais, campesinos e vulneráveis, e contra a degradação e a devastação ambiental.
Se foi esse modelo neoliberal, enraizado no capitalismo selvagem, o responsável pela crise ambiental e a exclusão social, como pode esse mesmo modelo ser a solução do problema?
O teórico Roger Babson, em setembro de 1929, cunhou o célebre vaticínio — “mais cedo ou mais tarde o crash virá, e poderá ser tremendo” — e foi ironizado, desacreditado e assacado pelos guardiões de Wall Street. Em outubro de 1929, os jornais estamparam a seguinte manchete: “QUEBROU! Uma irrefreável onda de vendas derruba o preço das ações, causa pânico na Bolsa de Nova York e leva milionários à bancarrota. Para onde vai a economia do país mais rico do mundo?”.
O economista Luiz Gonzaga Belluzzo, no artigo “Geringonças teóricas” (Carta Capital, 2012), analisou: “Nos anos 1980 e 1990, na academia e no debate público, eram poucos os que ousavam discordar das virtudes da liberalização e da desregulamentação financeira, apresentadas como a forma mais eficiente de alocar os recursos. Quase em uníssono, os economistas acusavam o perecimento das velharias e ineficiências das políticas intervencionistas nos mercados de crédito e de capitais”.
Quando apostadores assinam contratos com corretoras de valores e de mercadorias concordam com as cláusulas contratuais; entre elas, a de que estão cientes de estar negociando em mercados de risco. Nem há como alegarem depois que foram “enganados”, pois os contratos são rigorosamente padronizados para evitar qualquer possibilidade de se repassarem aos agentes financeiros possíveis perdas.
Nos mercados derivativos (derivados de ativos), as operações são instantâneas e, em muitos casos, para minimizar riscos, necessitam travar (comprar e vender contratos) com outros ativos. Surgem daí as complexas geringonças financeiras.
O mercado de derivativos no Brasil é relativamente novo, tendo trinta anos, iniciado em 1986 pela Bolsa de Mercadorias & de Futuros (BM&F). Comecei com o primeiro tijolo da BM&F até chegar aos mercados de ativos ambientais. Hoje, sou extremamente crítica em relação à financeirização das economias mundiais desencadeada pelos derivativos.
Financiar faz parte de uma política econômica que permite empreender negócios, comprar ou produzir bens e serviços, pagando sua dívida em longo prazo. Diferentemente das economias dos países desenvolvidos, neste continente latino-americano e caribenho, nos digladiamos com altas taxas de juros, considerando que a calculadora, por aqui, soma, diminui, multiplica, divide e exponencia, ou seja, faz cinco operações matemáticas. Usamos juros compostos quando a calculadora dos capitalistas do lado abastado do planeta usa apenas quatro operações e trabalha com taxas lineares (juros simples).
Este é o princípio da “financeirização” — somem-se a essa conta outros apetrechos, como taxas de seguros, análises de risco, consultorias de portfólios, corretagens, emolumentos das bolsas, contabilidades, impostos -, juntando ainda as taxas de juros com a sopa de letrinhas. A isso tudo chamam de “gestão financeira da coisa”. Desta forma, o custo do financiamento é encarecido para sustentar toda a indústria construída em torno da “financeirização”, sem contar com a estrutura de creditação, validação, certificação e consultorias de projetos ambientais pirotecnicamente complicados.
Afinal, indígenas, ribeirinhos, caiçaras, quilombolas, pobres e vulneráveis não têm competência para cuidar daquilo que lhes é peculiar: seu meio natural. Quem está preparado para a difícil tarefa de fazer a “gestão financeira da coisa”, com a parafernália em torno destas novas formas de garantir o aporte de recursos e captações para implementar as tais políticas públicas ambientais, além dos banqueiros e seus indicados consultores e pesquisadores, aparelhados com suas conclusões por encomenda, são algumas ONGs.
A “financeirização” demonstra a complexidade com que são desenvolvidos projetos financistas socioambientais veementemente defendidos pela doutrina da Economia Verde como a única alternativa capaz de salvar a natureza das ganâncias humanas. E por isso também foi duramente criticada pela Cúpula dos Povos durante a RIO+20.
Existem relatórios de experts em finanças internacionais, como o Munden Project, que concluiu que, entre outros fatores, os agentes intermediários serão os maiores beneficiários do mercado de carbono replicado com o REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação) e suas variáveis, muito mais do que as comunidades a serem atendidas com a proteção da natureza. Há diversos relatórios do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM) que, didaticamente, esclarecem como funciona e por que é controvertido o mercado de carbono nos países do Norte e suas consequências para as comunidades locais e povos das florestas.
A Interpol (polícia internacional) publicou, em junho de 2013, o “Guide to carbon crime”, um guia alertando investidores sobre fraudes e estelionatos nestes emergentes mercados de ativos ambientais. Entre os crimes mais frequentes estão: manipulação fraudulenta de medições para conseguir mais créditos; venda de créditos que não existem ou que pertencem a outras pessoas; divulgação de informações falsas sobre possíveis benefícios ambientais e financeiros; fraude fiscal; roubo de créditos pela Internet e lavagem de dinheiro.
Considere-se também o roubo de terras indígenas como uma evolução da engenharia do crime contra os povos e o patrimônio ambiental e cultural da humanidade. O site Redd Monitor acompanha e registra os fatos mais controvertidos que proliferam com a voracidade de ganhar dinheiro fácil por estes mecanismos de finanças.
