MARÍLIA VERONESE
Fecho os olhos e de repente sou de novo uma estudante de 21 anos e não mais esta professora de 50, que hoje escreve para não enlouquecer. Estou num comício do Lula em Porto Alegre, o ano é 1989, acho que o mês é setembro, mas pode me falhar a memória nesse devaneio… Olívio tem cabelo e bigode pretos, Tarso é um galã intelectual de baixa estatura, tem pouca mulher no palanque (tinha alguma? Já não lembro bem), todos cantavam “Lula lá” (o jingle da campanha), empolgados. A sombra do candidato da Globo, o “caçador de Marajás”, dissipava-se naquela empolgação. Iríamos eleger o primeiro presidente operário da história da nação. Viva! Que entusiasmo! CORTA.
Outra cena no mesmo ano, novembro; estudantes da PUC caminham em direção ao estacionamento daquela universidade. Classe média umas, média alta outras. Iam de carro pra faculdade (eu dividia carro com irmão e ia quando dava). “-Não estou gostando do rumo dessa eleição”, diz uma eleitora do Brizola. “-Eu devia ter votado no Brizola…” responde a outra que caminhava ao lado dela. “-Em quem tu votou?” pergunto eu, eleitora do Lula. “No Maluf”, responde a outra. Penso cá comigo, “Mas quem raios vota no Maluf e poderia votar assim, de sopetão, no Brizola?!” sem entender nada. Me calo. Ao final daquele dia, confirma-se: Lula e Collor estavam no segundo turno. Apertado. Brizola em terceiro, quase foi ele a duelar com Collor (AH! SE LULA E BRIZOLA TIVESSEM SE UNIDO, BATÍAMOS O COLLORIDO NO PRIMEIRO TURNO![1]) grito eu desatinada. [Mas cada um tinha seu próprio projeto de ser presidente e não abriria mão, não é mesmo?!] Bom, logo Brizola avisa que precisará engolir o sapo barbudo e declara seu apoio a Lula no segundo turno. Nova esperança. Vamos lá. Comício com multidão e cantoria. Muita gente esperançosa, ou seria iludida…? CORTA.
Na manhã da confirmação da eleição do Collor, saio de casa com a cara fechada. Amarro uma fita preta no braço, pra simbolizar o luto. Perdemos, não adianta, o Brasil nunca será justo. As elites e a classe média inculta e vil não deixam. Vou pro estágio de psicologia clínica comunitária no Campus Aproximado da PUC na Vila Fátima. Lá pelo menos posso fazer alguma coisa pelo povo da periferia. CORTA.
Tomo um susto, abro os olhos. Volto à minha pele atual e já tenho meio século de existência, que baque. Eleição presidencial novamente. O fascismo ronda, é ainda pior que em 89. Collor era um canalha, mas fingia discurso democrático, apesar de conservador e moralizante. Hoje – e me certifico de estar em 2018, olhando no espelho -, perdemos aquele mínimo pacto social de democracia, mesmo que fingido. Nem as aparências se salvam mais, ou tentam enganar. As pessoas deliram abertamente nas redes sociais, acham lindo ser violento e estúpido, acreditam em mentiras absurdas, acham que todo maluco por aí ter uma arma na mão vai solucionar a violência (mesmo que seja óbvio que vai agravá-la e muito). Candidatos a presidente exaltam o nome de torturadores que levavam crianças para ver a mãe ser brutalmente torturada. Seres ignóbeis dizem que é mentira. Onde estou? Será na mesma Porto Alegre que elegeu Olívio em 89, iniciando um ciclo de democracia participativa que nos botou no mapa do mundo com o Fórum Social Mundial, no início dos anos 2000? Fico tonta e tudo se confunde com David Gilmour cantando Wish You Were Here[2] ao fundo. Começo a cantar também. CORTA.
Acordo e aceito. Não, não é a mesma Porto Alegre. É uma cidade triste, emburrecida, esburacada. Não se abre mais para receber Noam Chomsky ou Vandana Shiva ou Boaventura de Sousa Santos. Tá mais pra convidar o Alexandre Frota (dou uma escapada de volta a 89 pra lembrar da Claudia Raia dizendo que o Collor era bem nascido e não iria roubar, ela que foi casada com o Frota) ou o Olavo de Carvalho. Tá mais pras madames cheias de botox que tomam Rivotril com Veuve Clicquot para espairecer, nos seus condomínios fechados, as bandeiras do Brasil penduradas nas sacadas (e fotos delas em Miami e Orlando em cima da bancada de mármore).
