LUIZ-OLYNTO TELLES DA SILVA/Do Caos à Desordem

Luiz-Olyntho Telles da Silva

Uma vez um Dalai-lama disse só haver dois dias no ano em que não se pode fazer nada. Um se chama ontem e o outro amanhã.

Uma premissa retórica para dizer da importância do dia de hoje para crescer, amar, fazer e, principalmente, viver. É assim. Mas temos de lembrar que uma das coisas importantes a fazer no hoje é historiar o ontem e planejar o amanhã.

A grande mensagem desse líder espiritual é destacar a importância destes três momentos, o passado, o presente e o futuro. E o interessante é que essas palavras não são atribuídas nem a Gedum Truppa, nem a Tenzin Gyatso, quer dizer, nem ao primeiro nem ao último Dalai-lama.

A afirmação soa como uma simples emanação da sabedoria oceânica de sua posição, a qual consiste, antes de tudo, em pôr ordem nas coisas.

Pela busca da ordem começa também o Gênese. Primeiro separou o céu da terra, depois a luz das trevas, as águas acima do firmamento das águas abaixo do firmamento, os mares dos continentes e, com todas essas realizações, o Criador estava muito empolgado.

No dia seguinte, fez um pomar, com todas as frutas, e crescia sua empolgação. Mais um dia e fez aparecer as estrelas, o sol e a lua, para iluminar o dia e a noite, sempre contente.

No quinto dia fez os peixes e as aves, e no dia seguinte os animais e o homem, sendo este último – já pleno de júbilo, como uma espécie de assinatura, para garantir sua autoria –, feito à sua imagem e semelhança.

Enfim, estava pronto! E tomou todo o sétimo dia para descansar. O descanso, contudo, não estava na frase do Dalai-lama e minha mãe, muito prática, justificava dizendo que se descansa de uma coisa fazendo outra. Thomas Hobbes, por exemplo, como quem puxa as brasas para sua sardinha, preferia pensar no ócio como sendo a mãe da filosofia.

Seja por isto, ou por aquilo, a questão é que a felicidade do Criador, depois de ter parado para descansar, e pensar, já não foi a mesma, a completude estava perdida. Suas reflexões levaram-no a perceber que algo não estava bem.

Quer dizer, ao olhar para trás, para o que tinha feito no ontem, historiando-se pela primeira vez, pensou que, para o futuro, seria melhor que o homem tivesse uma auxiliar que lhe correspondesse.

É aí que, provavelmente no primeiro flashback da literatura universal, o narrador volta no tempo para dizer como tinham sido feitos os animais e conduzidos ao homem para serem nomeados; mas, como em nenhuma dessas feras encontrou a tal da auxiliar que lhe correspondesse, isto é, aquela com quem, de forma conjunta, pudesse responder às emergências da vida, o Criador fez cair um torpor sobre o homem, que dormiu e, ao sonhar, forneceu um modelo a partir do qual sua companheira foi feita.

Depois de pronta, o Grande Arquiteto, vendo-a pelos olhos de Adão, por certo sorriu, com aquele ar de satisfação, e lá com seus botões pensou: – Este, sem sua história, nunca terá futuro!

Cerca de mil anos depois desse primeiro livro do Pentateuco, o evangelista João, com os recursos críticos de sua época, tendo percebido a criação do mundo como efeito de discurso, como efeito do Fiat, e convencido de ter feito uma descoberta importante, já não teve dúvidas em afirmar que no princípio era o verbo. Foi seu modo de pôr um pouco mais de ordem na narrativa.

Todo o trabalho da cultura, no final das contas, é uma tentativa de colocar ordem no caos cotidiano. Cada vez que um historiador reescreve a história, ele o faz a partir de dados encontrados no seu próprio tempo, na sua contemporaneidade. Quando não há dados disponíveis para saber da história, inventam-se mitos.