Portanto, ao rebaterem os críticos do pacote financeiro, que chamam de “Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA)”, com seus instrumentos econômicos correlatos, alegando não saberem (os críticos) como as coisas funcionam e não entenderem de nada versus nada, tentam, na verdade, esconder, como o avestruz que enterra a cabeça, o tamanho do corpulento rombo que se prenuncia com a embromação da Economia Verde.
Há também outros relatórios que mostram os infelizes resultados com estas polêmicas políticas públicas adotadas por alguns governos, atropelando a etapa anterior à de legislar, ou seja, a de consultar a sociedade para saber se concorda ou não com tal política pública. Digo, a legítima consulta pública. Não essa prática costumeira que convoca reuniões de última hora e, de preferência, com a conclusão já devidamente costurada com algumas ONGs, com os territórios a serem explorados previamente combinados e acertados os valores.
Depois, não resta ao povo desavisado senão assinar embaixo e ai de quem  criticar! Este não sabe nada, não entende nada e não participou de nada. Por outro lado, os conhecidos picaretas do mercado financeiro chamam a crítica de “inconsistência conceitual”, confundindo, propositadamente, alhos com bugalhos através da prática do assédio conceitual sub-reptício. Quando se apropriam de ideias alheias, esvaziam-nas em seu conteúdo original e as preenchem com conteúdo espúrio.
Mas, por favor, sejamos honestos: o mercado de carbono se sofisticou de tal forma que inspirou, a reboque e nos mesmos moldes, a formação de outros mercados, como os de compensações, de reserva legal, de créditos recebíveis, de passivos transformados em ativos, entre outras impressionantes criatividades. Coisa complicada até para quem conhece profundamente o mercado de commodities e derivativos. Parece algo muito inteligente, mas não vamos nos iludir: trata-se de um “tapa-buracos” do prejuízo amargado em outros mercados internacionais. Para tentar conter a bolha financeira que desencadeou as operações de subprime e derivados, buscam novas formas de captação de recursos.
Há uma série de empresas vendendo créditos de carbono e de compensações de áreas do Brasil e de toda a América Latino-Caribenha no exterior. O bioma amazônico, em toda a sua extensão, é o mais cobiçado pela atração e o fascínio que exerce na mente dos povos estrangeiros e de potenciais investidores de terras, por suas riquezas florestais, por sua biodiversidade, por seus minérios, águas doces e subterrâneas. Suspeitamos, pelos milhões de hectares de terra ofertados no exterior, que alguns estados já foram vendidos, sem exagero, bastando apenas contabilizar e entregar.
Este tipo de negócio chama-se “venda a descoberto” (short sale). É quando se vende no mercado de commodities e derivativos sem ter o ativo para entrega futura. Depois, sai-se correndo para comprar no mercado spot (à vista) para honrar as operações. Quando isto ocorre, o movimento é chamado de corner (o que significa encurralar, colocar num canto). O vendedor (short) é obrigado a comprar pagando o preço que estiver sendo ofertado no mercado; mesmo assim, não consegue encontrar liquidez para comprar o que vendeu sem ter para entregar. Concomitantemente, alguns governos, mais preocupados com eleições do que com os riscos e resultados desastrosos destes acordos, os seguem assinando com instituições financeiras internacionais e empresas estrangeiras. Assim é que vão produzindo uma espécie de “subprimeambiental”: empacotando as dívidas, os créditos bons com os ruins, transformando passivos (poluição, lixo químico, tóxicos, entre outros) em ativos ambientais e empurrando a conta dos “recebíveis” para pagamento das futuras gerações.
Não por acaso a Constituição brasileira está sendo desmantelada para viabilizar essa ofensiva fundiária, enquanto, simultaneamente, se espalham bases militares de potências imperialistas neste continente e proliferam os conflitos pela posse das terras com enfrentamentos e assassinatos de ativistas, lideranças comunitárias e jornalistas de resistência.
Por esses motivos, estamos investigando possíveis fraudes em anúncios de vendas destes créditos. Agimos para apurar denúncias e seguir cobrando rigorosamente do poder público e dos órgãos fiscalizadores, a despeito dos que rebatem nossas críticas. Até por que não sabemos nada, não entendemos nada e não participamos de nada!
Neste sentido — no do ganho de dinheiro com o serviço alheio (a natureza), militarizando-a e financeirizando-a, assim produzindo este novo “subprime ambiental” -, eles de fato são pioneiros!
Referências:
EL KHALILI, Amyra. Economia Verde: O subprime ambiental. Fórum de Direito Urbano e Ambiental (FDUA), Belo Horizonte, a. 12, n. 69, p. 9-11, mai./jun. 2013.
LANG, Chris. INTERPOL: Intangible carbon markets at risk from criminal networks. Acesso em: 8 ago. 2013. Capturado em: 28 mai. 2017.http://www.redd-monitor.org/2013/08/08/interpol-intangible-carbon-markets-at-risk-from-criminal-networks/#more-14259
EL KHALILI, Amyra. As commodities ambientais e a métrica do carbono. http://racismoambiental.net.br/2017/02/17/as-commodities-ambientais-e-a-metrica-do-carbono/. Acesso em: 17 fev. 2017. Capturado em: 17 fev. 2017.
EL KHALILI, Amyra. O que se entende por financeirização da naturezahttp://port.pravda.ru/cplp/brasil/29-04-2016/40873-financeiracao_natureza-0/. Acesso em: 29 abr. 2016. Capturado em: 28 mai. 2017.
Amyra El Khalili é professora de economia socioambiental e editora das redes Movimento Mulheres pela P@Z! e Aliança RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras.

