Paulo Timm – Economista
A pergunta é meio poética – senão patética – e foi Drummond quem a formulou, indiretamente, num poema quando se indagava:
“Os brasileiros, por acaso, existem?”
Tempos depois Renato Russo a lançava de novo no seu famoso
“Que país é este?”,
de tanta repercussão nos anos 80/90.
Na verdade, o tema é pertinente e tem acompanhado os grandes intérpretes do país desde os proféticos sermões do Padre Vieira, em meados do Século XVII , passando pelo cético José Bonifácio, o Patriarca da Independência, dois séculos depois. Não vou entrar em detalhes sobre cada uma dessas abordagens, muitas delas já clássicas, mesmo com eventuais reparos, como as dos autores citados mais as obras modernas de Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado Jr, Gilberto Freire, Celso Furtado e Raimundo Faoro, dentre outros. Apenas chamar a atenção sobre alguns pontos que roçam a conjuntura levando-nos a refletir sobre os próximos anos.
Começo pela demografia. Contrariamente ao México, que tinha uma população nativa em torno de 10 milhões de nativos – ou o dobro disso (?) – , grande parte reunida em habitats urbanos, quando o colonizador chegou, o Brasil teria, no máximo 6 milhões de índios dispersos em aldeias ao longo de um imenso território. Destes, metade, segundo Vieira, teria sido dizimada no primeiro século da colonização. Com os que restaram, mais os escravos trazidos da África e pouquíssimos brancos, num total pouco maior de 3 milhões de pessoas, chegamos à Independência, em 1822. Naquela época Porto Alegre, recém elevada a cidade, tinha apenas 5 mil habitantes. O Rio Grande um portal de solidões. Com isso iniciamos a construção da Nação brasileira. Em 1900 já éramos pouco mais de 14 milhões. No ano 2000 chegávamos a perto de 200 milhões, 85% vivendo em grandes cidades. Um espetáculo. Só para comparar, o México tinha 122 milhões em 2013. Como realizamos este verdadeiro milagre de multiplicação de almas? Com o Brasil : Uma sociedade extremamente autoritária e segregacionista, mas que, apesar de tudo, consegue isto que o Darcy Ribeiro chamava de incrível fazimento de gentes, à base da farinha de pau, comendo daí o pão que o diabo amassou. Nele entraram impulsos de forte crescimento vegetativo e de capturação de alguns fluxos imigratórios, sobretudo de São Paulo para o sul, o que nos tornou muito diferentes do resto. Não incorporamos nenhum território ou povo colonizado. Fizemo-nos. Mestiços. Bastardos. Tropicanos.
Dois momentos contribuíram decisivamente para este salto demográfico, ambos ligados ao desempenho da economia: 1. o grande surto do café, que deixou no seu rastro a ocupação do Vale do Paraíba e dos vales a oeste de São Paulo, além da vigorosa infraestrutura urbana de sustentação do comércio deste produto, tanto no Rio de Janeiro como entre Santos e a cidade de São Paulo; e 2. O longo período de substituição de importações que assegurou uma taxa continuada de crescimento do PIB entre 1932 e início dos anos 80 na ordem de 6,5% ao ano, transformando-nos numa das mais sofisticadas estruturas industriais do planeta, responsável por nos colocar entre as 10 maiores economias do mundo.
Estes processos econômicos permitiram a organização, no primeiro momento oligárquica, no segundo, dita populista, quase sempre autoritária, do Estado brasileiro, com o que assegurou-se a “ordem e o progresso” indispensáveis à sua legitimação. Nem o capitalismo, muito menos a democracia, como nos ensinam vários estudiosos, nascem e se desenvolvem graças aos elevados valores do humanismo implícito na filosofia que os sustenta. Quase sempre são frutos de rupturas institucionais, revoluções e até guerras. Nosso capitalismo e nossa democracia emergiram das violências vividas pela Nação no século XX, no meio das quais erguemos clamores de mudança e de liberdade, quase sempre sufocados.
Foi, contudo, no meio deste processo que se estratificou a sociedade brasileira, nas entranhas de uma modernização autoritária que formou gerentes e administradores com a função de cumprir o destino de um país prometido sempre para o futuro, embora de presente dinâmico mas seletivo. Com uma economia diversificada, uma estrutura de ocupação do espaço também dispersa, criamos uma classe média vigorosa, ao longo do século XX, como, talvez, nenhum outro país da América Latina o tenha feito. A dinâmica inter- setorial da economia, porém, não exigiu que esta classe média acompanhasse os modelos mais orgânicos do capitalismo central, onde à produção em massa seguia-se um consumo interno também em grande escala. No primeiro surto de expansão, nossa economia era primário exportadora e, no limite, realizou a transição da mão de obra escrava para o trabalho assalariado, do qual emanará, na decadência do café uma sociedade mais diversificada. No segundo surto, mais longo, o produto final da substituição de importações dificilmente era acessível aos próprios trabalhadores, mantendo-os à margem de sua expansão.
