JOSY Z. MATOS/Relatos de uma quarentena – Parte III

De Alicante/Espanha *

Estou em quarentena na Espanha desde o dia 15 de março. Passamos por várias etapas, desde a descrença inicial nas previsões feitas por especialistas da área de epidemiologia que previam um alto índice de contaminação, a ansiedade que vem junto com as incertezas e até o desespero ao ver o número de mortes chegar a quase mil pessoas (961) em um único dia. Mil pessoas por dia na Espanha, um país que tem uma população de pouco mais de 47,1 milhões habitantes (dados Instituto Nacional de Estadísticas – INE, 2019).

Até o dia 24 de abril, dos 114.879 casos encerrados, 92.355 (80%) se recuperaram da doença e 22.524 (22 %) faleceram (dados do Ministério de Saúde da Espanha). Especialistas chamam a atenção para o fato de que as cifras oficiais podem não ser exatas em função da falta de conhecimento do total de pessoas contagiadas e que não apresentaram sintomas, ou que os tiveram muito leves, de maneira a não entrarem nas estatísticas. Na realidade, alguns prognósticos indicam que entre 5 a 6 milhões de pessoas poderiam estar afetadas, o que significaria aproximadamente 15% da população espanhola.

Bom lembrar que entre os contagiados se encontram 34.355 trabalhadores da área da saúde, que estão na linha de frente na luta contra o Covid-19 e mais expostos ao contágio.

A comunidade de Madri, com 60.487 casos e 7.765 mortos é o principal foco da pandemia aqui na Espanha, junto com a Catalunha, que apresenta 44.892 contagiados e 4.393 mortos.

Lembrando que Madrid é a cidade mais densamente povoada da Espanha e recebeu neste último mês de fevereiro aproximadamente 518.261 turistas estrangeiros, ou seja, grande número de pessoas circulando. O que acontece então?

Aqui, é prática comum a cremação dos falecidos. No dia 27 de março faleceram 322 pessoas na cidade de Madri e os noticiários do país informavam que suas funerárias estavam transladando os corpos para outras cidades para acelerar a cremação, pois não davam conta do grande número de falecidos, que totalizava 2.412 até então.

Passaram a receber mais de 300 falecidos por dia, sendo que em períodos fora da epidemia eram 70. Então, para evitar que as famílias tivessem que esperar muitos dias para se despedir de seus familiares, as funerárias decidiram optar por transportá-los a outros centros.

Esse problema também aconteceu na Itália, na cidade de Bérgamo, considerado um dos principais pontos da contaminação na região da Lombardia.

Então, sim, a doença é muito séria, mata muita gente num período muito reduzido de tempo, trazendo vários problemas para os hospitais, todos trabalhando acima da sua capacidade de atendimento, as casas de anciões com altos índices de contaminação e mortos, e funerárias abarrotadas.

O pico da contaminação neste país chegou no dia 02 de abril, com 961 novas mortes, totalizando 112.065 pessoas contaminadas e 10.348 mortos pelo Covid-19. A partir desse dia, e depois do governo ter estabelecido medidas restritivas mais severas, proibindo totalmente que se saísse às ruas para qualquer coisa que não fosse supermercado e farmácias, começamos a perceber algumas mudanças nos dados. Antes, era permitido passear com os cachorros, mas sempre com o controle e fiscalização da polícia. Alguns cidadãos foram pegos saindo várias vezes ao dia com animais, evidentemente quando a polícia conseguia identificar esse tipo de fraude, multava imediatamente.

Permitida compras de produtos apenas de primeira necessidade. Fotos: Josy Matos

No entanto, quando a curva de contaminação começou a cair, percebi as pessoas mais relaxadas, a maioria ainda usando máscaras e luvas, mas já não tão atentas ao distanciamento. Estão confiantes de que a crise sanitária acabe. Mas, parece que a coisa ainda vai longe.

De qualquer maneira, adquiri alguns hábitos que vou mantê-los como lavar toda a comida quando voltar do supermercado. As latinhas de cerveja não escapam do banho antes de irem para a geladeira! Também foi recomendado passar álcool nas embalagens ou lavá-las com água e sabão.

No dia 22 de abril, os noticiários traziam a informação de que Álex Pastor, o prefeito da cidade de Badalona, província de Barcelona, foi preso depois de ter sido interceptado por policiais num controle de confinamento. Segundo informações dos principais jornais do país, o prefeito apresentava sinais de embriaguez e ainda enfrentou os policias, tentando intimidá-los. Resultado? Preso e multado, e suspenso pelo seu partido, o Partit dels Socialistes de Catalunya (PSC), que pediu a ele que renunciasse.

Josy, em isolamento em casa

No Brasil, vejo o presidente do país constantemente furando o isolamento, frequentando lugares públicos, apertando as mãos de todos que vê pela frente e, o mais absurdo de tudo, participando de manifestações públicas contra a quarentena e a favor da volta da ditadura. Como diz meu irmão César, a cada dia mais apavorado com o que vê nas ruas de Curitiba: esse homem não respeita nada, não respeita a vida de ninguém! Pois é!

