Bomba no QG bolsonarista

(…) Se houvesse um inquérito no qual todos os escravos pudessem depor livremente, à parte dos indiferentes à desgraça alheia, os cínicos e os traficantes, todos os brasileiros haviam de horrorizar-se ao ver o fundo de barbaria que existe no nosso país debaixo da camada superficial de civilização, onde quer que essa camada  esteja  sobreposta  à  propriedade  do homem pelo homem. (Joaquim Nabuco, “A Escravidão”, 1871)

O caso do trabalho análogo à escravidão durante a colheita da uva na Serra gaúcha veio à tona no dia 22 de fevereiro, quando três trabalhadores procuraram a polícia após fugirem de um alojamento em que eram mantidos contra sua vontade. A Polícia Rodoviária Federal (PRF) resgatou no mesmo dia mais de 200 trabalhadores em Bento Gonçalves. O alojamento ficava no Bairro Borgo, a cerca de 15 km dos vinhedos do município.

Os trabalhadores foram contratados pela Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, que oferecia a mão de obra para as vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi, Salton e produtores rurais da região. Eles afirmam que eram extorquidos, ameaçados, agredidos e torturados com choques elétricos e spray de pimenta.

A maioria dos trabalhadores teria vindo da Bahia para trabalhar na colheita da uva, com promessas de salários superiores a R$ 3 mil, além de acomodação e alimentação. No local, os trabalhadores foram encontrados “em situação degradante”.

Segundo o Ministério Público do Trabalho, está estabelecido um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) em que a empresa deverá apresentar a comprovação dos pagamentos sob a pena de ajuizamento de ação civil pública por danos morais coletivos, além de multa correspondente a 30% do valor devido.

De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), as vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton contrataram a Fênix Serviços Administrativos e Apoio a Gestão de Saúde LTDA, que oferecia a mão de obra. Conforme o gerente regional do MTE em Caxias do Sul, Vanius Corte, as vinícolas podem ser responsabilizadas. Não basta contratar através de uma terceirizada e se eximir de culpa. Tem que examinar se a terceirizada oferece as condições adequadas e os direitos legais.

A Corregedoria da Brigada Militar investiga a possível participação de policiais militares nas violências sofridas por trabalhadores encontrados em situação semelhante à escravidão.

Assistencialismo

O caso teve forte repercussão nacional e as manifestações de políticos e notas de entidades empresariais da região, onde o voto em Jair Bolsonaro para continuar seu mandato de Presidente da República, em 2022, foi majoritário, pareceu uma não percepção que o país mudou.  Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ganhou as eleições e o Ministério do Trabalho e Emprego voltou a existir.

O Centro da Indústria, Comércio e Serviços (CIC) de Bento Gonçalves, em nota culpou a situação de trabalho semelhante à escravidão descoberta na cidade tem relação com “um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade” que causa “falta de mão de obra” na cidade. A entidade, no entanto, considera a prática “inaceitável” e pede punição aos responsáveis.

Portanto, para os empresários a culpa seria do Bolsa Família. Outro trecho da nota: “Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”.

O vereador Sandro Fantinel, de Caxias do Sul, fez um comentário xenofóbico ao usar a tribuna no dia 28 de fevereiro e questionar a repercussão do caso de trabalhadores resgatados em situação de escravidão nas vinícolas da Serra gaúcha. O parlamentar pediu que os produtores da região “não contratem mais aquela gente lá de cima”, se referindo a trabalhadores vindos da Bahia, que só “vive na praia tocando tambor”.

Fantinel sugere que se dê preferência a empregados vindos da Argentina, que, segundo ele, seriam “limpos, trabalhadores e corretos”.  A apresentadora de um telejornal da TV Bahia, afiliada da TV Globo, Jéssica Senra, se manifestou criticando a fala do político. “A gente até toca tambor, mas não é a nossa única cultura não. A nossa cultura é de não se deitar para autoritários, tiranos, senhores de engenho”, afirmou a âncora do programa Bahia Meio Dia.

