Marília veríssimo Veronese
Diante dos horrores que vivemos no Brasil hoje, do sombrio futuro que se desenha, da ascensão conservadora que naturaliza a desigualdade – o relatório da OXFAM sobre o quadro geral das desigualdades no mundo, recentemente divulgado, traz informações contundentes e está sendo bastante comentado[1] -, tenho me perguntado sobre os rumos do mundo. Minha filha está em idade de “entrar no mercado de trabalho”. A expressão me causa calafrios, considerando que oito bilionários possuem a mesma riqueza que 3,6 bilhões de pessoas ou a metade mais pobre da humanidade, conforme o referido relatório. No Brasil, os seis maiores bilionários concentram a mesma riqueza que mais de 50% da população, ou mais de 100 milhões de pessoas. Nos últimos dois anos (2015-16), as dez maiores corporações privadas do mundo tiveram receita superior à de 180 países juntos.
Em Davos, as “autoridades” presentes garantem que se preocupam com este quadro… e se comprometem a tentar revertê-lo. Ufa, que alívio, né?! Imaginem se não se preocupassem e não se comprometessem!!!
No Brasil, a perda de direitos provocada pelos “pacotes” do governo golpista e ilegítimo é “comemorada” por quem perde os direitos trabalhistas, socioeconômicos etc., como se isso significasse alguma “economia” para o Estado. A mídia corporativa afirma repetidas vezes que um Estado deve ser gerido como uma unidade doméstica, “economizando e não gastando mais que ganha”. A falácia e o ridículo dessa comparação já foram apontados por diversos autores dos campos econômico e jurídico. Um deles, o economista Rober Ávila, explica que as funções do Estado dizem respeito a elementos fundamentais da vida em sociedade, como a segurança pública, o reequilíbrio distributivo e o estímulo à vida produtiva e saudável dos cidadãos. Não é racional deixar os cidadãos morrerem à míngua, sem emprego e sem serviços de saúde, para “equilibrar as contas”. Se fazem questão da comparação, seria mais ou menos como uma família dizer assim “querida, precisamos cortar despesas médicas. Nosso filho vai morrer, mas devemos ficar dentro do nosso orçamento, isso é o que importa”. Absurdos como esse são repetidos à exaustão nos jornais e na TV e ajudam a formar conceitos profundamente equivocados quanto ao papel do Estado na vida coletiva e na promoção da cidadania, bem como sobre inúmeras outras questões relevantes ao país.
Enquanto isso, segue o caos no Brasil. Aviões levando ministros da suprema corte caem, técnicos do TCU morrem afogados, o AVC de uma senhora serve para despertar e difundir o lixo chorumento que habita corações e mentes apodrecidos internet afora. Sobre isso, Jean Wyllys comentou hoje nas redes sociais que Reinaldo Azevedo, após estimular as hienas fascistas na internet e de jogá-las sobre tantas pessoas decentes (sobrou até pro Chico Buarque), agora pede que se contenham, fechando os comentários da notícia do aneurisma da Marisa Letícia e falando em “fascismo”, que casualmente ele mesmo ajudou a criar! É o quadro da dor sem moldura.
Mas enfim, quem nunca questionou os rumos do mundo com grave preocupação? Imaginemos um judeu na Alemanha da década de 1930… uma pessoa que prezasse a liberdade e a democracia no Brasil de 1964 ou no Chile de 1973… ou um estadunidense pacifista e beneficiário das políticas do welfare state no início dos anos de 1980 nos EUA. Apreensão total. Previsão de sofrimento e perdas. Então, nada de novo sob o sol.
