RAUL ELLWANGER
Uma jovem brasileira foi estuprada por mais de duas dezenas de homens cidadãos, em maio de 2016. Foi vitima de tortura, mais especificamente, de tortura sexual.
O deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) foi condenado por ofender a colega gaúcha Maria do Rosário (PT) no plenário da Câmara em 2014:
— Há poucos dias você me chamou de estuprador e eu falei que não ia estuprar você porque você não merece — disse o deputado durante uma sessão.
Em que consiste a ofensa ? Na ameaça de estupro ? No livre arbitro do deputado em estuprar ou não ?
Tortura consiste em submeter outrem a dor violenta, com objeto de extrair confissão ou informação, ou sem este objeto. A tortura policial ou política tem uma finalidade, é funcional, seu objetivo é destruir o outro.
A tortura sem finalidade aponta apenas para a doença mental do seviciador. A que serve este tormento ? Para o gozo do perpetrador ? Há prazer em fazer sofrer ?
Estupro é submeter outrem pela força à perda do domínio e da privacidade de seu corpo, através de relações de tipo sexual, sejam genitais ou não.
É de sua natureza orgânica um brutal constrangimento moral, dada a auto-estima que toda pessoa tem, convicções religiosas, associação com maternidade, conceitos de hombridade, tradição cultural.
Qual o objeto do estupro?
A repressão policial e politica com frequência combina tortura com violência sexual, assim se fala em tortura sexual. Por experiência, o repressor sabe que a força de ‘demolição’ do tormento material e moral sobre o torturado se incrementa quando tem conotação sexual.
Isto é denotado pelas ofensas verbais, carregadas de sexismo supostamente ofensivo, assim como pela minucia com que se devassa e mortifica cada parte do corpo vitimado.
O mesmo deputado em reiteradas ocasiões tem feito o elogio de torturadores do regime militar, assim definidos oficialmente pelo Estado Brasileiro no Relatório da Comissão Nacional da Verdade de 2014.
Na prática da vida real, o mais importante na situação atual é a impunidade de cerca de 400 criminosos listados, tendo à frente generais e ditadores.
Quando dezenas de homens violam uma moça, estão praticando tortura e tortura sexual. Não buscam informações ou destruição de um ‘inimigo’ (o subversivo, o ladrão), pois o martírio que realizam não tem objetivo.
Tampouco se pode supor a fruição de prazer e deleite. Estaremos diante de enfermos, de psicopatas ? Fizeram o que fizeram por pura diversão ?
Ligando a fala do parlamentar com a violação múltipla, temos que o elogio atual do torturador do passado estimula a violência do estuprador do presente. A fala daquele torna natural, comum, banal e aceitável a violação.
Quando o falador diz que depende dele torturar sexualmente a deputada ou não faze-lo, está dizendo que a tortura é corriqueira, vulgar, que ele opta por ela ou não segundo seu critério.
Ademais, fala disso aos gritos em pleno Congresso Nacional. Os homens que arrasaram a jovem seguem a mesma lógica, de praticar a violência sem respeitar a outra pessoa nem as barreiras morais e legais criadas pela sociedade.
Para tais criminosos, vale apenas seu arbítrio, a imposição da força bruta sobre uma mulher indefesa, como fizeram os Ustra, Fleury, Malhães, Seelig, Cerqueira, Curió, Correia Lima, Audir, Dulele e demais ícones de Bolsonaro sobre cidadãs e cidadãos sequestrados nos DOI-CODI.
No terreno da moral, da lei e da política, o nostálgico Bolsonaro estimula e é cúmplice da violação atual.
Na falta de ‘subversivos’, dispara sua baixeza contra a colega parlamentar e mulher. Imaginemos o que faria contra uma jovem simples do povo, não parlamentar. Imaginemos o que faria contra uma raptada oculta de 1971, na penumbra e solidão de um quartel remoto.
Há algo comum entre os violadores de hoje, o deputado militar e os torturadores de 1964: a idéia da banalidade. Esses rapazes acreditam que se com aqueles grandes criminosos seriais nada acontece, se até mesmo um parlamentar diz que torturar é banal e vulgar, então estuprar uma mulher é fato corrente e comum.
Como nem os agentes de 1964 nem o parlamentar são punidos, se divulga a idéia de que nada acontecerá, que ficarão impunes seus crimes como milhares de outros seguem sem punição desde mais de 50 anos.
Se os atormentadores da ditadura tinham um motivo ou pretexto para torturar e violar sequestradas e sequestrados, os estupradores de hoje não dispõem (segundo as noticias atuais) de alguma justificativa ou explicação para seu ato. Nem motivo passional, nem vingança, nem roubo, nem acerto de contas, nem disputa de território. Nem podemos supor perguntados pelo motivo de tão hediondo crime, dirão que o praticaram… qualquer ressaibo de prazer. Entre a impunidade e a banalidade, porque sim.
Um comentário em “Estupros: desde 1964, na linha reta do tempo”
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Excelente texto, Raul! Seguimos juntos na luta, que é a única coisa que muda a vida para melhor. E nos dá sentido em viver…. apesar dos bolsonaros e outros horrores.