Essa é a nova estética. E toda a estética tem uma ética, como dizia Paulo Freire… ou era o contrário? A toda ética acompanha uma estética? Enfim. A estética atual é grotesca, agressiva, quer exterminar aquilo que não se acomoda bem em seu mundo de plástico e mármore, cheio de preconceitos e ódios. De gente que adora postar fotos em lugares lindos e de manter “boa aparência” na vitrine social dos “bem-nascidos”. Aliás, lembram quando se pedia “boa aparência” nos classificados de emprego?! Depois, graças ao pacto democrático mínimo que conseguimos estabelecer, isso ficou parecendo discriminatório. Todos têm direito a um emprego, a trabalhar e receber salário digno, mesmo quem não tiver a “apresentação ideal”. Discriminação é anticonstitucional… Gentes! Isso tá acabando, viram? Os anúncios de emprego voltarão a exigir “boa aparência”. E talvez peçam também por “mulheres de direita”, que seriam mais limpas, higiênicas e belas. E quem diz essas estultices está com boas chances de ser eleito pelo voto popular.
Quem são os culpados da hecatombe ético-estético-política por que passa o Brasil? Muitos acusam o PT, porque dizer “a culpa é do petê” virou o maior lugar comum nacional. Mas eu vejo essa culpa bastante diluída (e o petê tem parte dela, sim). Prefiro falar em responsabilidades a falar em culpa, e quando se pensa no que o maior partido do país virou, em nível nacional, é realmente preocupante. Como essa estratégia para as eleições presidenciais de 2018 foi traçada? Em plenárias democráticas com amplos debates e votações? Pelo que soube, foi por decisão pessoal de Lula. O dono do partido é um líder carismático adorado e inquestionável, aquele da tipologia weberiana. Instituições democráticas não podem funcionar assim.
Não nego que o cara é um fenômeno, realmente. De boia-fria a operário sindicalista a deputado constituinte e a presidente da república! Que pegou uma onda favorável na economia e fez programas sociais louváveis – embora dentro dos preceitos de uma economia neoliberal de mercado -, tirando milhões da miséria, levando água a regiões secas (o programa das cisternas é uma lindeza), abrindo a universidade para os pobres. Quem mais tem essa trajetória no Brasil? A da Marina é bonita também, mas como chegou a presidente, o Lula é o próprio self-made-man. Com ele, os pobres começaram a acreditar que era possível, que podiam ser o que quisessem, que podiam sonhar alto. Lideranças populares entre os catadores de material reciclável eram apontadas como possíveis futuros presidentes do Brasil e, obviamente, foi a figura do Lula que os inspirou a aspirar.
E foi aí que as elites do atraso, para citar Jessé de Souza, da rapina eterna desse país, acharam que bastava. Era preciso manter o esquema escravagista que os sustenta no topo da pirâmide social e podendo explorar os pobres à vontade, sem serem incomodados. A primeira coisa era destruir Lula como fonte de inspiração; demonizá-lo, destruí-lo moralmente. E começaram a campanha. Como a política no Brasil desde sempre se fez com conchavos, não demoraram a achar algum (quando seus políticos amigos participam, escondem-nos cuidadosamente). E foram pra cima, com tudo. Escarafuncharam toda a vida de Lula e nesse meio tempo criaram-se fakes a vontade, tendo o “Lulinha” sido apontado como dono de metade do Brasil, da Friboi etc. E as madames acreditaram em tudo porque convinha ao seu modo de vida, e botaram a bandeira do Brasil na janela, porque eram limpas, de direita e estavam longe da corrupção.
Os que fuçavam a vida financeira do Lula não achavam muita coisa, então um apartamento meio fuleiro no Guarujá-SP teria de servir, pronto (ué, mas ele não era o gênio do crime?!). Até barco de lata serviu. Criaram a onda, a mídia insuflou o ódio e pimba! Estava aberto o baú dos horrores e seus shows diuturnos.