Onde está a esperança?

Tainara Stumpf
Em meio a tantas notícias ruins de corrupção, roubo, exploração, violência e injustiça o desânimo chega. Por mais positivos que tentamos ser, o meio nos neutraliza. Em uma manhã destes últimos dias turbulentos, eu fui até um laboratório fazer exames de sangue. Saí da sala de coleta e fui tomar um cafezinho e comer algo, gentilmente oferecido pelo laboratório.
Nesta sala de espera encontrei um amigo, ex-colega de trabalho em uma empresa na qual me aposentei. Ele perguntou se eu ainda fazia exames anuais. Eu disse que fazia porque com a idade sempre acontecem surpresas. Um colesterol aqui, uma pressão alta ali, a artrose que se apresenta. Enquanto eu brincava com a situação uma senhora me observava atentamente e, no meio da conversa ela falou: tudo isso se previne com a alegria.
Concordei e fiquei encantada! De manhã cedo, ainda com fome, ouvir alguém falar em alegria. Isso não é comum! A esperança me iluminou a partir desta interação. Saí muito animada do laboratório, e dirigi-me a outro compromisso em um dentista.
Desloquei-me até o consultório e buscava um cartão de estacionamento que é vendido em estabelecimentos comerciais. Aguardava pacientemente uma jovem me atender em uma lancheria, mas ela ainda dava atenção a uma pessoa na minha frente.
Havia mesas na calçada, onde as pessoas paravam e pediam algum lanche ou cafezinho. Em uma delas, tinha um senhor sentado de uns 70 anos aproximadamente, que bebericava uma água mineral. Aproximou-se uma pessoa que o reconheceu e foi logo dizendo: Seu Antenor, como vai? Ao que ele respondeu: Muito tranquilo, na Santa paz! E prosseguiram em uma animada conversa.
Eu que ainda estava aguardando a atendente, me surpreendi com a resposta. Dentro do caos social que estamos vivendo esta pessoa tem reservas de tranquilidade? Eu esperava naturalmente ouvir uma torrente de reclamações e queixas.  Apesar de ter a minha expectativa frustrada, sorri por dentro. Pensei: que bom. Ainda há esperança.
Saí sorrindo após ser atendida. Estava contagiada pelo bom humor de Seu Antenor que não me conhecia, mas havia me feito momentaneamente feliz e cheia de esperança.
Em meu caminho até o dentista, eu precisei atravessar a rua e uma saraivada de buzinas chamou a minha atenção. Um motorista distraiu-se na sinaleira e demorou a arrancar o seu carro. Com o susto, ele apagou o carro e se esforçava para ligá-lo rapidamente e liberar o trânsito. Os motoristas que aguardavam não deram trégua. Esganiçavam suas buzinas como se o fim do mundo se precipitasse sobre nós. Novamente tive um choque de realidade. Desta vez não foi agradável.
Mas logo me dei conta que não valia a pena entrar na energia de incompreensão dos motoristas raivosos, pois tinha boas lembranças anteriores para guardar. Pensei nas escolhas que a vida coloca à nossa frente o tempo todo e nas coisas que devo dar mais atenção.
Durante o dia comentei com muitas pessoas sobre as experiências positivas da manhã e esqueci completamente o episódio das buzinas. Percebo que por mais que o contexto se mostre caótico, a esperança está no ar e na vida das pessoas. A partir do desejo de paz e felicidade, contaminamos todos que nos cercam com muito mais força do que com a raiva e incompreensão.
Desejo que pessoas inspiradoras me abordem e surpreendam sempre. Deste modo terei energia e vitalidade abundantes para fazer o mesmo. Se dedicarmos mais atenção para as coisas boas que a vida oferece, penso que não teremos tanta violência e corrupção no nosso contexto. É preciso acreditar para manter a esperança.

