Jaime Walwitz Cardoso

Nasceu em Bagé no ano de 1948, filho de José Ferreira Cardoso e Cecy Walwitz. Foi sequestrado e condenado em 1969 por haver participado do movimento de resistência à ditadura, escrevendo poemas durante a prisão. Banido do Brasil em 1971, foi expulso do Chile em 1973. Exilou-se na Suécia onde publicou seus primeiros poemas e participou de diversas iniciativas de divulgação da cultura brasileira. No livro Domínios, retoma a atividade literária após sua volta ao Brasil com a Anistia de 1979.
 
Cinzas
A chama desaparece,
Mas a luz e o calor resistem:
Brilha a estrela morta,
A brisa dormida ainda aquece.
Com correta medida,
Rigor e precisão,
Sempre algo se descobrirá,
Em meio ao frio e à escuridão,
Da luz e do calor, da vida.
 
Sintomático
A poesia
tem se preocupado muito comigo
Há um olhar úmido
Ensimesmado
Refletido nesta página
Tenho resistido ao sono
Parece que ganhei
Súbito medo
De mim mesmo.

Guillermo Rallo

Guillermo Rallo

Nascido em Montevidéu, começou a trabalhar com 15 anos e logo participa do movimento sindical, colabo­rando no jornal Época. Militando na resistência armada, é sequestrado em 1972, ficando 12 anos sob prisão. Em 1973 escreve uma coleção de poemas, publicados em 2014 como Cantos de amor y dolor, com ilustrações do colega de cárcere Elbio Ferrario. Reside em Porto Alegre há vários anos.
 
Hierro…
Hierro
cemento y hierro .
hierro
cemento y hierro
por todos lados .
Arena y hierro
y cemento y hierro
por todos lados .
Hierro
por arriba
hierro
por abajo
y cemento.
Cemento adelante
y atras,
y a derecha, y a izquierda,
y arriba
y abajo
y adentro,
adentro
estamos nosotros,
y adentro
estoy yo!
 
El tiempo sigue adelante…
El tiempo sigue adelante
con su marcha inexorable
(y yo aquí…)
y en los diarios
o las radios
el mundo vuelca
miles y miles
de noticias cada dia,
susesos que conmueven
al orbe
o simples chimentos
de la aldea
(y yo aqui…)
hay casamientos,
nacimientos ,
cumpleaños ,
muertes,
risas,
llantos ,
huelgas ,
conflictos ideológicos ,
guerras ,
armisticios ,
hambre ,
abundancia,
siempre mal repartida
(y yo aqui…)
tantas cosas por ver,
por conocer,
por vivir,
por llorar,
por palpitar
( y yo aqui…)
 
Cruzó la paloma …
Cruzó la paloma
en la noche
la reja de mi celda,
volo a traves
del horizonte sin nombre
de mis sueños
y llegó hasta ti
con un mensaje en el pico
mi amor.
 

Guilem Rodrigues da Silva

Guilem Rodrigues da Silva

Resistente à ditadura, foi refugiado político em Montevidéu durante dois anos, sendo o primeiro asilado da América Latina na Suécia em 1966. Condenado à revelia em 1968, participou ativamente dos trabalhos de solidariedade à América Latina em Lund – Suécia, sendo eleito vereador e Juiz do Tribunal de Contas do mesmo município. Escritor de 15 livros, escritor de letras de canções, tradutor de peças teatrais para o Teatro Real de Estocolmo, tradutor de vários filmes do português para o sueco e vice-versa, e tradutor de poemas do francês para o português. Detentor de inúmeros prêmios na Suécia e na França, entre os quais ”Pour l´ensamble de ses oevres poétiques” Université de La Sorbonne e ”Medaille de la Academie des Arts Sciences et Lettres” em Paris, recebeu da Prefeitura de Rio Grande (RS) o título de Comendador da Ordem de Silva Paes.
 
A jaula
Hoje é o aniversário da solidão
Sem alegria nas faces maceradas
As roupas da prisão rasgadas
Em seu mundo de doze metros
De distância por doze de largura
E um longo corredor ao sol
Sol que nasce às três horas
E morre às quatro horas
Hoje faz aniversário a solidão
Sem alegria nas faces da tristeza
Ninguém na Ilha das Flores
Atreve-se cantar à liberdade
Inúmeros olhos famintos
Esperam que o vento sopre
O vento é livre
Ninguém pode obrigá-lo a confessar
Nem pode ser torturado
Mesmo que sopre da esquerda
O tétrico alfaiate chega
O indescritível alfaiate
Que procura fazer uma veste
De prisioneiro para o vento…
(música de Georg Riedel, o compositor vivo
mais conhecido da Suécia)
 
Claros sonâmbulos da noite
Mulher amada, nós os que saímos
Te queremos mais do que tu pensas
Na ausência
Temos seguido de perto
Tuas tristezas
Tuas poucas alegrias
Na distância
Temos estado presentes
Dormindo duramente em cama alheia
Nunca nos acostumamos
Aos arames farpados das fronteiras
À falta dos sabiás e das palmeiras
Saudade é para nós mais que palavra bela
Contém inverno céu cinzento branca neve
Olhares esculturados nas janelas
Somos claros sonâmbulos numa noite longa
Voltando sempre à tua cama
Mas ao chegarmos perto
Quase tocando teu seio
Manhã estranha nos desperta
Em leito alheio
Ainda e sempre em viagem
Mulher amada
Nós os que saímos
Não te amamos menos
Do que os que ficaram
 