E cá estamos, em outubro de 2018. Falta só um ano pra completar três décadas que me separam daquela menina que estudava psicologia e queria um mundo mais justo, porque tinha aprendido que era o certo, que a justiça para todos seria o ápice da humanidade. Justiça sempre foi a palavra que mais me encantou, tenho-a até tatuada na pele. Mas como foi que chegamos até aqui, mesmo?
Empresas de mídia de massa, com seus jornalistas coniventes, pusilânimes e puxa-sacos (“podemos tirar, se achar melhor”)[3]; partes do poder judiciário e legislativo, igualmente pusilânimes, desonestos e que impediram uma presidenta honesta, mas acusada de estelionato eleitoral, porque tinha de “servir a dois senhores”: o “mercado” que lhe exigiu Levy e o povo que lhe exigia seus direitos. O dinheiro acabou, ela tentou manter os direitos do povo, fez manobras fiscais e… sofreu deposição. Foi um golpe, porque não havia razões para isso. O que houve foi uma manobra de gente muito rica e poderosa usando palhaços e palhaças plastificados e com cabelo acaju, no congresso nacional e no senado federal, gente da pior qualidade cuja feiura e falta de ética foi descoberta no dia 17 de abril de 2016. Usaram ainda uma figura patética que volta e meia era possuída pelo demônio e girava camisetas no ar, e que na absoluta crise ético-estética do país foi alçada ao papel de “advogada brilhante”. Isso sem falar em juízes de piso medíocres e obcecadamente partidários. Como essa gente horrenda tomou conta? O que os artífices de um país mais justo e decente fizeram de tão errado? Como chegamos ao ponto crítico em que estamos?
Muito já se escreveu tentando responder; eu inclusive, aqui nesta coluna. Cursos foram ministrados em aulas na pós-graduação, Brasil afora. Teve racismo, teve machismo, teve classismo e demais preconceitos, de vários tipos. Mas teve também falta de visão para usar estratégias e ferramentas de comunicação com mais sabedoria, nomear um STF mais digno e competente (fico pensando no meu colega de Unisinos, o grande jurista Lênio Streck, sonho com ele entrando lá e chutando uma daquelas porcarias pra fora), dialogar muito mais com as bases e saber fazer mea culpa pública quando necessário, sensibilizando o povo e não permitindo que a pecha de “corrupto” colasse, ou seja, estratégia. CORTA.
Eu e muitos companheiros e companheiras que foram às ruas em 2016 e voltaram agora em 2018 pedíamos, desde a farsa do impedimento-golpe, que se formasse uma frente ampla democrática, do centro à esquerda do espectro político (podendo incluir uma eventual direita democrática, que eu estou achando que nem existe no Brasil), para salvar um projeto de Estado democrático de direito. Uma sociedade alinhada com os valores dos objetivos de desenvolvimento sustentável, que sucederam os objetivos do milênio da Organização das Nações Unidas. São dezessete e podem servir de horizonte normativo para sociedades democráticas, para orientar sua norma jurídica. Coisas como “acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável; acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares; tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis; alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”… e por aí afora. Conheça os demais no site abaixo, nesta nota rodapé[4]. Se o coiso ganhar, nos afastaremos cada vez mais de todos eles.
Mas não foi possível fazer a frente democrática (afinal, como em 89, cada qual tinha seu projeto de poder ou presidência, não é?) e os que não quiseram compô-la têm responsabilidade nessa tragédia que vivemos. E ainda pode piorar muito. Querem nomes? Só alguns, completem a lista: Lula tem culpa, Ciro tem culpa, Marina tem culpa, FHC tem culpa. Esperávamos mais de todos eles. Esperávamos a frente democrática capaz de criar um novo pacto social para substituir o da Nova República, depois de 30 anos. Não sou mais aquela menina de 20 anos. Não tenho mais aquela sensação de ter toda a vida pela frente. Militei pelas Diretas Já aos 16 anos, estreando naquela ocasião em passeatas, quase sempre violentamente reprimidas pelas cacetadas e bombas da BM, mesmo quando pacíficas (aliás, quando a recomendação da ONU vai ser seguida e as polícias desmilitarizadas e democratizadas?).