A Câmara de Vereadores de Caxias do Sul aceitou por unanimidade os pedidos de cassação do vereador Fantinel, do partido Patriota Nacional, que por sua Comissão Executiva Nacional, efetivou sua expulsão.

Toma lá, dá cá

O apoio do empresariado, primeiro para Michel Temer (MDB), e depois por Jair Bolsonaro (PL) tem suas razões. Entre elas, o fim do Ministério do Trabalho, após 88 anos de atuação, em 1º de janeiro de 2019, primeiro dia de governo de Bolsonaro. Em 26 de novembro de 1930, o presidente Getúlio Vargas criou o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, sob o comando de Lindolfo Collor. Até então, os conflitos entre trabalhadores e empregadores eram tratados pelo Ministério da Agricultura.

O fim do Ministério do Trabalho significou uma redução na política de fiscalização. No primeiro Orçamento anual elaborado pelo governo Bolsonaro, os recursos previstos para este fim caíram 49% em relação ao ano anterior.

Também em seu primeiro ano de governo, o governo Bolsonaro implantou a Lei da Liberdade Econômica, que trata da proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividades econômicas. Por meio dela, ficou instituída a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, além de uma série de garantias para o livre mercado.

A Lei da Terceirização foi aprovada no dia 31 de março de 2017 pelo presidente interino Michel Temer (MDB). A aprovação da Nova Lei da Terceirização transformou as relações de trabalho no Brasil. A terceirização é um processo pelo qual uma empresa contrata outra para prestar um determinado serviço.

Ficou permitida a terceirização de qualquer atividade em todos os setores da economia; A empresa contratante responderá de forma subsidiária pelos débitos trabalhistas da terceirizada, que será autuada primeiramente como empregadora. Então, havendo impossibilidade de cobrança, a empresa contratante será acionada como subsidiária; A empresa contratante só responderá por débitos trabalhistas da contratada em última instância.

Segundo pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 22% dos trabalhadores formais hoje no Brasil são terceirizados, e esse número só tende a aumentar.

Ancestrais pobres

É interessante perceber que parte dos empresários da Serra gaúcha esqueceu sua descendência de imigrantes italianos, que começaram a chegar em 1875, principalmente em São Paulo e Rio Grande do Sul, fugindo da fome na Europa. Foi somente após as lutas pela Unificação do Estado italiano, em 1861, que a Itália teve condições de sair da situação medieval em que se encontrava.

Para melhor determinar a relação entre industrialização e emigração, pode-se entender que ao abalar as estruturas agrárias tradicionais, o processo de industrialização acabou por gerar desequilíbrios econômicos que integrou uma minoria detentora de capital e deixou uma maioria despossuída de bens, à margem do processo.

Notas oficiais

A Vinícola Aurora distribui nota à imprensa: “Em respeito aos seus associados, colaboradores, clientes, imprensa e parceiros, a Vinícola Aurora vem à público para reforçar que não compactua com qualquer espécie de atividade considerada, legalmente, como análoga à escravidão e se solidariza com os trabalhadores contratados pela terceirizada Oliveira & Santana.”

A Vinícola Salton também divulgou nota: “A Família Salton repudia veementemente e não compactua com nenhum tipo de trabalho sob condições precárias, análogas à escravidão. A empresa e todos os seus representantes estão solidários a todos os trabalhadores e suas famílias, que foram tratados de forma desumana e cruel por um prestador de serviço contratado.”

Nota da Cooperativa Garibaldi: “Diante das recentes denúncias que foram reveladas com relação às práticas da empresa Oliveira & Santana no tratamento destinado aos trabalhadores a ela vinculados, à Cooperativa Vinícola Garibaldi esclarece que desconhecia a situação relatada. Informa, ainda, que mantinha contrato com empresa diversa desta citada pela mídia. Com relação à empresa denunciada, o contrato era de prestação de serviço de descarregamento dos caminhões e seguia todas as exigências contidas na legislação vigente. O mesmo foi encerrado.”