Brasil, crise e saída não ortodoxa

Moysés Pinto Neto*
A década passada foi inegavelmente um grande momento para o Brasil. O bolo cresceu e foi distribuído também aos pobres, promovendo um deslocamento na estrutura de classes brasileira e uma reconquista da autoestima nacional. O que hoje é regra, a depreciação do Brasil, tinha virado cafonice. Nosso país tornava-se um dos projetos de futuro mundial, invertendo a equação colonizada de que deveríamos copiar tudo do Norte. Durante a crise de 2008, víamos as economias de lá despencarem enquanto vivíamos nosso melhor momento, podendo até tripudiar a crise chamando-a de “marolinha”. Por todo o mundo, o Brasil era visto como potencial modelo porque combinava uma nova estabilidade institucional, conquistada pela Constituição de 1988 e transição serena entre tucanos e petistas, estabilidade econômica, com responsabilidade fiscal, controle da inflação e crescimento, e um caldeirão sociocultural e ambiental ainda inexplorado, mas cheio de vitalidade.
No entanto, os arranjos do poder não eram auspiciosos. Do ponto de vista político, formava-se um grande bloco no poder — o “condomínio pemedebista” — cuja gestão era disputada pelos petistas e tucanos. As relações com o setor privado estavam despidas de toda transparência. Sabíamos que as campanhas ficavam cada vez mais caras, o “Mensalão” fora o prenúncio da crise do financiamento que indicava ter o PT perdido qualquer diferencial em relação ao resto do sistema. A combinação entre esses negócios e a gestão pemedebista — fundada em supermaioria parlamentar comprada com cargos e, hoje dá para dizer tranquilamente, grana — formava um regime oligárquico e plutocrático, onde o poder político tradicional (p.ex., Sarney, Calheiros) e os “supercampeões” (Odebrecht, Friboi, OAS, Andrade Gutierrez) atuavam em conluio bem distante da população. O Plano de Aceleração do Crescimento, programa número 1 do imaginário petista pós-2008, tinha esse “lado B”. Se o “lado A” era o discurso do crescimento virtuoso, da geração de empregos, do impulsionamento do mercado interno e aventura no mercado global como player, o “lado B” era a corrosão democrática, o domínio das construtoras nas cidades, o governismo apático, a ofensiva sobre os índios e a devastação ambiental.
A pauta do transporte público, em 2013, foi o catalisador de uma indignação geral contra esses arranjos. A pax lulista, que se prolongou nos primeiros anos da gestão de Dilma, é desarranjada pelos movimentos que reivindicam outro modelo de urbanismo, outra experiência da democracia, mais ousadia na configuração do nosso futuro. Em seguida, a classe média invade a rua e pede menos corrupção, mais educação e saúde. Mas o processo não para por aí: das Câmaras Municipais ocupadas no Brasil, passando pelos rolezinhos até o #naovaitercopa, é possível ver que o movimento nunca se deixou domesticar totalmente pelas forças da direita ou da esquerda ou seus interesses partidários imediatos. Ele vira uma hidra de muitas cabeças — e todas as tentativas de hermenêutica do fenômeno acabam fracassando diante da sua multiplicidade, todas as tentativas de redução sociológica acabam revelando mais as idealizações políticas dos cientistas sociais que o dispêndio energético do momento cujos efeitos sentimos até hoje. Sem dúvida, a única aproximação possível é com a ideia de acontecimento, pensada tanto pela filosofia alemã (Heidegger, Benjamin) quanto pelo pensamento francês (Althusser, Foucault, Derrida, Deleuze, Badiou), no sentido daquilo que excede o possível, estoura as capacidades de predição do estado anterior e aponta para o imponderável.
No entanto, em 2014 somos confrontados com a mesquinharia daqueles que colocam o processo eleitoral acima de tudo e de todos. A radicalidade daqueles que não disputavam uma cadeira no Palácio do Planalto, mas um projeto de futuro, é substituída pelo apoio “apesar de tudo”, pela esperança hoje surreal da “guinada à esquerda”. O hibridismo de 2013 e início de 2014 torna-se uma polarização identitária focada no poder institucional, colocado no plano de emergência e fim do mundo, como se tudo que ocorresse naquela eleição fosse questão de vida ou morte. E a vitória melancólica de Dilma não alivia o quadro: a direita não aceita o resultado, povoa as ruas, e a esquerda é capturada na defesa de um projeto muito aquém do que foi destinado o voto. O compromisso com a manutenção do governo paralisa a radicalidade do pensamento, tornando a crítica refém do dogmatismo esquerdista, fazendo com que as perspectivas radicais fossem engolidas pela defesa do indefensável. A perspectiva de futuro encurta-se drasticamente — e esse encurtamento mostra-se bem quando a questão procedimental começa a tomar a frente dos debates políticos, numa redução do político ao jurídico. Chega-se às raias de sustentar o “direito subjetivo” da governante permanecer no cargo, como se o poder destituinte não fosse uma ferramenta muito mais interessante que esse conservadorismo jurídico ad hoc, inventado para proteger um partido específico da pressão política.
Caímos no imediatismo. E é o mesmo imediatismo que, mesmo numa crise abissal desde 2015, torna as eleições de 2018 a única pauta. Novamente, caíamos na lógica eleitoral sequestrando a política. Não que eleições não sejam importantes. Mas sem repensar os fundamentos do nosso apoio político, todo apoio cairá na mesma lógica atual. Repetiremos o mesmo círculo vicioso.
Do ponto de vista de longo prazo, o momento é extraordinário. Nunca as oligarquias políticas estiveram tão emparedadas. É verdade que o Poder Judiciário e o Ministério Público não são forças revolucionárias e não raro — como vimos no caso Joesley — protegem o empresariado de sanções tão duras quanto as que impõem à plebe sem pudores. Trata-se também de uma casta político-burocrática, não raro herdeira de grandes arranjos aristocráticos-familiares (“nobreza togada”), política e socialmente conservadora e formada também não raro por manuais de direito puramente dogmáticos, que repetem o conteúdo da lei e as decisões dos tribunais de forma decorada, não-crítica, sem preocupação com os fundamentos filosóficos e as consequências sociais dos atos (explorei a relação dessa casta com os “concurseiros” em outro texto). Além disso, carecem de legitimidade popular, por mais que tenham o apoio midiático, uma vez que não foram eleitos pelo voto.
E, mesmo assim, não dá para ser tão maniqueísta na análise. Bem ou mal, a blindagem absoluta que protegia a classe dominante no Brasil está abatida. As previsões que destacavam a seletividade das investigações, supostamente apenas dirigidas ao PT, falharam miseravelmente. Aécio Neves, principal nome da oposição, está afastado e os grandes articuladores do PMDB — Eduardo Cunha, Eliseu Padilha, Renan Calheiros e Moreira Franco — estão na mira da operação. O próprio presidente, Michel Temer, está sob fogo cerrado. Empresários da Odebrecht, OAS e outras construtoras foram presos e tiveram que entregar seus esquemas. Essa força em direção à transparência não está ligada a uma grande manipulação arquitetada por forças em conluio secreto: ela é um processo incontrolável, ligado fundamentalmente à nova matriz tecnológica, que provoca um tremor no conceito de esfera pública. Vários filósofos — como Derrida, Guattari, Latour e Stiegler — pensaram esse fenômeno em toda sua radicalidade, mas infelizmente parece que os intelectuais brasileiros fracassaram rotundamente em fazer a mediação entre conhecimento e militância política. Reféns da agenda eleitoral e dos compromissos partidários ou parapartidários, submetem as análises a categorias pobres, como as de manipulação da mídia, grande conspiração e alienação do povo.
