raul ellwanger
Salvador Allende foi eleito presidente do Chile em 4 de setembro de 1970, com um programa democrático com duas características marcantes: intensa política de promoção social e nacionalização de setores estratégicos da economia, especialmente a exploração do cobre.
Cercado de uma festa popular com mais de um milhão de pessoas reunidas em Santiago, num grande fervor cívico, tomou posse em 3 de novembro do mesmo ano, atraindo também forte apoio internacional, desde os governos democráticos até imensas franjas de simpatia da academia, dos sindicatos, da gente do povo.
Junto a centenas de exilados latino-americanos, tive a felicidade de viver esse momento.
Na semana anterior à posse, o proprietário do jornal El Mercurio passou a residir em Washington, com acesso liberado ao Salão Oval da Casa Branca, de onde coordenou a oposição legal e ilegal, e regressou somente após a derrubada do presidente constitucional do Chile.
Num primeiro período, a aplicação das 33 Medidas do programa da Unidade Popular ( que incluía desde meio litro de leite diário para cada criança, até a aceleração da reforma agrária), trouxe crescimento do apoio popular ao governo, refletindo-se nas eleições parciais de março de 1973.
As debilidades próprias da economia chilena, os erros da equipe de governo, a feroz ofensiva da mídia anti-UP, o cerco internacional, a sabotagem interna (manifesta numa quilométrica e não motivada “greve” de caminhoneiros), entretanto, já vinham minando esse apoio a as possibilidades de reanimar os investimentos e a economia em geral.
Já no outono de 1973 a abortada tentativa de golpe de estado conhecida como Tancazo revelou a decisão das castas dominantes de abandonar a via constitucional e passar às vias da violência para derrocar Allende.
Com articulações preservadas dentro das estruturas armadas, conseguiram colocar como ministro da Defesa o Gal. Augusto Pinochet, articulador profundamente oculto da traição a quem o nomeara.
As águas geladas do Rio Mapocho se tingiram do rubro sangue de mulheres e homens, ativistas e gentes do povo, espalhando sem distinção o terror por todo o território.
Chegou a brutalidade até mesmo ao exterior, com atentados cruentos ou letais nos EEUU, na Argentina e na Italia.
Passada a primeira fase de razia exterminadora, que aniquilou entre 4 a 7 mil pessoas, pode o regime conseguir certa estabilidade. Mais de uma centena de brasileiros padeceu as torturas em campos de concentração, enquanto são 8 nossas vítimas fatais no Chile.
No âmbito econômico, aplicou as receitas de “império do mercado” pregadas pelos operadores de Chicago, traduzidas em estatísticas otimistas que ocultavam a feroz apropriação da riqueza por uma pequeníssima minoria.
No âmbito institucional, emplacou uma viciosa Constituição, tisnada pelo nome do próprio ditador. No âmbito dos Direitos à Memória, Verdade e Justiça, conseguiu também um longo período de impunidade para os criminosos de lesa-humanidade, embora certas frestas jurídicas tenham permitido posteriormente condenar algumas dezenas de operadores.
Na atual insubordinação de multidões populares no Chile, na primavera de 2019, há um fundo brutal de injustiça social, de miséria econômica, de preconceitos raciais, de ensino privatizado, de sistema previdenciário público inexistente, de falta de perspectiva e futuro.
Quero ressaltar dois outros fatores:
Primeiro, a sobrevivência da Constituição pinochetista, que justamente organiza, consagra e defende a extensa gama de privilégios de classe. Isto significa mais de 40 anos de padecimentos da maioria da população.
Segundo, a permanência das castas militares sucessivas e coordenadas, amestradas ano após ano na doutrina de ódio e violência estimulada contra a população. Estas castas, cevadas na impunidade, se mantém enraizadas nas casernas, com os fuzis engatilhados e as mentes doutrinadas.
Após as primeiras manifestações de outubro, o Presidente Piñera deu uma declaração espantosa: que havia uma conspiração organizada para promover uma guerra interna para derrubar o governo.
Tais palavras lembram os ditadores dos anos 70 invocando uma “teoria do inimigo interno”, enjambrada em Washington para permitir o holocausto de mais de 60 mil latino-americanos, adotada por todos os generais joõezinhos do passo certo.
As palavras de Piñera não foram sem efeito: no dia seguinte, vimos as espantosas imagens de soldados disparando armas largas na linha da cabeça dos manifestantes, disparos que buscavam claramente assassinar. O resultado são cerca de 20 mortos no Chile. Estavam combatendo e matando o “inimigo interno”!
Ante o clamor internacional, Piñera mudou seu discurso, e os fuzis passaram a atirar somente na altura das pernas. Pelo menos, a letalidade recuou. Espero que este recuo indique uma rota diferente de governo, com a depuração dos aparelhos repressivos e o chamado a um nova Constituinte.
A experiência mostrou que juntar-se aos delinquentes (nomeação de Pinochet), tolerar os criminosos dentro do aparelho estatal (impunidade), manter a Constituição do totalitarismo (instancias parlamentares), estimular o crime desde o mais alto posto nacional (Piñera), são as piores receitas. Podemos aprender algo para nosso futuro?
2 comentários em “Chile 49 anos: tudo mudou, nada mudou”
Deixe um comentário
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.
Raul Ellwanger, doidinho para a volta do comunismo ao Chile e torcendo para Brasil e outros países da América do Sul aderirem à ideologia canhotinha. Quem gosta de ditadura esquerdista, aplaude. Quem gosta de democracia, cospe no texto acima.
