Lourenço Cazarré
Leitor entusiasmado dos historiadores que narraram as incontáveis guerras, revoluções, revoltas, insurreições, quarteladas e rebeliões que sacudiram o Cone Sul entre os séculos 18 e 19, o jornalista gaúcho José Antônio Severo devorou também as negligenciadas obras publicadas em pequenas editoras por autores de final de semana. Para conferir, visitou os locais que foram palco das maiores batalhas travadas naquele período. E juntou a tudo isso conversas que, quando menino, escutava de seus ancestrais, participantes desses entreveros. Para amarrar o pacote, inventou um fio literário – a vida de um dos maiores militares brasileiros, o general Manuel Luís Osório, o marquês do Herval.
Com uma carreira jornalística de mais de meio século, vivida em algumas das principais redações do país, José Antônio Severo escreveu em cerca de 10 meses 100 anos de guerra no continente americano, obra de dimensões pampianas, com um total de 1.089 páginas, que foi dividida em dois volumes pela editora Record: Rios de Sangue (1) e Cinzas do Sul (2).
Talvez se possa dizer que o grande mérito deste livro, além, claro, de sistematizar toda uma vasta e dispersa bibliografia, é a presença de um jornalista em uma seara quase sempre restrita a excessivamente contidos, ou por vezes derramados, historiadores. Com um texto ágil, claro e direto, despido dos conhecidos rococós retóricos característicos da América latina, Severo esboça diante de seus leitores um quadro amplo e detalhado das lutas que acabaram por moldar quatro dos países do extremo sul da América Latina.
Repórter acima de tudo, o autor comparece com um grande número de informações pouco ventiladas que surpreendem até mesmo ratos de biblioteca razoavelmente versados nesse tipo de literatura. Severo entremeia sua narrativa com causos miúdos que, na linguagem simplificadora das redações, seriam chamados de “historinhas”. Assim, na leitura, nos defrontamos com centenas de historinhas curiosas, surpreendentes, esclarecedoras e por vezes verdadeiramente significativas.
As ações guerreiras começam em 1.777 quando o recém nomeado primeiro vice-rei do Prata, Pedro de Ceballos, a caminho de Buenos Aires, ataca à atual ilha de Santa Catarina para tomar posse de uma terra que julgava pertencer à Espanha. Ao retratar essa luta remota, Severo demonstra uma de suas principais virtudes que é a de descrever com minúcia e abrangência escaramuças e batalhas. Surgem então pontos conhecidos hoje dos muitos turistas que visitam a badalada Florianópolis: Santo Antônio de Lisboa, ilha de Anhatomirim, Jurerê, Canasvieiras e São José da Terra Firme.
Já naquela época, antecipando a quebradeira em que a nação vive hoje, a defesa da cidade estava à míngua: “por falta de verba, apenas dez dos 40 canhões estavam em condições”. O pânico espalhou-se pela ilha e as pessoas fugiram para o continente levando o que podiam. Os que não lograram escapar sofreram na mão dos invasores. “Os homens foram separados e encerrados, depois obrigados a trabalhar, quando não eram simplesmente mortos… As mulheres foram entregues às tropas. Oficiais e graduados tiveram preferência na escolha, mas a maioria ficou à mercê da soldadesca, na base de dez homens para cada uma. Meninas, mulheres de meia-idade e velhas, não escapou nenhuma”. Os que conseguiram fugir para o continente foram recepcionados pelas flechas e lanças dos índios carijós, cuja ferocidade nada ficava a dever à dos espanhóis.
Anos depois, Pedro Luís Borges esclareceria a seu filho, Manuel Luís Borges, que viria a ser pai do futuro general Osório, que, naquela invasão, ele estivera bem seguro na barriga de sua mãe, porque, como as demais grávidas, ela havia sido protegida pelos padres.
Em 1793, aos 16 anos, Manuel Luis Borges alistou-se como voluntário no Exército português. Em 1796 passou a furriel, posto equivalente ao de sargento. Certo dia, injustamente condenado ao açoite, teve a ousadia de aparar uma pranchada regulamentar que lhe foi desferida por um oficial. Foi preso e, antes de receber a inevitável condenação à morte, fugiu em direção ao Sul. Sua jornada em direção à Província de São Pedro pelo meio do mato acabou fazendo com que desse com o costado em Nossa Senhora da Conceição do Arroio (atual Osório). Ali acabou casando com Anna Joaquina Osório, cujo nome de família adotaria para sua descendência. Anos depois, livre da pecha de desertor, o mané Manuel Luís foi reincorporado ao Exército português
Rios de sangue estende-se até o final da guerra da Cisplatina, que durou de 1825 a 1829, com direito a incontáveis batalhas. O melhor momento do primeiro volume sem dúvida é a descrição dos preparativos para a decisiva batalha de Passo do Rosário/Ituzaingó. Homens excepcionais lideravam os dois lados: as tropas do Império eram comandadas por Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira Horta, o Marquês de Barbacena, e os argentinos e uruguaios eram chefiados por Carlos Maria de Alvear.
