Tudo é uma questão de fidúcia

A compra de ouro pelos bancos centrais atingiu seu nível mais alto em 55 anos. As compras líquidas do metal em 2022 totalizaram 1.135 toneladas, de acordo com um relatório do World Gold Council,  divulgado pela agência Nikkei Asia. Este foi o maior volume desde 1967, quando os bancos europeus compraram ouro em massa com os déficits dos Estados Unidos e a desvalorização da libra esterlina começou a minar a ligação entre o ouro e o dólar.

O mercado entende que a onda de compras do ano passado tenha sido desencadeada por sanções impostas à Rússia devido ao conflito da Ucrânia/ Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Isso teria estimulado outros países a buscar alternativas menos vulneráveis a sanções econômicas.

Aproximadamente metade das reservas cambiais da Rússia foram congeladas pelos bancos centrais ocidentais no início de março de 2022 como parte das sanções sobre o conflito na Ucrânia. As participações restantes consistem em ouro e moeda estrangeira mantidas no país, bem como ativos em yuans chineses.

As reservas cambiais da Rússia atingiram um máximo histórico de US$ 643,2 bilhões pouco antes do início do conflito com a Ucrânia , em fevereiro do ano passado. Moscou repetidamente chamou o congelamento de seus ativos de “roubo” e alertou que viola o direito internacional. Segundo o Kremlin, a ideia de reservas internacionais foi desacreditada pelo uso do dólar como arma na guerra de sanções contra a Rússia.

A análise dos dados do banco central russo pela RIA Novosti mostra que a participação do ouro nas reservas internacionais da Rússia aumentou no ano passado para 23,6%, enquanto a participação da moeda estrangeira diminuiu para 71,5%. A moeda estrangeira é tradicionalmente a base das reservas, mas no ano passado seu volume em ativos diminuiu 8,7%, para US$ 410,65 bilhões.

Confiança quebrada

No cenário global, os principais estoques físicos de ouro estão na sede do Federal Reserve (o banco central dos Estados Unidos) de Nova York e no Banco da Inglaterra (BoE, na sigla em inglês). Ambos prestam serviços de custódia para agentes internacionais, incluindo dezenas de outros bancos centrais. A confiança foi quebrada, um erro dos Estados Unidos, seguido pelo Reino Unido, que está provocando o afastamento do dólar por vários países.  

No pico, alcançado em 1973, o Federal Reserve chegou a conter mais de 12 mil toneladas de ouro. Em 2019, eram cerca de 6,2 mil toneladas, com um valor de mercado de quase US$ 205 bilhões. Nenhuma barra ali pertence ao governo dos EUA. O banco não cobra dos donos das barras pelo depósito.

O cenário do comércio atacadista de ouro é bastante complexo e está em constante evolução. Os três centros comerciais de ouro mais importantes são o mercado OTC de Londres, o mercado de futuros dos EUA e o Shanghai Gold Exchange (SGE). Esses mercados compreendem mais de 90% dos volumes de negociação global e são complementados por centros de mercado secundários menores em todo o mundo.  Apesar da preeminência do mercado londrino, ele vem perdendo participação relativa nos volumes negociados globalmente.

Em 2022, o Supremo Tribunal de Londres rejeitou a solicitação do presidente Nicolás Maduro para obter o controle de mais de US$ 1 bilhão das reservas de ouro da Venezuela armazenadas nos cofres subterrâneos do Banco da Inglaterra. Um direito líquido e certo do povo venezuelano.

Outros países, especialmente os que temem ser alvo de sanções dos EUA no futuro, também resolveram se voltar à China por se sentirem ameaçados pelo uso do dólar como uma “arma” para isolar a Rússia do sistema econômico internacional após o conflito com a Otan, na Ucrânia.

Outros bancos centrais que fizeram grandes compras de ouro incluem a Turquia, com 148 toneladas; Índia com 33 toneladas; Catar com 35 toneladas; e Uzbequistão com 34 toneladas.

A China foi o compradora de destaque. O governo chinês divulgou o aumento nas reservas de ouro em três anos, com um total de 62 toneladas adicionadas em novembro e dezembro de 2022. Suas compras reais podem ter sido ainda maiores, dada a queda de cerca de 20% em suas participações em dívida dos Estados Unidos  até novembro de 2022. Isso ocorreu quando Pequim tomou medidas para se afastar do dólar, incluindo a compra de petróleo em yuan.

Um dos focos dos chineses na cruzada contra o dólar é o petróleo. Desde o ano passado, a China, maior importadora global da commodity, vem discutindo com a Arábia Saudita e com outros países do Golfo Pérsico que o comércio de barris também seja feito em moedas locais.

A compra de ouro pelos bancos centrais em todo o mundo ganhou força na última década, após a crise financeira global, em 2008. Com o aumento das turbulências nos mercados financeiros internacionais e os juros negativos em muitas partes do mundo. Em setembro de 2019, estava cotado em US$ 1.531,50 a onça-troy (um quilograma equivale a 32,15 onças-troy), perto dos maiores níveis em seis anos, impulsionado pela guerra comercial e renovados sinais de fragilidade na economia da zona do euro.

Na época, o Citigroup divulgou relatório afirmando que as tensões entre Estados Unidos e China e outras incertezas geopolíticas, como o Brexit (saída da Inglaterra da União Europeia) e as instabilidades no segmento de petróleo no Oriente Médio, poderiam levar o ouro para o patamar recorde de US$ 2 mil a onça-troy nos próximos dois anos.

Em agosto de 2020, portanto um ano depois, o ouro chegou a US$ 2.052 a onça troy, um aumento de 72% desde que o rali começou no outono de 2018. O novo valor foi atingido durante a pandemia da covid 19. Atualmente, mantém-se em torno desse valor.

Dívida dos EUA

A demanda global por dólares significa que o regime dos EUA pode se safar com mais inflação monetária, mais repressão financeira e mais dívidas antes que a inflação dos preços internos saia do controle. Afinal, mesmo que o banco central dos EUA (o Federal Reserve) imprima US$ 10 trilhões em novos dólares para sustentar os preços dos ativos americanos, grande parte do mundo retira esses dólares dos mercados domésticos dos EUA, e isso reduz a inflação de preços nos EUA.

Além disso, o fato de o dólar dominar as transações comerciais globais significa mais demanda global por dívida dos EUA. Segundo a agência Reuters, em 2019, o dólar foi usado “para pelo menos metade das faturas do comércio internacional – cinco vezes mais do que a participação dos Estados Unidos nas importações mundiais de bens – alimentando a demanda por ativos dos EUA”.

Esses ativos incluem a dívida do governo dos EUA, e isso reduz a taxa de juros pela qual o governo dos EUA deve pagar sua enorme dívida de US$ 30 trilhões. Isso também diminui a probabilidade de uma crise da dívida soberana dos EUA. Internamente, o status de reserva para o dólar controla a inflação, reduz as taxas de juros e permite mais gastos do governo.

O papel do dólar na economia mundial ainda é enorme, e o dólar continua sendo, de longe, a moeda mais usada. Até quando?

Com Nikkei Asia, Reuters, Valor Econômico, Russian Today e Global Times