Os pingentes

Geraldo Hasse
De manhã cedo, antes das sete horas, o cidadão com um saco plástico às costas pede “dois real”.
“Só tenho um. Serve?”
Ele pega a moeda, agradece e segue seu caminho.
Com mais alguma doação ali adiante, talvez inteire o valor de um café-com-pão.
Enquanto caminha, vai procurando latas para encher o saco preto.
Precisa de 70 latinhas para fazer o quilo que lhe renderá R$ 1.
Há 20 anos, bastavam 40 latas para inteirar um quilo.
A tecnologia aliviou o peso dos recipientes de bebidas, obrigando os catadores a dobrar suas buscas para alcançar o mesmo resultado. Isso sem falar que o número de catadores mais do que dobrou.
Como disse em 1970 o general Medici em visita ao Nordeste, “a economia vai bem, mas o povo vai mal”.
São árduas e extenuantes as jornadas dos catadores, mas muitas pessoas os consideram “vagabundos”.
Na real, são pingentes caídos do trem da economia, o qual vai descartando e excluindo criaturas inaptas para a vida concorrencial.
A maioria nunca teve qualificação ou a perdeu em algum momento de transição tecnológica, como a atual. Os egressos da vida rural praticamente perdem o saber e a utilidade na vida urbana. Alguns se arranjam como jardineiros, mas faltam jardins para tantos marginalizados.
No desamparo, muitos se acomodam em casas de parentes, montam barracos ou vão para baixo de viadutos, onde passam a fazer parte de uma categoria crescente: os moradores de rua.
Não raro se afeiçoam a uma droga que acaba por lhes destruir a saúde, abreviando sua passagem pela vida – se a isso se pode chamar de vida.
Dos 13 milhões de desempregados da economia brasileira, quantos esmoreceram e foram catar lata, papelão e plástico?
E quantos simplesmente se acocoram nas proximidades de bancos e supermercados, à espera de uma ajuda, pelo amor de Deus?
Se a população sem emprego dobrou nos últimos três anos, é razoável supor que o número de catadores, moradores de rua e similares também se multiplicou por dois ou mais.
O fenômeno é constrangedor. Há um pedinte que passa algumas horas na porta de uma agência Caixa, onde se limita a interpelar cada pessoa que passa na calçada com um bordão ultraeconômico:
“Tem um real aí, amigo?!”
É um morador de rua, sem roupa limpa para trocar, embora saiba que, na pior das hipóteses, pode buscar abrigo num albergue público que além de cama, banho e roupa limpa, lhe oferecerá pela manhã, para que não saia à rua sem nada nas mãos, uma mamadeira contendo água e algum aditivo.
Na realidade, os serviços de assistência social das prefeituras ou de entidades beneficentes não dão conta dessa situação emergente. E cresce o número de políticos dispostos a ignorar o problema social que se tornou crônico.
São os doidos que vagueiam com um cobertor sobre os ombros, sem coragem de pedir.
É o portador de cartaz de papelão – Ajuda Para Comprar Comida – que fica corujando os motoristas nas esquinas.
O vendedor de drops nos sinais de trânsito.
Os malabares de esquina.
Os guardadores de vagas, os lavadores de carros e tantos outros.
O Brasil precisa incluir o espírito de solidariedade em sua política econômica para que, em algum dia do futuro, os filhos de todos esses pingentes tenham educação, saúde, emprego e demais benesses da civilização.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“Quando cai a noite, nossa raiva fala liberdade!”
Frase pichada em muro de Porto Alegre e assinada pelo símbolo anarquista (um A dentro do O maiúsculo)
 

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