24 de agosto de 1954
A aula mal havia iniciado, a professora foi chamada à sala da diretora e voltou chorando. Não haveria aula naquele dia, todos pra casa.
No corredor ouvi: “Getúlio se matou”. “Mataram ele, com certeza”, disse uma velha professora.
Em casa, encontrei minha mãe na cozinha, chorando. Me abraçou, soluçava: “Morreu o pai da gente”.
Getúlio Vargas era o ‘pai dos pobres’ e a comoção que tomou conta do pobrerio naquele subúrbio de Santana do Livramento foi como se de fato tivessem perdido o pai.
Homens choravam nos botecos, indignação gritada nas ruas, alguns saiam para juntar-se aos grupos que se formavam na estação ferroviária, dispostos a embarcar para o Rio de Janeiro.
A Rádio Cultura intercalava “músicas fúnebres” com as notícias do quebra-quebra em Porto Alegre, da multidão que tomava conta das ruas do Rio de Janeiro. Parecia que o mundo vinha abaixo.
(Nas aulas de música que tive com Enio Squeff descobri que aquela melodia que soava aterradora entre as notícias era o réquiem que Johannes Brahms compôs quando morreu sua mãe).
No fim o terremoto popular que parecia brotar do fundo da terra dissipou-se e o que Getúlio conseguiu à custa da própria vida foi protelar o golpe por dez anos.
Brizola com a Legalidade, em 1961, foi o último bastião da resistência getulista, que seria aniquilada com o golpe 1964.
Um golpe contra um projeto nacionalista populista, de conciliação e inclusão social que, na ótica da guerra fria, estava abrindo caminho para o comunismo.
Seria uma intervenção transitória dos militares para extirpar a corrupção, conjurar a ameaça comunista e, em seguida, restabelecer o poder pelo voto.
Resultou num regime militar que durou 21 anos, sem encontrar o rumo certo.
Foi derrubado não só pela política dos porões que adotou, mas principalmente pelo modelo econômico de viés getulista que o general Ernesto Geisel tentou implantar.
“Deus não me traria de tão longe para ser o síndico da catástrofe”, disse José Sarney ao assumir a Presidência da República como o primeiro civil, desde o golpe de 64.
Sarney era da “ala jovem” da UDN, o partido que comandou a derrubada de Vargas, quando os militares tomaram o poder. Foi aliado do regime desde o primeiro instante.
Pode-se dizer que aí, em 1985, quando Sarney se tornou presidente pelo voto indireto (e não quando os milicos derrubaram Jango) se deu a derrota definitiva de Getúlio Vargas.
Na primeira eleição direta, em 1989, Fernando Collor, também da vertente udenista/arenista, sucedeu Sarney, derrotando Lula e Brizola, dois herdeiros da herança trabalhista de Vargas, que se dividiram.
Era mais uma pá de terra em cima daquele cadáver.
Para completar, o sucessor de Collor, Fernando Henrique Cardoso, assumiu declarando que seu propósito era “sepultar a era Vargas”, negando suas raízes social-nacionalistas. (Seu pai defendeu “O Petróleo é Nosso”).
Mas eis que de repente, quando parecia coberta por várias camadas de terra, a utopia de Vargas renasceu com a eleição de Lula em 2002.
E, por década e meia, pareceu que a nação havia se reencontrado com o seu velho projeto nacional desenvolvimentista, de conciliação de classes e inclusão social.
O que veio depois de 2015 está na memória de todos. Mas parece que a hidra tem sete cabeças e aí está Lula, liderando todas as pesquisas, com a bandeira do projeto nacional desenvolvimentista, de conciliação e inclusão social.
A difusa utopia pela qual Vargas deu um tiro no peito em 24 de agosto de 1954.