Sem subscrever totalmente a descrição de Marcos Nobre, é no entanto possível usar sua imagem do sistema da Nova República como um mapa para se entender o impacto da Lava-Jato. Para Nobre, haveria um bloco progressista, o “social-desenvolvimentismo”, composto de petistas e tucanos — com o intuito reformista e voltado para a modernização do país. Esse bloco teria que negociar com o “centrão”, bloco pemedebista (no sentido amplo), movido pelo arcaico e pela fisiologia e cujo apoio é condição da governabilidade. Foi esse grande arranjo que desabou. A capacidade dos progressistas mediarem o “imobilismo em movimento” da Nova República desabou em 2013, quando as ruas atacaram a própria condição antidemocrática da “governabilidade”. A composição desaba e hoje não temos forma; estamos, rigorosamente, em desconstrução. Ninguém pode antever o futuro: como diz Derrida, “ele só se anuncia na forma de monstruosidade”.
Há, basicamente, três argumentos do campo progressista contra a Lava-Jato: o econômico, o jurídico e o conservador. Pelo argumento econômico, o dinheiro recuperado e o combate à corrupção não compensariam os danos econômicos provocados nas grandes empresas nacionais, causando desemprego e recessão. O argumento jurídico consiste em criticar, a partir da matriz garantista (defesa dos direitos individuais dos acusados), os abusos judiciais da Operação, chegando a afirmar que estaríamos em estado de exceção. Finalmente, o argumento conservador é baseado simplesmente no medo: o que virá depois de quebrarmos nossas estátuas, de destruir nossos ídolos?
O argumento econômico mostra bem que o “capitalismo de laços” brasileiro é um patrimonialismo. Não importa que as empresas estivessem colonizando o espaço público e enfraquecendo a democracia, não importa que recebessem vantagens competitivas em relação a pequenas empresas na disputa do mercado, tudo se resume a “dar empregos” ou “promover o PIB”. É o mesmo argumento medíocre do progressismo que tolera o neoextrativismo: o agronegócio sustenta nosso crescimento, então às raias para índios e ecologia. Como se não fosse possível pensar em outros modelos não inspirados em megalomanias macropolíticas e macroeconômicas, impulsionando um menor no campo e na indústria, talvez sem o mesmo impacto nos números, mas mais disseminado, distribuído, conectado com a vida das pessoas e menos refém do capitalismo predatório que hoje corrói o tecido urbano com condomínios, blocos gigantescos, estacionamentos e shopping centers, ou o campo com barragens, monoculturas, exploração de trabalho escravo e etnocídio indígena.
O argumento jurídico é pequeno perto do que está em jogo: quando mesmo o Brasil viveu uma “normalidade institucional” desse ponto de vista? Quando as garantias individuais foram respeitadas até o limite em que esses juristas invocam, por exemplo, com a população pobre? O direito é invocado como blindagem de classe, ele se apresenta como uma fantasia que encobre as relações de poder e finge que a decisão é principiológica, quando a rigor o que está em jogo é interesse de classe. Alertar para erros e abusos jurídicos pontuais é mais que necessário. Mas, quando se traduz o cenário em ruptura com um direito que estaria assentado na normalidade e na lei, o que se faz é revestir privilégio em direito, confundir blindagem e garantia. As críticas que se faz em torno dos limites dos poderes judiciais ou dos abusos acusatórios do Ministério Público em geral estão corretas e são justas, mas daí a considerar que isso significaria, em termos políticos, uma ruptura institucional é um passo que ignora a forma normal que funciona o sistema penal. É bom lembrar que boa parte dos juristas que hoje anunciam o estado de exceção devido ao golpe parlamentar ou, pior ainda, diante das violações de direitos individuais de Lula protestavam quando se criticava a violência policial diante das manifestações, as operações militares nas favelas cariocas ou a repressão ao #naovaitercopa como medidas de exceção. É preciso então decidir: se vivemos em estado de exceção, é preciso reconsiderar as posições anteriores, perceber que ele começou bem cedo (na verdade, nunca saímos) e extrair as conclusões devidas disso (que certamente não convergem para um garantismo); se, por outro lado, trata-se de afirmar a normalidade institucional, então as recentes violações não são suficientes para nos jogar em outro momento, pois lá atrás tampouco eram.
Finalmente, o argumento conservador, por ser baseado no medo, é muito frágil. A pergunta é sempre a mesma: o que fazer, então? Silenciar diante do desvio de dinheiro público, fazendo vista grossa à colonização da esfera pública pelos poderosos? Não enfrentar os interesses dominantes porque, ao fim e ao cabo, eles dão empregos e fazem crescer a economia? Construir uma aura santa sobre os políticos de esquerda que os tornam imunes a investigações? Evidentemente, nenhuma dessas posições se sustenta minimamente.
O momento é extraordinário porque, ao mesmo tempo em desaba o patrimonialismo, se abre uma janela histórica para formular novos projetos. É verdade que o processo atual é um diagrama complexo de interesses em que mídia, burocracia judiciária, mercado financeiro e oligarquias políticas tentam impor suas cartas. A questão, no entanto, é deixar de lado as teorias conspiratórias, passando uma navalha de Ockham, e se focar no entrechoque aleatório que gera o imponderável. Mais que nunca, a imagem de Lucrécio, revivida por Althusser, hoje parece dar frutos. Não o grande esqueleto ideal platônico, a República organizada e ordenada, mas o choque de átomos que provoca encontros e desvios, sendo irredutível a qualquer configuração prévia que se possa imprimir. A energia destituinte pode ser revolucionária se cuidarmos para organizá-la, tirar do estado bruto e lhe dar plasticidade. As pessoas não estão interessadas em defesas de figurões ou partidos, ou de identidades políticas, mas de ideias. Os liberais já apresentaram — a ganharam alguma força popular — seu projeto de futuro. Eles querem um Estado menor e mais eficiente, um mercado mais competitivo, uma educação mais individualista e meritocrática e uma ética do trabalho forte.
E o outro lado? Não está claro ainda o projeto. É a janela que se abre para pensarmos um modelo descentralizado de política, que possa aproximar mais o cidadão do representante, com inovações como mandatos coletivos, municípios fortes e muitas outras. Um modelo de economia pautado na inovação tecnológica, que aproveita a energia criativa do brasileiro e pensa a indústria fora do modelo decrépito da fábrica, estimulando pequenos empreendimentos, mais próximo do local, em detrimento dos grandes players. Um modelo ambiental que estabeleça um balanço justo entre os seres vivos que compõe a ecologia brasileira, dos biomas à atmosfera, das profundezas à floresta, do mineral ao humano, do campo à cidade. Um modelo que permita restabelecer aquilo que nos torna adversários dos liberais — uma noção forte do “social” — que se inspire na solidariedade social como um pilar fundante para qualquer coletivo e que relativize o papel do dinheiro, da riqueza, como uma única fonte de reconhecimento social. Que valorize mais, por exemplo, o tempo como o bem mais precioso que alguém pode ter, no contrafluxo da aceleração niilista que percorre o mundo, ou a qualidade de vida como contraponto à hegemonia do poder e do dinheiro. E com isso um novo modelo trabalhista e previdenciário ainda inspirado na solidariedade social, e não na poupança individual, entendido o coletivo como estrategicamente decisivo para uma boa vida em sociedade. Um modelo que possa integrar educação, esportes e cultura, aproximando toda vitalidade da cultura brasileira de dimensões que, até agora, só copiamos do Norte. Um modelo que precisa ser inventado — mas cuja gestação já está em andamento na sociedade brasileira, nas diversas experiências bem-sucedidas, no conhecimento que já é produzido nas universidades, nos movimentos sociais, nas experiências empreendedoras, nos coletivos da Internet, nas bricolagens populares, nas tradições desperdiçadas.
Tudo isso está em aberto. A decomposição do instituído é nossa oportunidade.
*Artigo extraído do Outras Palavras