Aqui, na Europa, estamos na primavera e neste período inicia a colheita de diversos produtos agrícolas, como hortaliças e frutos vermelhos. Até agora, o setor agrícola não parou, sendo uma das atividades permitidas durante a quarentena, mas diminui muito a velocidade das colheitas em função da necessidade de distanciamento entre os trabalhadores. Essa precaução deve ser observada tanto no transporte dos mesmos como nas atividades de campo.

Segundo informações do Ministério de Agricultura, Pesca e Alimentação, a Espanha necessitaria entre 100 mil e 150 mil trabalhadores para a colheita que deveria começar nas próximas semanas. Diversos países da Europa, como Espanha e Alemanha, importam trabalhadores rurais nesse período. Com as fronteiras fechadas e a proibição de deslocamentos dentro do país e entre países, começa o problema.

A região de Murcia, por exemplo, que fica aqui ao lado de Alicante, deve começar a campanha de colheita de damasco, nectarinas e pêssegos e, em seguida, de melões e melancias. Esse trabalho geralmente é realizado por mão de obra local, mas as pessoas estão impossibilitadas de sair por não ter onde deixar os filhos e por medo do contágio.

Outras regiões do país que trabalham basicamente com mão-de-obra estrangeira tiveram grandes dificuldades com o fechamento das fronteiras. Além das colheitas, neste período também inicia a tosa das ovelhas (retirar a lã), atividade que era desenvolvida por profissionais búlgaros, neste momento impedidos de se deslocar. Uma das alternativas propostas é a incorporação de trabalhadores de outras áreas, como a hotelaria, que perderam seus empregos com a crise do coronavírus e que vivem próximo às zonas de colheita.

Alguns dias atrás foi aprovado o plano do governo espanhol com as últimas medidas que preveem a escalada de retorno às atividades. Um dos principais pontos que vinha sendo discutido durante a semana é a autorização da saída de crianças para um passeio diário. A partir deste domingo, dia 26, está permitida a saída de crianças até 14 anos, acompanhados de um adulto responsável com no máximo três crianças. Poderão sair uma vez ao dia e permanecer durante uma hora, com uma distância máxima de um quilômetro da sua residência. Embora esteja permitida a saída inclusive com brinquedos, não poderão frequentar os parques infantis que aqui são bem comuns em várias partes da cidade. Os adolescentes, entre 15 e 18 anos, agora poderão sair para as compras permitidas, ou seja, supermercados e farmácias. Serão seis milhões de crianças que voltam a ocupar as ruas do país, com todas as medidas de segurança recomendadas pelas autoridades.

Desde o último domingo, as crianças podem sair para rua acompanhadas de adultos mas as pracinhas públicas continuam fechadas.

Na tentativa de encontrar soluções que permitam à sociedade voltar às suas rotinas diárias, vários centros de pesquisas estão tentando desenvolver testes, medicamentos e vacinas que ajudem a combater o Covid-19. Nessa luta, a Espanha, que igual a muitos países, também havia diminuído a verba destinada à pesquisa no país, agora está tendo que correr atrás do prejuízo. E, como sempre, os cientistas não se fazem de rogados e rapidamente se puseram a trabalhar para encontrar uma saída.

Esta semana, uma pesquisa do Instituto de Saúde Carlos III sobre a transmissão do Covid_19 na Espanha concluiu que o vírus entrou no país até por quinze vias diferentes e já estava tendo transmissão comunitária perto de 14 de fevereiro, descartando a existência de um paciente zero. Lembramos que apenas no dia 15 de fevereiro apareceram os primeiros infectados no país. A pesquisa, realizada pelos doutores Francisco Díez e María Iglesias, analisou 28 primeiros genomas completos do vírus sequenciado na Espanha e confirma múltiplas entradas de pessoas infectadas pelo vírus, vindas de outros países durante o mês de fevereiro. Os autores também afirmam que o novo vírus tem um grande potencial de transmissão, que se deve principalmente à sua alta capacidade de reprodução. Quando penetra no corpo de uma pessoa, o vírus se reproduz até 100 mil vezes em 24 horas.

Com essa capacidade de multiplicação dá bem para imaginar a facilidade de contágio e a grande quantidade de pessoas que podem ser contagiadas por um único portador do vírus.

Na sexta-feira, dia 24, a Espanha registrava a mais baixa cifra de mortes em um mês, 367 personas perderam a vida pelo coronavírus em um dia. O confinamento foi prorrogado até o dia 09 de maio e se espera um retorno às atividades de forma escalonada.

Enquanto isso, vejo que no Brasil estão abrindo shoppings e, pior, o povo ansioso para passear e fazer compras!

* Josy é bióloga, doutora em Biodiversidade e Conservação Ambiental. Museu de Ciências Naturais/SEMA-RS.

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