Temos , assim, uma elite econômica globalmente articulada e altamente concentrada, em torno de 10.000 famílias, assentadas em 250 conglomerados multinacionais, grandes empresas de serviços, sobretudo bancos, engenharia e comércio, ao que se soma o complexo do agrobusiness, dificilmente chegando esse número a 0.5% da população total do país, uma classe média poderosa, com nível de renda e informação internacional, que lhe segue os passos, não inferior a 40 milhões de pessoas, que correspondem aliás, aos usuários de Planos de Saúde (!), e o “povo em geral”, mais da metade da população, dos quais 80 milhões ganham até R$ 500 reais por mês, 8 milhões nem isso, estão na miséria absoluta, 28 milhões ganham salário mínimo, outro tanto pensões com este valor. E fim. Saímos, na Era Petista do Mapa da Fome, mas continuamos com outras fomes…
O resultado deste processo projetou-se no nosso sistema político, já viciado na origem colonial, pela outorga a cidadãos leais à Coroa Portuguesa o privilégio do exercício das funções públicas. Isto rompeu-se , claro, com a Independência, mas moldou-se às exigências da Boa Sociedade escravocrata criando as bases do coronelismo que viria a dominar a vida pública do país mesmo sob a República. Vargas, depois de 30 rompeu o modelo coronelista vinculado à propriedade da terra, mas o substitui por outro ligado ao próprio Estado, que , por sua vez tratou de criar os laços para sua perpetuidade nas respectivas regiões.
A consequência foi um arcabouço institucional formal, sobreposto à própria cidadania, aliás, só maciçamente presente no processo eleitoral depois da Constituição de 88. A exceção a esta regra foi o antigo PTB, de base urbana, com epicentro no Rio de Janeiro e uma sólida ramificação no Rio Grande do Sul, por razões peculiares deste Estado, de resto, berço de Vargas. No resto do Brasil, o mundo político se dividia entre a velha oligarquia rural oriunda ainda do período colonial, com suas práticas descritas por Vitor Nunes Leal em “Coronelismo, Enxada e Voto”, geralmente ligada a UDN e uma nova oligarquia, pós 30 , resultante das intervenções de Vargas nos Estados e que se identificava com uma vaga ideologia modernizante que lhe correspondia. Esta, porém, nunca aderiu ao PTB. Ficou leal, à margem. Acabou, em 64 apoiando o golpe militar, mas optou por ficar no MDB, do “Partido do Não”, até por incompatibilidades pessoais com os oligarcas da ARENA. Na abertura política esta gente toda desembarcaria no PMDB, dando-lhe uma rara vertebração nacional e expressiva capacidade de representação.
Com a Constituição de 88, aliada à nova configuração das populações mal acomodadas nos subúrbios das grandes metrópoles, com baixos salários e péssima oferta de serviços públicos, criou-se uma novo horizonte de massas na vida pública do país. O povo começou a votar e se organizar para ser votado. O PT soube recolher esta realidade e construir-se hegemonicamente sobre a sociedade brasileira nas eleições de 2002. Tinha, porém, pela frente a dura tarefa de associar esta hegemonia à governabilidade, contando, para tanto com o universo político disponível, com grande fragmentação de partidos e com a sombra do PMDB sobre seu Governo. Funcionou tudo muito bem, durante um tempo. Até que a crise econômica trouxesse no seu bojo a verdadeira realidade: um país com uma imensa maioria de gente muito pobre aglomerada nos arredores das grandes metrópoles, sem definições claras no campo do desenvolvimento econômico, numa economia global cada vez mais competitiva e financeirizada, com um Estado depauperado pelo pagamento de juros. Foi o que bastou para a desestabilização.
Cumpre , agora, saber o que fazer? Quais os cenários disponíveis até o final do ano? Quais as perspectivas da esquerda e do PT nas próximas eleições municipais? Como retomar as iniciativas políticas num cenário marcado pelo divórcio com um aliado estratégico de grande poder político e eleitoral e grande afastamento da classe média? Como reorganizar o espaço da esquerda e seus novos protagonistas diante do colapso do PT, cuja profundidade ainda é insondável? Como proceder, enfim, diante da mudança eventual da conjuntura, já advertida com a eliminação de Eduardo Cunha do comando do Centrão e, certamente, mais acentuada depois do desfecho do impeachment, para a reconstrução da esperança num futuro democrático?