Eleições gerais, já!

Jonas Tarcísio Reis*
Neste fatídico 24 de maio, Temer convoca, via decreto, as forças militares para incendiar mais ainda o Brasil varonil. É um chefe de Estado piromaníaco. Inclusive, assina seu próprio atestado de incompetência política para dirigir o país, somado a ausência de moral. Exército na rua é o recuo total da ordem democrática. Os militares devem ter o discernimento adequado para entender que o governo predador de direitos está em putrefação avançada, e manter uma linha auxiliar ao povo trabalhador que luta contra as reformas neoliberais de destruição da Previdência e da CLT. A única saída é pelas urnas, com Eleições Gerais, já. Democracia acima de tudo.
Não há espaço para Temer não renunciar. O presidente da Câmara deve abrir imediatamente o processo de impedimento do presidente. O momento cobra postura republicana e respeito ao povo, acima de tudo. A garantia da ordem só se dará pela saída imediata do golpista do Planalto, à força ou espontaneamente. A base aliada está em debandada geral, não há chances de recompô-la. Dezenas de milhares de trabalhadores sitiaram, em 24 de maio de 2017, o Congresso e o Palácio onde Temer decreta socorro ao exército para lhe manter apodrecido no poder. As instituições se desmancham de forma ímpar. A aliança golpista foi a bancarrota. O Capital estrangeiro não deposita mais confiança nesta nação. Quem dará o tiro de misericórdia em Temer, o povo, o Congresso Nacional ou o Judiciário?
A República está por um fio. O pacto social capitalista não tem legitimidade para arrancar mais direitos do povo trabalhador. Os vampiros da nação devem ser exorcizados pela população na rua. As ruas gritam: “Fora Temer!” Não há espaço para a acefalia institucional. O Supremo Tribunal Federal deve ler bem a constituição. Aos irmãos Batista nenhum direito: algemas neles, pois são da escória humana e precisam ser punidos, seu patrimônio deve ser confiscado pelo Estado brasileiro e suas empresas estatizadas. A ordem injusta deve ser invertida. O povo tem fome. Falta emprego. São mais de 14 milhões sem fonte de renda. Falta Educação, Saúde e Segurança. Os pagadores de impostos trabalham feito formigas e nem aposentadorias querem lhes garantir. O tecido social brasileiro está esburacado. O caldeirão dos acordos ferveu e derramou o angu, mas não apagou o fogo. As chamas queimam a todo o vapor as alianças entre a mídia hegemônica, os grandes empresários e os políticos fisiológicos. A estupidez dos homens tomou conta das mentes que outrora pareciam republicanas.
Exige-se o mínimo de racionalidade aos líderes nacionais. A desordem parte de dentro do Planalto. “O governo é ilegítimo”, reitera a sociedade todos os dias. A defesa da nação está nas mãos dos trabalhadores. Ninguém mais do que aqueles que constroem esse país através de seu trabalho/suor devem ser ouvidos. Os brasileiros clamam por eleições diretas. O campo do trabalho está esclarecido: “nenhum direito a menos!” O retorno ao passado é rechaçado por todos, de forma uníssona. As autoridades estão em descrédito profundo. Não há como ficar parado. A farsa foi amplamente conhecida: tiraram Dilma para continuar roubando. Nenhum brasileiro será conivente com a dilapidação desvairada do patrimônio e da alma pública dessa República.
Todos às ruas, imediatamente, até a queda de Temer e a instalação do processo eleitoral direto. O voto popular quer ser consultado. Não há saída senão no seio da soberania popular. O “Presidente”, o “Congresso” e o Judiciário estão nus!
Ajeitem as urnas, queremos votar para Legislativo e Executivo! Democracia em primeiro lugar. Pelo futuro de nossas crianças, por uma sociedade menos injusta e pela dignidade brasileira: ELEIÇÕES GERAIS, JÁ!
Jonas Tarcísio Reis é professor e diretor geral do Smpa (Sindicato dos Municipários de Porto Alegre)

O passado recente e o futuro próximo

Walmaro Paz
Para entender a crise política atual, isto é, a segunda parte do golpe iniciado com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, precisamos fazer uma leitura da política internacional. Com a queda do muro de Berlim e a suposta “derrota do socialismo”, o neoliberalismo perdeu seu grande opositor bélico e econômico, a União Soviética.
As forças reacionárias do imperialismo, agora disfarçadas sob o manto do processo de globalização, resolveram retomar as colônias perdidas durante a guerra-fria, todas nos antigos territórios dominados chamados por eles de terceiro mundo.
A África teria que ser recolonizada e ou seu povo exterminado através de guerras civis encomendadas pela indústria armamentista e pelas mineradoras. A América Latina deveria se submeter a uma nova fórmula da Doutrina Monroe: América para os americanos do Norte, transformando nossos países novamente em exportadores de commodities e importadores de produtos manufaturados.
No caso brasileiro, ainda no final dos anos 80 tentaram implementar um chamado social liberalismo, com Collor, liderança populista construída pela Globo (esta aliás o instrumento ideológico mais usado no processo). O povo brasileiro resistiu.
Então, ainda nos anos 90, criaram uma liderança com discurso de esquerda, mas totalmente submissa para fazer as privatizações e reformas necessárias. Elegeram Fernando Henrique Cardoso (FHC), um até então respeitável pensador da esquerda brasileira e começaram o processo. Há muito tempo os militares estavam tendo um custo muito elevado politicamente.
Conseguiram mantê-lo durante dois mandatos e iniciaram um processo de corrupção nunca visto no país, retratado fielmente na obra “Privataria Tucana”, comprando deputados de todos os partidos.
Mas o povo elegeu Lula (Lulinha paz e amor), que já havia renunciado ao projeto petista e popular antes da eleição na Carta aos Brasileiros. Assim que eleito, o presidente metalúrgico foi a Washington buscar o beneplácito do presidente Bush e voltou com o Henrique Meirelles nomeado presidente do Banco Central. Ali começou a rendição: Meirelles era o grande nome do consenso de Washington para o Brasil.
Esta figura permaneceu no centro de poder durante este tempo todo, passando pela iniciativa privada, onde foi presidente do conselho de administração do grupo Friboi. Com o golpe contra a presidente eleita Dilma Rousseff que, com sua política nacional-desenvolvimentista, mostrara resistência às exigências, Meirelles assume a chefia da política econômica do títere Temer.
Tentaram aprofundar as chamadas reformas com a destruição da CLT e da Seguridade Social. Mas o povo nas ruas fez com que Temer recuasse alguns passos e isto foi insuportável para seus mentores. Chega deste pulha: foraTemer e começou o processo de desestabilização que vai eleger Meirelles presidente por via indireta e, terminando a tarefa iniciada ainda nos anos 80, empurrando goela abaixo do povo brasileiro a sua pior derrota.
Cheguei a esta leitura da conjuntura atual principalmente pelo interesse da Globo na deposição de Temer e nas denúncias contra seus asseclas e a todos os políticos além da campanha pelas eleições indiretas e a colocação de um “técnico” na presidência.  Torço para estar errado, vamos esperar pelo futuro próximo para confirmar ou não esta avaliação.

Diretas Já!

Até ontem Temer se gabava de ter colocado o país nos trilhos. A máscara caiu. As instituições que sustentam a República faliram. O estado brasileiro não pode continuar sendo gerido como um balcão de negócios para locupletar a iniciativa privada. Empresários: deixem de se comportar como aves de rapina, comprando votos para aprovar medidas que facilitem a sonegação, o perdão de dívidas e vantagens espúrias. Parem de financiar campanhas políticas para depois cobrar a fatura através de orçamentos superfaturados e licitações arranjadas.
As elites brasileiras estão acostumadas a resolver crises políticas em gabinetes. Desta vez, não sairemos do fundo do poço sem uma repactuação que inclua os trabalhadores.  Convençam-se de uma vez por todas: não construiremos um país moderno com as portas do Congresso Nacional sitiado por baionetas. Boa parte dos parlamentares não possui autoridade moral para encaminhar a solução desta crise. A melhor forma de honrar a Constituição é devolver a soberania ao povo brasileiro. Por isso, defendemos eleições diretas já.
A repactuação precisa ser sedimentada em torno de algumas diretrizes. A primeira delas é o aprofundamento da democracia. Nenhuma decisão de grande importância pode ser tomada sem o povo. Precisamos utilizar os instrumentos da participação direta, como referendos e plebiscitos. Só assim recuperaremos o sentido da política.
Devemos cerrar fileiras em torno da retomada do crescimento econômico com geração de empregos. Os 14 milhões de desempregados não podem esperar até 2018. A Petrobras é o nosso principal motor do desenvolvimento. Não podemos aceitar que seja saqueada pelo capital estrangeiro.
É um despropósito enfrentar uma quarta revolução industrial, intensiva em tecnologia e conhecimento, congelando por 20 anos os investimentos em educação. A sangria do orçamento federal para pagar juros da dívida pública precisa ser estancada. As reformas da Previdência e Trabalhista do moribundo Temer estão na contramão e devem ser abandonadas.
A crise, que se aprofunda a cada dia, não nos imobilizará. Ao contrário, é uma oportunidade para afirmar a democracia e reacender a esperança.
Claudir Nespolo
Presidente da CUT-RS