Tenho lido muita coisa e, ao mesmo tempo, estado sem inspiração para escrever. O momento é semi-paralisante. Amigos, conhecidos, intelectuais, cidadãos – os que se preocupam com o mundo, claro, não os que vivem apenas para ganhar dinheiro, consumir loucamente no xópin e adquirir caminhonetes enormes e totalmente inadequadas para circular na cidade, apenas para provar seu poderio financeiro e ostentar – procuram saídas diversas desse labirinto sinistro em que nos metemos. Estão consternados, nós estamos. Alguns, segundo conversas e declarações, desacreditam do poder da mídia hegemônica para fazer – ou pelo menos fomentar – tanto estrago. Consideram que em tempos de internet, veículos comunicacionais como a revista Veja e o Jornal Nacional não detêm mais o poder que detiveram um dia. Discordo parcialmente deles: por certo não mais todo o poder de “informar” sem concorrência, mas ainda detêm muito poder.
O jornalista Lucio de Castro disse, com a autoridade de quem viveu no estômago da besta (redações importantes no país), que na escolha da pauta se define o que será “fato” e o que não será. Se são escolhidas dez pautas para detonar quem se quer detonar e nenhuma para explodir o bandido de estimação, o leitor no dia seguinte vai presumir que só tem escândalo daquele sujeito citado repetidas vezes, enquanto o outro é puro como um anjo, quando na verdade apenas foi poupado na pauta. E mostra como é enganosa a ideia de que “basta ler o jornal para saber do que está acontecendo”. Isso é, no mínimo, uma ingenuidade imensa.
Não há um lugar que eu frequente e tenha de ficar esperando – de salões de cabeleireiro a consultórios médicos, passando por bares e cantinas universitários – onde não haja uma televisão ligada na Globo. Faça o teste: preste atenção nisso. Se for pela manhã, depois dos jornais “noticiosos”, terá de aguentar Ana Maria Braga ou Fátima Bernardes. Se for a tarde, depois dos jornais do almoço, periga ter de encarar vídeo show ou sessão da tarde. E é aí que as pautas são definidas, é disso que o cidadão comum vai falar e nisso que vai acreditar.
Alguns locais, para dar um ar mais “sofisticado”, sintonizam na Globonews, e nos submetem aos horrores dos “comentaristas” e “especialistas” que só falam o que os entrevistadores – alinhados com a emissora, geralmente – querem ouvir. Com raríssimas exceções, quando eventualmente estes são pegos de surpresa; e há alguns momentos bem interessantes e até engraçados dessa natureza. Selecionei três memoráveis, os únicos que tive notícia ultimamente, e colei os links na nota de rodapé para que quem não viu, assista. Vale a pena![2]. Tais momentos até poderiam ser compreendidos como uma tentativa de construção de efeitos de pluralidade discursiva – “olhem como somos plurais!” -, mas a consternação/embaraço dos entrevistadores parece apontar para um “deslize” da produção dos programas, mesmo, que não esperavam a “rebeldia” do entrevistado.
Nenhum fator explica sozinho, obviamente, um fenômeno da magnitude do caos que vivemos hoje no país. Afirmar isso seria de um simplismo bárbaro. São vários os atores sociais, individuais e coletivos, envolvidos no processo. Já temos lido exaustivamente sobre o caso, várias análises vão tentando dar conta de explicar o (quase) inexplicável.
Mas ainda acredito que a mídia corporativa continue tendo um papel central, prestando um desserviço, gerando ódios, falsos moralismos, conceitos equivocados e, pior de tudo, mentindo descaradamente, não só distorcendo. O caso do suposto “tríplex do Lula” rendeu manchetes e reportagens durante meses, e quando, ao final do inquérito, outras pessoas foram indiciadas – não encontraram provas suficientes de que estivesse envolvido – a notícia ficou restrita aos veículos chamados “alternativos”, que para mim também variam bastante nos quesitos qualidade e independência.
Os exemplos são inúmeros. O JN, por exemplo, que meus pais e tios consideravam a fonte principal de informação e atualização nos anos 70, 80 e 90 (“o repórter”; “o noticioso”), ainda é tido como tal por grande parte da população brasileira, manipulada diuturnamente por vieses e distorções variadas.
No livro “Os Sonhos Não Envelhecem – Histórias do Clube da Esquina”, Márcio Borges narra a história de seu amigo José Carlos, militante pela democracia que morreu sob tortura nas garras do Estado brasileiro ditatorial. E de como o JN mentiu desbragadamente para encobrir esse crime, do mesmo modo que parcela significativa da mídia brasileira antes, durante e depois do período da ditadura militar. Transcrevo aqui parte do texto do autor, e nas referências vocês podem ver o título completo da obra, da qual indico a leitura.