Assim que, quando Hesíodo, por exemplo, nos diz que no começo do mundo havia o Caos, precisamos fazer um esforço para lembrar que ele não é um repórter, que ele não é uma testemunha ocular da história: ele não estava lá. Aliás, no decantado começo, não estava ninguém que pudesse vir mussitar esse segredo.

Conheçamos um pouco de Hesíodo. É um poeta que faz poiesis, que cria a partir do que lhe inspiram as Musas helicônias, quer dizer, cria a partir do que está no seu cotidiano.

Vale dizer que no cotidiano de Hesíodo estava o Caos – e também as Musas; necessariamente, tinham que estar porque, se não, como poderia Hesíodo falar deles? E com tal inspiração? E o que era para ele esse Caos?

Posso pensar em algo parecido com a minha mesa de trabalho, no início de cada novo texto, mas por certo não seria apenas algo tão superficial. O que move um poeta precisa passar por suas entranhas, causando-lhe aquela sensação de vazio, de escuro, a partir do qual se pode inventar todo um mundo.

Sabemos que Hesíodo nasceu na antiga Ascra, na Beócia, bem próximo ao golfo de Corinto. Na época de seu nascimento, seus pais haviam mudado recentemente para aí, vindos de Kainé, na Eólia, do outro lado do mar Egeu e por trás da ilha de Lesbos.

Parecia-lhes que nesse lugar estariam melhor e, na verdade, tudo indica que nele tenham prosperado, pois mais tarde o poeta teve muitas disputas com seu irmão Perses, por causa da divisão das terras e dos bens herdados.

Suponho que essa seja uma maneira de dizer que o caos renova-se a cada dia. Na minha mesa de trabalho, pelo menos, é assim. De modo que Hesíodo nasceu aí, junto ao monte Hélicon – onde diz viverem as Musas inspiradoras.

Já velho, conta-se, foi assassinado. Mesmo tendo sido criado em um ambiente agrícola, ele abandonou a agricultura para dedicar-se à poesia, provavelmente devido às disputas com o irmão, julgando que este teria sido beneficiado na divisão das terras.

De certo modo, é como se ele tivesse aprendido com Caim e Abel que, quando um irmão se dedica a alguma coisa, no caso do irmão de Hesíodo à agricultura, o melhor que o outro tem a fazer é dedicar-se a outra atividade.

Caim, a propósito, também estava ocupado com a organização de seu caos; para garantir seu futuro, queria ser amado por Deus e, para isso, em suas oblações, oferecia em sacrifício uma amostra de sua messe. Mas o cheiro que alcançava as narinas de Zeus era de palha queimada, quer dizer, nada aromático, ainda mais, perto do perfume das oferendas de seu irmão, criador de gado. E comparar o odor da palha carbonizada ao aroma da carne assada? Não dá! Nem sempre é fácil organizar nosso caos.

Para Hesíodo, dedicar-se à poesia, honrando os deuses imortais com sua genealogia e ocupando-se da organização do mundo dos mortais, desde sua origem, limitações e deveres, parece ter sido a sua maneira de encontrar seu próprio caminho, seu próprio domínio, buscando assim colocar ordem nos seus sentimentos fraternos transformados em um caos pelas desavenças. Em todo o caso, longe de casa, não consegue começar um poema sem antes invocar as Mousai de sua infância.

É verdade também que dizer Caos, hoje, já não é o mesmo que no século VIII (ou VII) a.C., época em que Hesíodo viveu; se, para ele, o Caos era apenas uma desordem passível de organização, uma desordem capaz de comportar uma organização, organização esta, quem sabe, já compreendida no próprio Caos, a cultura de nossa época, quando se começa a investigar as leis da desordem, e tendo alcançado a segunda lei da termodinâmica, confirma-nos a previsão aristotélica de  que a desordem parece ser o destino de tudo que nasce. Daí a busca da ordem cotidiana ser uma luta que não parece ter fim.

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