GERALDO HASSE: Esse tal de Severo

A morte de José Antônio Severo foi um choque porque, embora beirasse os oitenta anos, ele sempre exibiu confiança e dinamismo, e não dava mostras de esmorecer em seu ânimo de viver.

Ninguém esperava que ele partisse tão cedo. Entre muitos amigos e colegas, seu próprio nome soava como uma fortaleza inexpugnável.

Basta lembrar o que talvez tenha sido seu último bilhete, duas ou três linhas escritas no início de sua última tarde (23 de setembro), quando ele pediu desculpas por não poder participar da live semanal da Coonline, coordenada por seu tocaio José Antonio Vieira da Cunha – todas as quintas na hora do Angelus: “Tenho uma consulta médica”, justificou, escamoteando o verdadeiro motivo de sua ausência: estava indo para uma cirurgia pulmonar programada para contornar sequelas da covid-19 contraída no primeiro semestre de 2021. Morreu sedado, mas na plenitude de suas faculdades mentais.

É o caso de indagar onde foi parar sua inquietação de repórter; sua disposição de viver; seu gosto pela conversação.  Ele foi jornalista a vida toda — um jornalista autodidata que fez da leitura, da pesquisa e da reportagem suas ferramentas de trabalho num ofício para o qual, alguns anos depois, se exigiria formação em curso superior de comunicação social. A partir dos 18 anos, começando como repórter agrícola, saltou de uma redação a outra, aceitando convites que lhe pareceram bons desafios profissionais.

Assim chegou a cargos de chefia em grandes veículos da mídia. Se alguma vez quebrou a cara em suas mudanças de trabalho, não dava a mão à palmatória, tampouco dava tempo para mágoas ou rancores. Sempre em movimento, cultivou amigos na imprensa nanica, mas nunca chegou a vestir a camisa de um daqueles jornais que desafiaram a ditadura militar.

Ele já tinha dez anos de janela quando o conheci na redação da Veja, de onde ele estava saindo (após trabalhar na revista Realidade) para ajudar na construção da revista Exame, que nasceu como mensal de economia e negócios da Editora Abril, a mais poderosa empresa editorial brasileira, ao lado do Estadão e de O Globo. Isso foi em 1972, quando Severo já buscava o viés histórico das coisas. Na nova revista, coube a ele editor um encarte sobre a gênese de grandes empresas que brilhavam na Bolsa de Valores: Antarctica, Brahma, Gerdau, Metal Leve etc. Todo mês, a revista publicava na capa um retrato a óleo (do personagem central da matéria histórica) pintado por Jaime Figuerola, artista plástico. A tela original, emoldurada, era dada de presente ao empresário focalizado. Quem levava o quadro à fonte? Ora quem. Isso, até mudar de emprego.

Com ele não tinha conversa fiada. Não é que levasse tudo a sério. Possuía um invejável senso de humor. Contava causos dando risada. Mas não era de falar abobrinhas. Lia muito, costurava as informações colhidas em diversas fontes e chegava a conclusões esclarecedoras, que gostava de passar aos amigos e compartilhar com os leitores. Seus textos ricos em informações não vinham com floreios e metáforas. Seu estilo era direto. Por isso ele era fonte de consulta para os colegas. Se não tinha a informação, sabia quem tinha. Era muito bem relacionado nos meios oficiais. Não tenho na memória todos os lances de sua carreira, mas algumas vezes me surpreendi com sua capacidade de se manter em boas posições.

De repente, estava trabalhando na Copesul com o ex-ministro Cirne Lima, que lhe propiciou recursos para uma profícua gestão na área cultural. Basta lembrar as obras literárias e históricas publicadas na década de 1990 e na primeira década do século XXI. Poderia ter sido um trabalho de prestígio e boa remuneração para o resto da vida, mas o instinto de sobrevivência o levou para longe de Triunfo no momento em que a Braskem comprou a central petroquímica rio-grandense.

Por conhecer diplomatas, militares, fazendeiros, deputados, advogados, cronistas, poetas e músicos, ele sempre transitou com facilidade pelas fronteiras que supostamente devem separar o jornalismo, a vida empresarial e as atividades no âmbito do governo. Tudo isso sem renunciar ao estilo que se tornou sua marca. Na Gazeta Mercantil foi um diretor itinerante que levava recados da direção às bases e vice-versa. Nesse aspecto, ele era um jornalista que fazia política de bastidores, conversando, sondando, captando o clima das sucursais e dando munição para mudanças e saídas.