“Uma farsa estava sendo montada pelos órgãos de repressão, tanto os oficiais quanto os paramilitares (como a famigerada OBAN: operação Bandeirantes) – que recrutava jovens da classe média alta para treinamento antiguerrilha e caça aos “comunistas”. Na verdade, José Carlos já estava morto. Tinha falecido devido à crueldade das torturas de que fora vítima indefesa, nas masmorras da ditadura. Só que eles nunca admitiriam isso, evidentemente. A primeira face da farsa teve a cara da censura e o vídeo da TV Globo. Eu estava com Marilton no apartamento que ele alugara em Copacabana e onde estava morando desde pouco tempo, recém-casado com a mineira Maria Carmem. Era hora do Jornal Nacional, mas só prestei atenção ao locutor Cid Moreira quando seu rosto foi subitamente substituído por uma foto 3×4 que tomou conta de toda a telinha e sua voz adquiriu um tom dramático e aterrador. Na foto reconheci imediatamente o rosto de José Carlos, enquanto a voz do locutor narrava para todo o Brasil uma mentira absurda, noticiando que nosso amigo tinha sido baleado e morto durante um tiroteio com a polícia, nos arrabaldes de… Recife, Pernambuco. Minha reação foi histérica e infantil. Dei um pulo da cadeira e comecei a bradar, brandindo os punhos na direção da imagem de Cid Moreira: — Mentira! Assassinos! Assassinos! Ele morreu em São Paulo! Torturadores assassinos!!! — e caí sentado, abatido pela revolta, pelo desespero, pelo medo, pela dor, tudo junto.”
Eu, que na época era criança ainda, me lembro bem dos “tons aterradores e graves” do Cid Moreira para narrar as coisas, fossem ou não mentirosas. E não tenho ilusões de que a realidade tenha mudado muito desde então. As ocultações continuam, os vieses manipuladores, a insistência com certas pautas e o abandono de outras, as marteladas diárias para criar “realidades” de acordo com os interesses midiáticos. E quais são esses? Os dos patrões, claro; no relatório da OXFAM, temos algumas pistas novamente.
A maximização do lucro, por certo, é o principal interesse das grandes corporações, midiáticas ou de outros setores. Ela se dá através de mecanismos como a evasão fiscal, o super-capitalismo dos acionistas (na década de 1970, no Reino Unido, 10% do lucro das empresas ia para os acionistas; hoje vai 70%) e o capitalismo da camaradagem (que inclui o controle dos estados-nação, usando o enorme poder e influência para garantir que regulações e políticas nacionais e internacionais sejam formuladas de maneira que possibilitem a continuidade dos lucros). O relatório conclui que estamos na era dos super-ricos, na qual a fachada enganosa camufla problemas sociais gravíssimos e muita corrupção. O estudo que gerou o relatório incluiu todos os indivíduos com patrimônio líquido acima de US$ 1 bilhão.
Os 1.810 bilionários (em dólares) incluídos na lista da Forbes de 2016 (dos quais 89% são homens), possuem um patrimônio de US$ 6,5 trilhões – a mesma riqueza detida pelos 70% mais pobres da humanidade. Só a África perde, todos os anos, US$ 14 bilhões em receitas em decorrência do uso paraísos fiscais por parte dos super-ricos – segundo cálculos da Oxfam, esse valor seria suficiente para prestar assistência de saúde para quatro milhões de crianças e empregar um número suficiente de professores para colocar todas as crianças africanas na escola. Ou seja: não há como defender a moralidade dessa situação indigna, a despeito dos esforços, inclusive de certa ex-esquerda (que gosta de falar em ex-querda), para anular a questão ético-moral a todo pano, usando Nietzsche e Foucault na empreitada, se necessário. Eles também gostam de botar a culpa de todos os males do Brasil, do mundo e da galáxia na conta do petê (Partido dos Trabalhadores), mas aí já é uma outra história.