100 anos depois

Claudir Nespolo
Em 1917 os operários brasileiros realizaram a primeira grande greve geral para reivindicar medidas contra a carestia, elevar os salários, reduzir a jornada de trabalho para 8 horas e proibir o trabalho infantil. Cem anos atrás o povo trabalhador entrou em cena e disse: “temos direito a ter direitos”. Antes e depois de 1917, por meio de greves memoráveis, boa parte dos direitos do trabalho, que hoje usufruímos como um patrimônio civilizatório, foram explicitados nas ruas por homens e mulheres que sobreviviam com o suor do seu rosto.
Para as elites da época, acostumadas com o relho e o pelourinho, soava degradante negociar direitos com a “horda indolente”. Açoite e xilindró nos líderes, vociferavam patrões ditos republicanos. A contragosto, sobretudo da elite empresarial paulistana, que também se autoproclamava moderna, Getúlio Vargas impôs um projeto de industrialização com garantias mínimas de direitos do trabalho. Através de artifícios de dominação, o Estado transformou uma conquista dos trabalhadores em presente de governante, até hoje a CLT carrega essa mácula.
Cem anos depois realizamos outra greve geral, em 28 de abril. A maior da nossa história. Só no RS estimamos a paralisação de 2 milhões de trabalhadores e 40 milhões no Brasil. Desta vez, para assegurar direitos conquistados pelos nossos antepassados. O recado foi claro: parem com o trator das “reformas”, pois nós sabemos que são prejudiciais.
Não acreditamos em rompante modernizador que corte direitos. O que traz geração de empregos é crescimento econômico. Segurança jurídica é respeitar a CLT e o trabalho com direitos. Fomos crucificados como adoradores de greve. Não nos peçam para sermos cúmplices deste hediondo retrocesso na Previdência e nos direitos trabalhistas. Temos o dever moral de defender os nossos direitos, honrar os nossos antepassados e zelar pelo futuro dos nossos filhos e netos.
Claudir Nespolo é metalúrgico e presidente da CUT-RS

As causas do aumento da tarifa de ônibus em Porto Alegre

André Coutinho Augustin
Recentemente, a Prefeitura Municipal de Porto Alegre anunciou que a passagem de ônibus na cidade passaria a custar R$ 4,05, uma das tarifas mais altas do País. Esse reajuste só reafirmou a tendência que já se verifica há algum tempo: desde a implantação do Plano Real (julho/1994), a passagem já aumentou mais de 1.200%, enquanto a inflação do mesmo período, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), foi de cerca de 420%.
Na maioria das grandes cidades do mundo, há subsídios para o transporte público. Isso ocorre tanto por motivos sociais — já que a população de menor renda é a que mais depende do transporte público para se deslocar — quanto por seus impactos no trânsito, pois o incentivo ao transporte coletivo diminui o número de carros circulando na cidade. Consequentemente, há menos engarrafamentos e uma redução do tempo médio de deslocamento, da emissão de gases poluentes e do número de acidentes. No Brasil, entretanto, costuma acontecer o contrário, e a maioria dos subsídios existentes são para o transporte individual, enquanto o transporte público é pouco subsidiado e precisa cobrir os seus custos com a receita tarifária. Assim sendo, a passagem é calculada dividindo-se os custos das empresas de ônibus pelo número de passageiros pagantes. Para entender a evolução da tarifa, portanto, há que se que olhar para essas duas variáveis.
Em relação aos custos, a Prefeitura e os empresários costumam enfatizar o salário dos rodoviários, que é o principal item de despesa das empresas de ônibus. Embora seja verdade que os rodoviários de Porto Alegre recebem uma das maiores remunerações da categoria no Brasil, esse salário não teve aumentos significativos recentemente. Depois de um breve período de recuperação salarial após o Plano Real, os rodoviários estão com o salário praticamente constante desde agosto de 1997 (tiveram um aumento real de 7,7% nesses quase 20 anos, contra um incremento de cerca de 130% do salário mínimo).
Mais do que a variação dos salários ou do preço dos insumos, o que tem impactado no aumento do custo estimado do sistema de ônibus de Porto Alegre são as mudanças na forma de cálculo desse custo. Essas mudanças levaram o Ministério Público de Contas a ingressar, em março deste ano, com uma representação junto ao Tribunal de Contas do Estado (TCE) para que fosse verificada uma possível “elevação indevida da tarifa”. Após essa representação, o TCE decidiu abrir uma inspeção especial para verificar os critérios de reajuste da tarifa. Ao contrário do que havia anunciado inicialmente, a Prefeitura optou por não esperar o parecer final do TCE para aumentar a passagem. A representação, que foi baseada em estudos realizados pela Fundação de Economia e Estatística, analisou os seguintes aspectos da composição tarifária:

  1. até 2014, a cotação do preço do óleo diesel era feita a partir da pesquisa de preços da Agência Nacional do Petróleo (ANP). Em 2015, a Prefeitura determinou que as próprias empresas deveriam informar a cotação, e, desde então, elas indicam preços acima do valor de mercado do óleo diesel;

  2. as receitas extratarifárias previstas no edital da licitação dos ônibus, com destaque para os rendimentos líquidos da aplicação fi nanceira advindos da comercialização de créditos antecipados, deveriam ir para uma conta da Prefeitura e ser revertidas em modicidade tarifária. Hoje, vão para a Associação dos Transportadores de Passageiros (ATP);

  3. o cálculo da tarifa, após a licitação de 2015, deveria ser feito com base na média dos custos apresentados pelos diferentes consórcios que venceram a licitação. Ao alterar a forma de cálculo da média prevista no edital, a Prefeitura chegou a um custo total do sistema de ônibus que é maior do que a soma dos custos de cada empresa;

  4. não se considera, na planilha de custos, a redução na frequência dos ônibus que ocorre todo ano durante o verão, implicando uma estimativa equivocada do fator de utilização de pessoal;

  5. houve aumento na estimativa de consumo de combustível por quilômetro para a maioria dos modelos de ônibus, sem apresentação de explicações técnicas, chegando, em alguns casos, a um incremento de mais de 80% em apenas dois anos;

  6. houve redução na estimativa de vida útil dos pneus.