Quando eu pesquisava a história da mecanização agrícola do Brasil, na década de 90, consultei-o sobre o que havia acontecido na sua região natal, entre Caçapava e Bagé, nos anos 1950. Ele sabia por ser filho de fazendeiro (Alberto Severo, diretor da Farsul nos anos 60) e por ter estudado na Escola Técnica Agrícola de Viamão. Poderia ter dito que não se lembrava de nada, era muito guri… Na realidade, tinha vivenciado o desenrolar, no próprio quintal, da política de incentivo à autossuficiência da produção de trigo, com financiamento do Banco do Brasil. O trigo cultivado no inverno e colhido no final da primavera abriu caminho para a implantação da lavoura de soja. Resumo da história: a mãe dele, Dona Corina, fez parte de um grupo de mulheres que havia se esforçado para difundir o leite de soja entre a juventude rural de Caçapava do Sul (quem comandou a campanha da soja no Estado de São Paulo, nos anos 50, com apoio do governador Janio Quadros, foi o agrônomo José Gomes da Silva, que ganhou por isso o apelido de Zé Sojinha; seu filho José Graziano da Silva, também agrônomo, criou o programa Fome Zero e foi por oito anos diretor da FAO, de onde voltou há um ano; por aí se vê que a soja tem boas raízes no RS e no Brasil).

Daquela conversa com a “fonte Severo”, veio à luz um outro lado até então desconhecido da história do nosso amigo jornalista: a mãe dele, quando solteira, veio estudar em Porto Alegre e morou por quatro anos a partir de 1928 na casa de Antonio Augusto Borges de Medeiros (1863-1961), o próprio ex-presidente da província, tudo isso graças às velhas amizades familiares caçapavanas. Eis outra conclusão que pode parecer ousada mas é plausível: filho de um casamento de maragato com chimanga, Severo aprendeu em casa os ritos da conciliação que forjaram seu modus operandi equilibrado como cidadão e jornalista.

Embora trabalhasse em prol da harmonia, ele admirava os usuários das forças militares. Era admirador da Brigada Militar, cultivava a leitura dos microhistoriadores municipais, especializados na narrativa de batalhas localizadas em pequenos redutos do território gaúcho. De tanto ler acabou se tornando apto a escrever Os Senhores da Guerra, Rios de Sangue, Cinzas do Sul e as 1 mil páginas biografia do General Osório, livros que lhe deram a chance de repassar a história das guerras e revoluções do Sul. Dando ênfase às batalhas e a detalhes como os armamentos e as táticas militares, ele se pôs num patamar raro – um tanto ensaísta, bastante historiador, meio romancista.

Com essa capacidade de trabalho, fazendo pontes onde quer que se encontrasse, criava oportunidades onde aparentemente não havia chance de plantio nem de colheita. A mim ele sempre surpreendeu por sua mobilidade. Num momento estava morando em Santiago a serviço da agência Prensa Latina. De repente me aparecia na TV Globo como editor-chefe e comentarista do Jornal da Globo, às tantas horas da noite. Depois se mudou para a TV Bandeirantes. No ano passado me disse que estava procurando um copywriter para um livro de Aldo Rebelo (editado pelo JÁ).

A última surpresa foi saber que mesmo baleado pela covid-19 vinha trabalhando num futuro seriado da TV Cultura de São Paulo sobre os 200 anos da independência do Brasil, a se comemorar em 2022. Foi seu derradeiro trabalho, justamente na TV, onde ele juntou tudo o que sabia e tinha vivido como repórter, pesquisador, historiador e produtor de cinema – aqui, uma de suas experiências mais gratificantes, ao lado do multimídia Tabajara Ruas.

Um repórter-historiador gaúcho trabalhando na TV estatal paulista, eis uma proeza de Jantonio Severo. Como ele chegou lá? Costurando histórias, claro. Há alguns anos, ele escreveu artigos de jornal em que se mostrou admirador dos bandeirantes, que seriam os verdadeiros inspiradores do moderno espírito empreendedor do empresariado paulista. Ao destacar o lado liberal-empreendedor dos bandeirantes, Severo desdenhou o fato de que os bandeirantes mataram e aprisionaram índios, e destruíram as missões jesuísticas entre os guaranis. Ele se justificou dizendo que esse era o espírito da época e que não era nada razoável julgar fatos do passado remoto com argumentos e pontos de vista modernos. No século XVIII os bandeirantes representavam os interesses lusitanos enquanto os jesuítas eram súditos da Espanha.

CARNE ASSADA

Uma vez, durante uma conversa sobre os malefícios da carne vermelha, ele argumentou que o Dr. Carandiru é quem estava certo ao elogiar a dieta dos homens das cavernas. Ele fechou a discussão com uma declaração de princípios válida não apenas para o âmbito da gastronomia: “Eu sou troglodita”, ele disse. Sim, era mesmo, mas sem grossura. No fundo, era um gentleman, um diplomata, um conciliador. Esse perfil harmônico sempre me intrigou. Ele não metia a boca em ninguém. Nem tragueado passava dos limites da gentileza.

Uma vez, na casa em que morava no Santinho, ele espetou uma picanha e antes de coloca-la sobre o braseiro aplicou-lhe uma grossa camada de sal, de tal forma que a carne ficou esbranquiçada. Estranhei o procedimento, mas ele explicou: “É assim que os gaúchos da campanha salgavam a carne”. Desperdício de sal, pensei, lembrando que o sal era um insumo raro no Sul. Quando o assado ficou pronto, Severo usou a faca para varrer o sal ainda existente em cima da carne. Argumentei que ele não precisaria colocar tanto sal se o jogaria fora ao final. Na realidade, o excesso de sal impedira que a carne fosse queimada.

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