A turbulência no Chile satisfaz velhos marxistas que, sempre procurando a próxima revolução, depositam suas esperanças em Santiago. A mídia esquerdista, por sua vez, alimenta o clima revolucionário ao enquadrar a história como uma revolta dos pobres contra o neoliberalismo — incluindo o Estado de Direito e a economia de livre mercado — e a desigualdade. Mas as imagens das manifestações e relatos de testemunhas sugerem uma realidade diferente. O Chile, sem dúvida, enfrenta a pobreza e um legado
histórico manchado pelo racismo, mas menos do que outros países da América do Sul. De fato, nos últimos 30 anos, a pobreza do Chile diminuiu, graças ao desenvolvimento econômico — e ao neoliberalismo.
A pobreza no Chile perdura por causa do medíocre sistema de educação pública do país. Nem as administrações socialistas desde a partida de Augusto Pinochet nem os dois governos de livre mercado melhoraram as escolas públicas, principalmente por causa de poderosos sindicatos de esquerda. Uma abordagem neoliberal, que privatizou as escolas primárias, poderia ter melhores resultados, mas os sindicatos prevaleceram em sua resistência. O sucesso deles garantiu que os pobres continuassem sem
instrução e empobrecidos. Hoje, os pobres se preocupam com a sobrevivência — não com manifestações nas ruas de Santiago.
Os manifestantes são grupos revolucionários cujos métodos de guerrilha urbana são bastante familiares; eles ganham recrutas, por exemplo, atraindo refugiados desesperados do Equador e da Venezuela. É previsível que esses imigrantes, muitas vezes ilegais sem recursos, tenham aproveitado a oportunidade para saquear. O presidente do Chile, Sebastián Piñera, chamou o exército para conter essa ofensiva de guerrilha. Em resposta, os revolucionários chilenos estão comparando Piñera com Pinochet, esquecendo que o presidente — um verdadeiro liberal de livre mercado — se opôs ao governo do falecido ditador. Enquanto a direita chilena esqueceu Pinochet, certos esquerdistas mantêm sua nostalgia por Salvador Allende e sua fracassada revolução socialista da década de 1970. No Chile, como em outros lugares, o marxismo nunca morre. A classe média do Chile, em vez de resistir aos esquerdistas, se juntou à revolta popular. Por que essa classe, que não existia uma geração atrás — emergiu da relativa prosperidade associada ao neoliberalismo e entrou na fase de expectativas crescentes — endossou a revolta? Os chilenos de classe média, que recentemente escaparam da pobreza, querem desfrutar de uma qualidade
de vida comparável à dos países ricos; mas o Chile ainda não atingiu esse padrão. Por enquanto, os chilenos de classe média vivem com incerteza econômica, carecem de poupança e capital e permanecem sensíveis a qualquer desvio em seu padrão de vida. Não é surpresa, portanto, que um pequeno aumento na tarifa de transporte provoque raiva e pânico. Nesse ponto crítico, a esquerda globalizada nos diz que tudo melhoraria se o Estado, e não o setor privado, assumisse o comando. Esse é um raciocínio estranho. O Estado sabe apenas como espalhar a pobreza, exceto entre as elites políticas corruptas, que se enriquecem. Embora o neoliberalismo pretenda criar desenvolvimento compartilhado, é verdade que o compartilhamento nunca é totalmente igualitário — porque uma sociedade totalmente igualitária não é possível. Existe um caminho viável para Piñera abraçar a inovação e fazer do Chile um modelo para a América do Sul. É inegável que a tradição oligárquica, herdada de um passado colonial, persiste no Chile, acentuada pelos lucros obtidos por grandes empreendedores através do acesso aos mercados globais. Esta questão poderia ser corrigida por medidas fiscais e até por incentivo filantrópico. Nos Estados Unidos, os super-ricos são perdoados por seus presentes substanciais a causas sociais, humanitárias e educacionais. Mas o Chile não tem equivalente a Bill Gates. Também é possível, como Piñera sugeriu, criar uma renda mínima — ou um imposto de renda negativo, como Milton Friedman
propôs uma vez — o que garantiria que os chilenos não ficariam abaixo de um certo nível de pobreza. Finalmente, é imperativo fornecer educação a todos os chilenos a partir dos três anos, seja em um sistema público ou privado, pois a pobreza geracional é determinada na primeira infância. A plataforma esquerdista — particularmente a nacionalização de empresas, seguros, aposentadoria e universidades — apenas interromperia o desenvolvimento do Chile. O Chile precisa de mais empreendedores, não de manifestantes. Ao longo de três décadas, esses empreendedores gradualmente acabaram, embora não completamente, com a dependência do país da mineração de cobre. Nos dias de Pinochet, o cobre representava a totalidade das exportações do Chile; hoje é metade. Essa dependência ainda pesada
de uma exportação primária explica as dificuldades financeiras do estado, pois os preços do cobre atualmente estão baixos.
O destino dos governos sul-americanos é muitas vezes decidido pelo preço das matérias-primas — cobre no Chile, soja na Argentina e Brasil, petróleo no Equador e Venezuela. Os marxistas deveriam saber disso, mas esse determinismo materialista os obrigaria a reconhecer que apenas o neoliberalismo torna possível escapar a um destino determinado pelas exportações de mercadorias. O próprio Marx, em sua época, entendeu isso e celebrou a função criativa da burguesia capitalista. É claro que os marxistas chilenos nunca leram Marx. Talvez devessem.
Guy Sorman