Entretanto, se todos os fatores acima mencionados podem ter levado a um aumento artificial dos custos, eles, sozinhos, não explicam a elevação da tarifa: o principal motivo do aumento nas últimas duas décadas foi a queda do número de passageiros pagantes. Segundo a Prefeitura, essa queda ocorreu devido às isenções previstas em lei. O percentual de isentos realmente vem aumentando, mas isso não se dá devido ao crescimento dos passageiros isentos, mas à redução dos outros passageiros. Para justificar uma possível redução das isenções, a Prefeitura divulgou estimativas de quanto a passagem poderia ser diminuída se elas fossem extintas. Essas estimativas, entretanto, supõem que um passageiro que hoje é isento continuaria fazendo exatamente o mesmo número de viagens se precisasse pagar por elas, um pressuposto que não condiz com a realidade nem com a teoria econômica.
Na verdade, a queda do número de passageiros pode ser explicada principalmente por dois fatores, um conjuntural e outro mais estrutural. O primeiro é o aumento do desemprego causado pela crise econômica. De 2014 a 2016, a taxa de desemprego no Município de Porto Alegre passou de 4,9% para 9,1%, de acordo com a Pesquisa de Emprego e Desemprego na Região Metropolitana de Porto Alegre (PED-RMPA). Como o deslocamento de casa para o trabalho é o principal motivo de viagens na cidade, uma redução no emprego diminui o número de passageiros de ônibus. O surgimento de aplicativos como o Uber no mesmo período pode ter contribuído para essa queda, embora não existam dados disponíveis para medir tal impacto.
O segundo fator é a substituição que está ocorrendo, nas últimas décadas, do transporte público pelo transporte individual. Como dito anteriormente, isso é incentivado por políticas públicas nos três níveis de governo, através, por exemplo, de isenções fiscais e de construção de novas vias. Contrariando a tendência mundial de restringir o uso do carro nas grandes cidades, principalmente nas áreas centrais, Porto Alegre abre cada vez mais espaço para o automóvel. Exemplos disso são a abertura da rua José Montaury para o tráfego de veículos e o projeto de “revitalização” do Cais Mauá, que prevê a demolição de armazéns históricos para a construção de mais de 4.000 vagas de estacionamento no Centro da cidade.
Enquanto a política de mobilidade urbana no Brasil for a redução dos direitos dos usuários do transporte coletivo (caso da restrição à segunda viagem gratuita, como proposto recentemente pela Prefeitura) e o aumento do espaço para os carros, o número de passageiros de ônibus vai continuar caindo. Com isso, o sistema poderá entrar em colapso, prejudicando principalmente a população mais pobre, que não tem outras alternativas de transporte.

Publicado originalmente da edição: Ano 26 nº 5 – 2017 da Carta de Conjuntura da FEE

Ciência Extraordinária – Os ativos intangíveis da Cientec

Geraldo Mario Rohde *
Ao contestar a postura simplória e reducionista usada para justificar a extinção da Cientec, de que ela faria tão-somente análises, testes e ensaios, commodities  disponíveis e pesquisas igualmente substituíveis pelo mercado, é necessário colocar uma visão histórica que, na qual nos seus mais de 70 anos de atividades, a Cientec sempre se pautou por produzir conhecimento aplicável a questões estratégicas de Estado, como a criação e implantação do Polo Petroquímico, a instalação do Complexo Termelétrico de Candiota e na duplicação da Refinaria Alberto Pasqualini.
Já atuando modernamente no tema dos bens públicos ambientais, participou decisivamente da criação dos comitês de bacias hidrográficas e a Lei das Águas estadual, na criação da Lei dos Resíduos Sólidos estadual e no próprio Código Estadual do Meio Ambiente, atuando nas comissões da Assembleia Legislativa, praticando a issue driven science, ciência e tecnologia aplicada às questões ambientais e sociais.
A verdadeira função da Cientec no Estado sempre foi focada pelo uso de sua inteligência concentrada nas mais importantes questões gaúchas que podem perfeitamente ser observadas, do  ponto de vista econômico, como ativos intangíveis. Este aspecto fundamental de sua atuação está ligado às tecnologias de uso energético da imensa jazida de carvão mineral gaúcha e de suas decorrentes cinzas, a tecnologia inovadora do arroz parboilizado, a prova da inexistência da periculosidade no carvão vegetal produzido no RS e a tecnologia de restauro do patrimônio arquitetônico, incluindo o próprio Palácio Farroupilha. Estes verdadeiros ativos intangíveis, perfazendo milhões de reais nas cadeias produtivas gaúchas, têm exemplo recentíssimo em 2015, em estudo sobre a falsificação de adubos, com um impacto equivalente a 600 milhões de reais para o Estado.
Para mais além, os pesquisadores da Cientec dão assistência ao Ministério Público e à SEMA-Fepam na área ambiental no RS, melhoram a qualidade dos alimentos e da merenda escolar, exportam tecnologias de  aproveitamento de cinzas de carvão para o Ceará e o Maranhão, contribuem de forma notável para a questão estratégica da tecnologia de eletrônica embarcada, e dão consultorias internacionais na Índia e nos Emirados Árabes sobre inspeção e auditorias em tubos de ferro.
Desta forma, desconhecer o imenso patrimônio tecnológico acumulado na forma de laboratórios especiais e equipamentos e o inestimável patrimônio imaterial contido nos seus pesquisadores, mostra que a tentativa de destruir nossa Cientec é um atestado cabal de absoluto desconhecimento do próprio Estado e verdadeiro atentado contra a sustentabilidade tecnológica, estratégica e informacional do futuro do Estado do Rio Grande do Sul.
* Geólogo, doutor em Ciências Ambientais, pesquisador da Fundação de Ciênia e Tecnologia (Cientec)