Me limito aqui a comentar o relatório, relacionando-o com o papel da mídia na situação insustentável que ela ajuda a legitimar e sustentar. Enquanto louvam os super-ricos – dos quais os donos da mídia corporativa fazem parte – como seres plenos de mérito, espertos, espécie de “Midas” contemporâneos, criminalizam violentamente os movimentos sociais, e tem sido assim historicamente. Trecho de artigo sobre o tema, de autoria de Leopoldo Volanin, professor de história, dá conta dessa historicidade:
“A manchete estampada na Folha da Manhã de 26 de novembro de 1935, referindo-se a Intentona Comunista “Pernambuco e Rio Grande do Norte agitados por um movimento subversivo de caráter extremista”, já indicava um processo de lutas sociais e conflitos políticos e ideológicos entre organizações de grupos sociais oprimidos e os sistemas dominantes, detentores dos meios de comunicação. A Revista Veja de 26 de junho de 1985 traz em uma de suas manchetes “Férias ameaçadas – a supergreve nas escolas altera calendário”, apresentando negativamente a greve de professores para a população, omitindo, no entanto, dados fundamentais que os levaram à greve, como a desvalorização salarial do professor, o desgaste humano devido a quantidade de atividades que o professor se vê na contingência de realizar, o afetivo, entre outros”.
Aqui também os exemplos abundariam. Em relação aos movimentos sociais por terra no campo e por moradia nas cidades, a criminalização é intensa e diuturna na mídia hegemônica. O descaso com a função social da terra e da propriedade, a ausência de uma política de Estado séria nesses campos, que atendesse às necessidades da população mais pobre, é totalmente ignorada pelos veículos. Enquanto isso, os militantes que se organizam para fazer pressão para que se cumpra o que está dito na constituição federal são transformados em criminosos no senso comum do cidadão médio; este último, geralmente, leitor de jornais escritos e revistas semanais, além de telespectador de “noticiosos” de TV. Peguei os exemplos acima citados apenas para ilustrar que a coisa não vem de hoje, que já foi – e continua sendo – construído um imaginário conservador no Brasil, e que será muito difícil desconstrui-lo para erigir outro mais inclusivo e plural.
Isso ajuda a explicar aqueles seres ignóbeis que vemos nas redes sociais, xingando, ofendendo, banalizando o mal, desejando a morte de senhoras hospitalizadas em estado grave e muitos outros horrores, que praticam prazenteiros, certos de que são “gente de bem”. Que os céus me ajudem e que eu possa ficar segura, a salvo dessas gentes tão “distintas” quanto perigosas na sua tosca ignorância.
Referências:
ÁVILA, R. I. (2016). Não se administra um Estado como uma padaria. Disponível em: http://www.sul21.com.br/jornal/nao-se-administra-um-estado-como-uma-padaria-por-rober-iturriet-avila/
BORGES, M. (1996). Os Sonhos Não Envelhecem – Histórias do Clube da Esquina. São Paulo: Geração Editorial.
CASTRO, L. (2017) Piovani: posso te contar umas coisas que vi nas redações? Disponível em: http://agenciasportlight.com.br/index.php/2017/01/24/piovani-posso-te-contar-umas-coisas-que-vi-nas-redacoes/
VOLANIN, L. (2010). Poder E Mídia: A Criminalização dos Movimentos Sociais no Brasil nas Últimas Trinta Décadas. Disponível em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/760-4.pdf
OXFAM (2017). Uma economia para os 99%. Relatório disponível em: https://www.oxfam.org.br/publicacoes/uma-economia-para-os-99
[1] https://www.oxfam.org.br/davos2017
[2] https://www.youtube.com/watch?v=7ij4x7Dbvqo (Cartunista Carlos Latuff).
https://www.youtube.com/watch?v=K6kRpsoqeC8 (Professora Gilberta Acselrad).
https://www.youtube.com/watch?v=CxVnQxWraHs (Jornalista esportivo Tim Vickery).