O alerta das abelhas

“Estamos pagando uma conta que não é nossa”, desabafou Aldo Machado, presidente da Cooperativa dos Apicultores do Pampa (Coapampa) e coordenador da Câmara Setorial de Abelhas, Produtos e Serviços da Secretaria da Agricultura do Rio Grande do Sul.
Junto com outros convidados, ele havia passado dois dias em um “diálogo participativo” promovido pelo Sindiveg – Sindicato da Indústria de Defensivos Vegetais, entidade que tergiversa sobre a responsabilidade dos agrotóxicos na mortandade de abelhas melíferas no interior gaúcho.
Ao explicar sua queixa-desabafo, Machado chegou a dizer que “o diálogo participativo é um engodo”, uma forma de ganhar tempo enquanto a cadeia de negócios da indústria agroquímica continua promovendo a chuva de agrotóxicos principalmente sobre as lavouras de soja, uma planta que só produz o que dela se espera se lhe forem dadas doses crescentes de “defensivos vegetais”, alguns aplicados sob a forma de coquetéis de drogas fatais para diversos seres vivos.
As vítimas mais imediatas têm sido as abelhas melíferas, um problema nacional que se tornou agudo no Pampa, onde as lavouras de soja vêm ocupando áreas de pastagens e de terras baixas tradicionalmente usadas por arrozeiros.
Embora não esteja estruturada em bases contábeis convencionais, pois é praticada por uma maioria de agricultores familiares que a exercem como fonte complementar de renda, a apicultura possui uma crescente vanguarda profissional voltada principalmente para a exportação de mel.
Se o produto não estiver de acordo com as normas internacionais de sanidade apícola, não embarca no navio ou será devolvido pelos países importadores.
É aí que mora o perigo: um dos melhores méis do mundo, valorizado pela diversidade de fontes apícolas, está ameaçado de ser vetado nos grandes mercados do Hemisfério Norte.
O que tem acontecido no interior gaúcho configura um quadro assustador que se repete toda primavera:
1) ao colher néctar e pólen de flores contaminadas por venenos agrícolas, algumas abelhas se desorientam e não voltam a seus ninhos, morrendo no campo;
2) outras voltam mas morrem do lado de fora das caixas;
3) ao processar o néctar e o pólen contaminados, as abelhas remanescentes podem provocar o colapso das colmeias por falta de alimento puro para as crias, que morrem e apodrecem nas caixas.
Em 2017, o apicultor Aldo Machado (citado acima) perdeu mais de 500 caixas, algumas já carregadas de mel.
Uma caixa com enxame saudável e caixilhos com cera alveolada, em início de temporada, custa R$ 200 para ser colocada no campo; na colheita, estando cheia de mel, pode ter valor duplicado ou render mais ainda, a depender das floradas e das condições climáticas.
Pequeno ou grande, o apicultor pode repor rapidamente as colmeias perdidas, mas não tem como recuperar o prejuízo causado pelo colapso das colônias de abelhas destruídas pelas agrodrogas.
O terror dos grandes apicultores-exportadores é que o mel produzido pelas colmeias sobreviventes saia dos apiários e das agroindústrias processadoras contendo traços de agrotóxicos da categoria dos neonicotinóides, dos quais o mais assustador é o fipronil, ingrediente-chave de inseticidas usados na sojicultura.
Se algo desse tipo for detectado em exames físico-químicos, o mel perderá a validade para exportação. Apenas o Rio Grande do Sul exporta uma média de US$ 7 milhões por ano.
Sem contar os prejuízos financeiros, que nem são calculados pois não há a quem reclamar ou apresentar “a conta”, o que mais dói nos criadores de abelhas é a reiterada falta de respeito.
Os apicultores constituem o elo mais fraco da cadeia do agronegócio, cujo carro-chefe é exatamente a soja, que lidera a produção de grãos e exerce influência fortíssima na produção de carnes, na agroindústria e na logística de exportação.
Aos sojicultores estão ligados umbelicalmente:
1) os fabricantes de sementes e de pesticidas, hoje integrados em poucos grupos econômicos globais;
2) os fabricantes de máquinas e implementos agrícolas, também concentrados em poucas marcas;
3) os revendedores de insumos agropecuários (1.500 lojas apenas no Rio Grande do Sul);
4) os prestadores de serviços de aviação agrícola;
5) os proprietários rurais que arrendam suas terras para profissionais da agricultura mecanizada;
6) os sindicatos rurais e suas respectivas federações.
Diante desse poderoso exército atrelado ao modelo norte-americano de agricultura, não é difícil entender a situação do elo mais fraco. Começa que a maioria dos apicultores depende da boa vontade dos proprietários rurais em ceder áreas para a instalação de apiários.
Nem todos gostam de abelhas ou de apicultores, muitos não dão valor ao mel ou à polinização executada pelas abelhas e alguns menosprezam a chance de receber 10% da produção de mel obtida em suas terras.
Mesmo que instalem seus apiários dentro de matos ou beiradas de córregos, os apicultores sabem que as abelhas podem chegar a locais pulverizados por inseticidas, pois voam até três quilômetros de casa, à procura de flores. Aí começa o problema.
Além do poder tóxico dos pesticidas, o maior perigo após a pulverização é a deriva, isto é, o produto químico jogado de avião ou de máquinas terrestres que se desloca levado pelo vento para áreas vizinhas, atingindo vegetação nativa e contaminando pequenos cursos d’água.
Há registros de que a deriva pode levar veneno a 15 quilômetros.
Em São Gabriel, onde se cultivam grãos como arroz e soja, exames em abelhas mortas constataram que elas não se contaminaram diretamente numa lavoura, mas ao coletar água (contaminada por agrotóxico) de uma sanga situada a seis quilômetros da plantação mais próxima.
Isso indica que o problema está mais generalizado do que parece. E já chegou a instâncias oficiais como o Ministério Pùblico, mas não há sinais de solução porque há um jogo de tirar o corpo fora e lavar as mãos.
O apicultor prejudicado pode reclamar às inspetorias veterinárias estaduais, obter um laudo toxicológico num laboratório público ou privado e entrar com uma reclamação judicial contra:
a) o agricultor que mandou aplicar o agrotóxico;
b) a empresa de aviação que prestou o serviço;
c) o técnico que receitou o produto;
e) o revendedor de insumos agropecuários;
f) o fabricante dos venenos.
Parece fácil, mas não é: “Se eu processar um agricultor ou fazendeiro que matou minhas abelhas, no dia seguinte todos os vizinhos dele vão pedir para eu tirar meus apiários das terras deles”, diz Aldo Machado, o apicultor citado no início deste texto.
Os apicultores estão presos dentro de uma engrenagem perversa. Se correr o veneno pega, se ficar o veneno come.
É um círculo vicioso que não apenas reduz a produção de mel, mas compromete a manutenção da biodiversidade, pois as abelhas exercem um papel fundamental na polinização da flora nativa e de lavouras e pomares.
“Sem abelhas, sem alimentos”, diz o slogan de uma campanha em curso no Brasil. O biólogo brasileiro Lionel Gonçalves, que se aposentou em Ribeirão Preto e foi dar consultoria à Universidade Rural do Rio Grande do Norte, para ajudar produtores de melão (fruta dependente da polinização por abelhas), criou uma organização não governamental chamada Bee Or Not To Be, numa referência direta à frase Ser ou Não Ser, de Hamlet, de Shakespeare.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“Se as abelhas desaparecessem da face da Terra, a espécie humana teria somente mais quatro anos de vida. Sem abelhas, não há polinização. Ou, seja, sem plantas, sem animais, sem homens”. Albert Einstein (1879-1955)

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