Domingo passado (29/09/18) fomos às ruas bradar por decência, justiça, dignidade, por mais amor e menos ódio, por direitos iguais para todos, por liberdade, que são alguns dos sentidos do #elenão. Estávamos alegres e esperançosas. As pesquisas da semana, manipuladas ou não (e não o podem ser em demasia, ou os institutos perdem a credibilidade), foram balde de água fria. Parece que o Brasil das horrorosidades, das aberrações ético-estético-políticas está na frente. E podem eleger a vilania e a barbárie, enterrando pactos democráticos, ou prendendo-os em masmorras com Brilhante Ustra montando guarda. CORTA.
Respiro profundamente. Se eles têm espíritos sinistros e sombrios, nós temos os espíritos da luz nos guardando. Marielle encarnará em cada jovem mulher que no dia 29 de setembro foi às ruas, e com ela mais e mais flores brotarão do asfalto. Os netos de Chico Buarque também são compositores…, porque apesar daqueles todos, amanhã vai ser outro dia. A vida se reproduzirá e trará novas perspectivas de ação. Novas gerações de amantes da justiça crescerão e a buscarão incansavelmente; e a potência disso tudo haverá de trazer melhores dias de novo. O pacto será resgatado da masmorra. CORTA PRO FUTURO.
Nos aguardem. A gente já chega já!
Referências
[1] No primeiro turno, Fernando Collor teve 20,6 milhões de votos (o equivalente a 28% do total). Lula teve 11,6 milhões de votos (16,08% do total), conquistando a vaga do segundo turno numa disputa apertada com Leonel Brizola, que obteve 11,1 milhões de votos, apenas 454.445 a menos (cerca de 0,5% do total de votos). Fonte: http://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/coberturas/eleicoes-presidenciais-1989/o-primeiro-turno.htm
[2] http://www.youtube.com/watch?v=IXdNnw99-Ic
[3] http://www.cartacapital.com.br/blogs/midiatico/podemos-tirar-se-achar-melhor-podemos-2154.html
[4] http://nacoesunidas.org/conheca-os-novos-17-objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel-da-onu/
Um comentário em “O tempo não é linear – ou a política que dá voltas”
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Pois é. Ninguém roubou, não são corruptos, os bilhões de Reais devolvidos ao Brasil não existem, todos santos. Só a direita que quer democracia, alternância no poder, esta sim é fascista (mesmo querendo estado mínimo) e ladra do dinheiro público. Tadinho de nós. Peninha de vocês… tão bonzinhos. Sérgio Moro então, o juiz que determinou a prisão de empresários corruptores e de políticos corruptos, este é um demônio. Se tivesse prendido só os do PSDB, do MDB e outros partidos, tudo bem, mas como prendeu o deus da esquerda e alguns de seus asseclas, é o “pau mandado” da direita nazista. Sabe Marília, pessoas com o teu pensamento retrógrado, com suas idéias de que tudo são direitos e nada são deveres, de que é obrigação do estado sustentar indefinidamente os pobres dando-lhes esmolas e não obrigando-os à contrapartida alguma, defendendo uma ex presidente desvairada que hoje tem o desplante de gastar meio milhão do nosso dinheiro em viagens de turismo, uma desclassificada que comprou por um bilhão uma refinaria que ficou a venda anos e anos por 45 milhões, pessoas que defendem a tal “nova matriz econômica” que levou o país a ter 14 milhões de desempregados. O que você queria? que essa laia criminosa que tomou conta do governo e triplicou o tamanho do estado permanecesse no poder indefinidamente? Não sou Bolsonarista não. Votei no Bolsonaro para que o pt não tivesse chance de voltar a roubar. Se estou decepcionado com o Bolsonaro? não muito. Nunca coloquei muita fé nele. O considerava tão apto à presidência da república como eu, ou seja, incompetência para governar. Mas eu queria e quero mudança. Quero que haja alternância no poder. Quero democracia. Quero que o país gere empregos e que se acabe com essa cultura vagabunda do “dar para o povo” e assim se manter no poder. Quero honestidade. Quero armas sim, não nas ruas, mas nas suas casas, e se algum bandido tentar entrar, que façamos como aquela velha senhora em Caxias do Sul que com alguns tiros mandou o invasor para o inferno que é o lugar apropriado. Bolsa isto, bolsa aquilo? chega. Nada é de graça. Sempre alguém paga. Então, Marilia a defensora dos frascos e comprimidos. Não pense que todo liberal é um nazista e vá ler mais sobre fascismo antes de me chamar de tal ou chamar a todos nós de direita de burros.