Deputados discutem as razões do empobrecimento do Rio Grande do Sul

A Comissão Especial sobre a Crise Fiscal e a Reforma Tributária Necessária, da Assembleia Legislativa do RS, debateu durante quatro meses questões fundamentais para entender o que aconteceu com estado gaúcho, que aos poucos deixou de ser uma economia diversificada, com uma indústria forte, para tornar-se um grande campo de soja.

A Comissão, que foi presidida pelo deputado Luiz Fernando Mainardi (PT) e relatada pelo deputado Elton Weber (PSB), apresentou na semana passada seu relatório final, aprovado com sete votos favoráveis e um contrário, do deputado Fábio Ostermann (Novo). Os deputados Frederico Antunes (PP) e Mateus Wesp (PSDB) votaram favoravelmente, mas com observações.

O documento, com 102 páginas, traz quatro recomendações: foco em políticas públicas de incentivo ao desenvolvimento, capazes de fazer o estado crescer e catapultar a receita; um movimento em defesa de uma ampla reforma tributária nacional, que garanta justiça fiscal e distribuição mais equânimes dos recursos entre os entes subnacionais; revisão da Lei Kandir, que, atualmente, isenta de impostos estaduais as commodities primárias, o que repercute em perdas na ordem de R$ 4 bilhões/ano para o RS e um forte questionamento aos valores atuais da dívida gaúcha para com a União.

A Lei Kandir, aprovada em 1996, trouxe para os estados brasileiros a desoneração das exportações de produtos primários e semielaborados. Isentos de Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS); Programa de Formação do Patrimônio (PIS); Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). A desoneração do ICMS ajudou no aumento do endividamento do estado agroexportador. No final, quem paga essa conta é a população.

Em 2020, finalmente a compensação para as perdas da Lei Kandir dos estados e municípios foi regulamentada, o que garantiu o repasse no total de R$ 58 bilhões, entre os anos de 2020 e 2037. No entanto, só o estado gaúcho calcula perdas na ordem de R$ 80 bilhões no acumulado.

O ex-governador Alceu Collares, que enviou um vídeo para a Comissão, falou das dificuldades que a Lei Kandir impôs ao Rio Grande do Sul e defendeu a extinção da norma, a qual chamou de absurda.

Recuperação fiscal

Ao todo, 44 pessoas deram depoimentos nas Audiências Públicas, entre elas especialistas em finanças públicas e ex-gestores, incluindo ex-governadores de diferentes partidos e ex-secretários da Fazenda. No final, a Comissão Especial ficou contra a adesão ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF), do governo federal, alternativa aceita pelo Executivo gaúcho. Para o deputado Mainardi, esse caminho pode resolver as dificuldades conjunturais, mas vai gerar problemas de sustentabilidade financeira do estado no médio e longo prazo.

Para o parlamentar, os números da dívida são autoexplicativos. Conforme dados do relatório, o Rio Grande do Sul consolidou uma dívida com a União de cerca de R$ 9,5 bilhões, em 1996, durante o governo Britto (MDB), e pagou desde lá algo em torno de R$ 37 bilhões e ainda deve R$ 70 bilhões. “A dívida é impagável e está fundada em uma correção acima do que era aceitável, com juros sobre juros em patamares acima, até, do que é comum nas relações entre instituições privadas. É necessária e urgente uma auditoria”, reflete Mainardi.

Em sua participação, o ex-governador Antônio Brito confessou: “Não preciso acompanhar os números para chegar à conclusão de que a atual dívida do Rio Grande do Sul com a União não será paga porque o tempo criou um distanciamento entre o tamanho da dívida e a capacidade de o Estado pagar. É preciso uma repactuação”.

O auditor do Tribunal de Contas do Estado e presidente da Federação Nacional das Entidades dos Servidores dos Tribunais de Contas do Estado (FENASTC), Amauri Perusso, foi taxativo: “Não há sentido em assinar um Regime de Recuperação Fiscal onde o estado do Rio Grande do Sul vai assumir um resíduo da dívida de R$ 60 bilhões de reais para pagar até o ano de 2048. Isso é dívida eterna, para não ser paga, não é dívida real.”

O ex-secretário da Fazenda no governo Collares, Orion Cabral, disse que o governo federal, ao assumir a coordenação financeira do setor público, impõe condições de correção monetária que inviabilizam o pagamento da dívida, uma vez que os índices definidos (IPG-M ou IPCA) têm crescimento superior à evolução da receita dos estados. Isso se agravou depois da Lei Kandir, que retirou receitas do estado. “A dívida é impossível de ser paga”, garantiu Cabral.

O fundamento da Lei Kandir, conforme o ex-secretário, foi exportar emprego e renda para o exterior, e “chegamos a uma situação no RS de exportar gado em pé para que sejam agregados valores em outros países”.  Cabral entende que a dívida pública e a Lei Kandir explicam o agravamento das finanças do RS nos últimos anos, lembrando que no período de Collares a dívida mobiliária dos estados representava cerca de 60% dos recursos próprios líquidos, e hoje representa cerca de 1,7 vezes essa receita própria líquida do estado.

Concentração e miséria

O diretor da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (FENAFISCO), Francelino Valença, afirmou que o Brasil precisa avançar na tributação progressiva, cobrando mais de quem ganha mais e aliviando a carga para os mais pobres, a exemplo do que acontece em países capitalistas desenvolvidos.

Valença disse ainda que a crise social no país é comparável à da França antes da revolução de 1789. Para sustentar a posição, argumentou que no país europeu no século XVIII uma em cada cinco pessoas precisavam de assistência para sobreviver. No Brasil em pleno século XXI, uma em cada quatro, perfazendo 24% da população, necessita de auxílio. “Se não houver uma mudança de rumo, poderemos assistir aqui a guerras fratricidas como acontece na África”, acredita.

Odir Tonollier, que cuidou das contas públicas no governo Tarso Genro – entre 2011 e 2014 -, disse que antes, autorizado a emitir títulos públicos, o estado tinha autonomia e banco próprio para financiamentos, e se taxava as exportações. “Com os ventos da globalização financeira, isto tudo foi acabando. Começou a decadência do RS do ponto de vista econômico, e hoje com reflexos na qualidade de vida”, salientou.

O ex-governador Tarso Genro afirmou que a questão da crise não pode ser analisada separada de como a ordem internacional integra o estado brasileiro representado pelo Banco Central, que traça as regras econômicas vigentes no país. Para Tarso, ao se falar nas causas da crise, é preciso levar em consideração a questão do gasto público, como se dá a acumulação privada das empresas privadas e os custos de funcionamento do Estado, que sofrem pressão constante das demandas das corporações empresariais e das corporações de servidores públicos.