“É impressionante a simetria entre os dois generais”, escreve Severo. Ambos nascidos na América, filhos de nobres, cursaram academias militares da metrópole. Felisberto Brant nascera em Mariana (MG); Alvear era de Santo Angel, atual Santo Ângelo (RS).
A Batalha do Passo do Rosário, vencida por Alvear, pois Barbacena abandonou o terreno, mesmo ainda tendo possibilidade de lutar, determinou a criação do Uruguai, nação-tampão entre dois gigantes brigões. Uma das curiosidades da Guerra da Cisplatina é que dom Pedro I chegou a viajar ao Rio Grande do Sul para comandar as tropas do Império, mas mal botou o pé por lá recebeu a notícia do falecimento de sua esposa, Leopoldina, e teve que retornar ao Rio de Janeiro.
Em Cinzas do Sul temos relatos esclarecedores sobre a demorada Guerra dos Farrapos e a devastadora Guerra do Paraguai. Entre elas, a Guerra do Prata que levou à derrota de Manuel Oribe, caudilho uruguaio, e à deposição de Juan Manuel Rosas, ditador em Buenos Aires por 17 anos.
Todos esses conflitos sangrentos foram causados por divergências incessantes, às vezes ridículas, entre os grupos políticos que tentavam tomar o poder nas nações em formação. Severo assim resume essa pendenga: “Ideologicamente, a linha de identidade entre os países do Prata, descontadas as lutas internas entre os caudilhos que disputavam o poder, corria em linha reta: unitários argentinos/blancos uruguaios/liberais moderados do Rio Grande do Sul de um lado e do outro federales argentinos/colorados uruguaios e liberais exaltados rio-grandenses”. Os primeiros eram republicanos que aceitavam uma monarquia apartidária e a escravidão. O outro agrupamento defendia a abolição e a criação de um estado unitário integrado por províncias autônomas.
O jornalista gaúcho apresenta um número incrível de informações em geral desprezadas pelos praticantes da historiografia ortodoxa: fala da introdução da alfafa em uma terra onde os pangarés só comiam grama rala; das carretas de bois que necessitavam de doze juntas para arrastar 80 arrobas; que o custo de um escravo era cinco vezes maior do que o de um imigrante europeu; conta que os caudilhos argentinos Rosas e Urquiza eram os dois homens mais ricos daquele país; que cada soldado de cavalaria arrastava consigo três rocins mal nutridos; que os fortíssimos cavalos de batalha, ferrados e alimentados a milho, só eram usados nas cargas; que os cavaleiros minuanos e charruas levavam um homem na garupa para lançá-lo dentro da linha de defesa dos brancos; descreve a tomada de Porto Alegre pelos guerreiros farroupilhas e de como eles a perderam depois de um porre geral e homérico; informa que dom Pedro II já era a favor da abolição em 1845 e que lamentava que ela não fosse aprovada no Parlamento por oposição das bancadas de Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo; esmiúça a profunda ligação de Caxias com o Rio Grande do Sul por 20 anos (foi governador e senador pelo Estado); informa que para viajar a Mato Grosso a rota mais cômoda era a marítimo-fluvial, passando por Montevidéu e seguindo por rios interiores; que o Paraguai antes da guerra não tinha moeda, mas havia implantado a primeira linha da América do Sul; que Solano Lopez em sua fuga final conduzia sua mãe e sua irmã, prisioneiras, em uma jaula; que o espião do Paraguai em Montevidéu era o embaixador português; e lamenta os imensos prejuízos trazidos por esses conflitos sempre acompanhados de saques e violações.
Falando de Osório, o lendário general, Severo relata que nas grandes cidades por onde ele passava o povo costumava desatrelar os cavalos da carroça em que viajava a fim de rebocar pelas ruas, com a força dos braços, o herói da Guerra do Paraguai.
Por fim, ficamos sabendo que a Argentina – sacrificada por incontáveis carnificinas, só unificada mais de 60 anos após a libertação da Espanha – conseguiu, após o fim dos conflitos, atrair o excedente de mão de obra de uma Europa tomada pela industrialização para transformar-se, já na virada para o século 20, na quarta nação mais rica do mundo.