GERALDO HASSE/ Lições e riscos da grande enchente de 2024

Foram aparentemente muito bons os encontros do presidente Lula e seus ministros com o governador Eduardo Leite na terça-feira, 2 de maio de
2024, em Santa Maria, e no domingo em Porto Alegre (aqui incluindo o prefeito da capital). O assunto que os unia era a defesa do Estado diante da devastação produzida pelas chuvas e pelo transbordamento
generalizado dos cursos d’água.

Novidade, os dois encontros foram realizados em unidades militares. E quem foi colocado no comando das operações? Não um engenheiro civil ou um geólogo ou um médico, mas um general do Exército. Não um general
genérico, mas o atual vice-chefe do Estado Maior do Exército, general Hertz Pires do Nascimento, nascido em 1963 no Rio de Janeiro. Ora, se estamos sendo atacados – não de surpresa ou inesperadamente – por poderosas forças da Natureza, nada mais lógico do que empregar a logística militar. Afinal, o que está em jogo não é somente a vida das pessoas, mas a integridade dos recursos naturais do território nacional. Resta agora esperar os desdobramentos dessa mudança numa democracia periclitante e historicamente ameaçada pela insubordinação militar.

Entretanto, embora contenha riscos à luz de acontecimentos recentes e antigos, essa nova organização das coisas faz sentido, pois vivemos uma
situação equivalente a um ataque de guerra desfechado, no caso, por elementos tri-perigosos: a chuva em volume suficiente para bagunçar a vida de milhares de pessoas por meio de enchentes destruidoras de cidades, estradas, pontes, postes e lavouras. É certo que não temos aqui
incêndios, vulcões ou terremotos, mas podemos  comparar a situação atual a um tsunami ao contrário. Um tsunami que não veio do oceano, mas das nuvens, das cabeceiras dos rios. Um fenômeno natural turbinado pelo
desprezo humano pelo equilíbrio ambiental. De agora em diante, é preciso ficar em guarda.

E pensar que toda essa desastreira veio ocorrer no estado pioneiro na criação de leis ambientais. Penso em José Lutzenberger, desde 2002 sepultado no perímetro da Fundação Gaia, em Pantano Grande. Me pergunto
o que ele diria dessas enxurradas e de tudo que faz parte do quadro que estamos vivendo. Ele foi comparado a um profeta ecológico. É natural, agora, pensar que as mais recentes catástrofes climáticas no RS sinalizam a necessidade de encarar a emergência não como uma batalha eventual, mas como uma guerra permanente pela restauração do equilíbrio ambiental. Faz sentido, portanto, incumbir as Forças Armadas de coordenar os esforços para tirar a população do sufoco, sem deixar as
coisas ao deus-dará, com milhares de fios desencapados à mercê de ocorrências deletérias. Sou da mesma geração de Lula e logo não estaremos mais aqui, mas eu gostaria que fôssemos lembrados como aquele tipo de pessoa que lutou pelo bem comum e teve coragem de afrontar os poderosos que só pensam em dinheiro. Sim, Lula está tendo a rara oportunidade de enquadrar os malfeitores do meio ambiente. Pode alguém argumentar que ele se
aproveitou do momento para promover um grande lance de fundo eleitoral, mas não dá para duvidar de sua sinceridade ao ouvir o que ele disse ao prefeito de Faxinal do Soturno, no final da reunião de quinta em Santa Maria. Poderia ter deixado passar a queixa do gestor municipal, mas com poucas palavras o confortou e prometeu ajuda.
Estamos focalizando momentaneamente o Rio Grande do Sul, mas o ciclo das emergências climáticas está rolando em todo o planeta. É quase como um ataque alienígena. A tarefa de salvação é gigantesca e não se resume à pós-enchente. Há toda uma correção de rumos a fazer. É preciso identificar os vilões ambientais e processá-los para que não se perpetue esse estado de coisas. Falemos dos especuladores imobiliários urbanos. Dos administradores públicos lenientes. Dos praticantes da agricultura predatória, autora impune de desmatamentos e ocupação de banhados. Os agricultores não agem sozinhos ou isolados. Eles operam segundo uma lógica determinada pela indústria de insumos e máquinas. Seguem um modelo implantado desde o início do século XX, a partir dos EUA e da Europa e que vem incorporando grandes áreas da Ásia, da América e da África. O Brasil é caudatário e refém – prazeroso – dessas perversões
empresariais que incluem as revendas agropecuárias, a aviação agrícola, os bancos liderados pelo BB, os governos em geral e até instituições de pesquisa como a Embrapa. É um sistema poderoso que literalmente tratora os recursos naturais, destrói as matas ciliares, contamina os cursos d’água e os lençóis freáticos. Ninguém está imune às forças da natureza, mas o bom senso indica que é preciso dar um basta ao despautério ecológico. É um direito das novas gerações receber um ambiente limpo.

Por arriscada que seja, a gestão militar das operações de salvamento dá às Forças Armadas um bom motivo para trabalhar pela maioria da população ameaçada pelo “inimigo ambiental”. Que seja bem sucedida e não ceda a
tentações fora da ordem democrática constitucional. Essa situação que se agrava sem remédio deixa claro que está na hora de reformular o conceito de segurança nacional. Não faz sentido manter as Forças Armadas em quartéis à  espera de um improvável ataque militar inimigo. Está tudo sob controle, menos o vetor ambiental.

Estamos cansados de saber que as potências lutam para impor a dominação econômica, mas o verdadeiro inimigo agora é o risco de decomposição do equilíbrio ecológico via distúrbios climáticos, poluição desenfreada e outros problemas, entre os quais se alinham crimes praticados por brasileiros mancomunados com estrangeiros – para citar um caso extremo, o garimpo em reservas indígenas, a mineração na Amazônia e outros crimes ecológicos em todos os biomas nacionais, do Pampa ao Semiárido.