Com desesperada raiva
Mudas minhas mãos
Meus pés dormem inquietos
Gélido fogo sobe em minhas pernas
Consumindo meus joelhos
Procuro pensar nos pássaros
Acuso-os de terem deixado de cantar
É fim de agosto
O verão na Suécia foi miserável
O fogo continua sua escalada
É como se eu afundasse
Nun desses lagos gélidos da Lapônia
Recordo Veríssimo
Gato preto em campo de neve
Meus joelhos não existem mais
Joelhos surdos insensíveis
Golpeio meus reflexos
A culpa é minha
Ninguém espera quinze anos
Seria impossível parar
Esse passar de carros sobre mim?
Carros de combate
Carros de passeio
Barcos de guerra
Barcos à vela
Uma vela se acende
Para quem?
Para mim?
Quem morre em Rio Grande?
Quem morre em Lund?
E esse malito gelo que sobe
Eu subi por muitas escadas da vida
Senti muitas mortes
Chorei muitas prisões
AQUI ESTOU MALDITOS!
PRETENDO ESCULTURAR
EM GRANITO IMPERECÍVEL
MINHA RAIVA
MEU GRITO
PARA QUE TODO AQUELE QUE PASSAR
POR ESTAS RUAS DO EXILIO
POSSA LER SOBRE O CRIME
COMETIDO EM NOSSAS ALMAS
 
Sobre o Brasil minha pequena
(para minha filha Zoyra-Lya, nascida no exílio)
Sobre o Brasil quero contar-te
minha pequena
a terra bem amada
cheia de paz de sol e de beleza
onde uma generosa natureza
desenhou rios vales e montanhas
No Brasil minha pequena
São todos felizes
Ali há justiça trabalho pão e escolas
A miséria e o analfabetismo
já não existem pertencem ao passado
Nenhum estudante desaparece nas cidades
Não há mais presos políticos
e reina a liberdade
As companhias estrangeiras não são mais
proprietárias
dos nossos enormes recursos naturais
já não há mais golpes de estado nem
torturas
e em suas casernas e quartéis os nossos
generais
esqueceram há muito os atos institucionais
Para ti minha filhinha que nasceste no exílio
e brincaste na neve longe de nossa Pátria
eu escrevo estes versos cheios de esperança
oxalá quando os leias no entardecer dos meus anos
não mais sejam quimera nem vã utopia
mas se eu te minto perdoa
quero apenas que durmas
embalada em meus sonhos

(escrito no duro ano de exílio de 1968)

 
Variações sobre um tema brasileiro
I
Quem te encontrará entre essas pedras
Para quem será teu sonho areia úmida
Passos em tua busca
Donde ninguém lembra tuas pisadas
Para ti as balas
Que te buscaram na morte
Para ti o medo da noite
Soturno açoite
Donde a inenarrável dor se esconde
Ah! E quando voltares teu olhar
Morto estará o deus da tua esperança
Para ti o inverno
Esperavas algo diferente em tua ânsia?
II
Como um fantasma
As recordações te buscam
Sorrindo às vezes
Chorando às vezes
A luta na fronteira
As lágrimas na estação
Eu que nunca vi meu pai chorar
Eu o recordo
Entre o milharal frondoso
Para cada melancia
Ele tinha um nome
Para cada arbusto
As laranjas douravam nossa existência
Até o dia quando os defensores da Pátria
Escureceram o sol
Proibiram a chuva de acariciar o milharal
Obrigaram-nos à inércia
E nós
Pobres seres
Vimos nosso sorriso ser encarcerado
III
Tu que estavas presente
Quando os uniformes marcharam
Tu que gritaste teu desespero
Tu que levantaste tua mão
Como bandeira
Foste atingido por cem balas
Que perfuraram tua alma
Nesta noite agora e aqui
Ponho teu nome
Na praça mais bela
Da minha terra natal
De maneira que ninguém
Esqueça teu sacrifício
Nem o teu nome
Tu meu amigo de infância
Ainda hoje
Ouve-se o teu riso contagiante
Nas ruas de Rio Grande
Eu sou teu poeta assassinado
Lembras-te de mim em teu céu?
A morte veio no mês de março
Pela noite
Quando ninguém esperava
Quando as crianças dormiam
E com angústia mantinham
A fome em suas mãos
Nos campos dormia o trigo
Embalado pela suave brisa
As estações de rádio
Estavam povoadas de botas militares
Tu e eu estávamos despertos
Lembro-me bem
Mas quem foi assassinado nessa noite
Foste tu?
Fui eu?

Glênio Perez

Jornalista, político, poeta e ator, Glênio Perez destacou-se na oposição legal ao regime militar e na soli­dariedade aos presos políticos. Eleito três vezes vereador em Porto Alegre, teve seu mandato cassado no começo de 1977. Colaborando nos principais jornais do estado e em diversas revistas, foi também executivo de grupo de mídia e organizador de eventos culturais. Fundador do PDT, foi eleito vice-prefeito da cidade, cujo largo central leva hoje seu nome. Mesmo sob severa perseguição, publicou “Caderno de noticias”.

Glênio Perez

Interrogatório
Como fazes
para exercer teu ofício?
Beijas também tuas crianças
quando vais para o trabalho?
E quando acordas de noite,
lembras o que foi teu dia?
Que gosto é que tem a carne
nos braços de tua mulher?
Quando a cobres com teu corpo
e ela geme – te perturbas?
Tua mãe passando o ferro
para passar tua roupa
não te inquieta ante o perigo
do choque ou da queimadura?
Quando ficas muito tempo de pé
num só lugar não te cansas?
Dormes num quarto sem ar
ou frio como uma geladeira?
Apagas todas as lâmpadas
para descansar teus olhos?
Comes, sempre, muito bem
mesmo com tanto trabalho?
E qual a sensação
de receber mensalmente
a paga do teu serviço?
Tu amas, comes e dormes
apesar do teu ofício?
De que barro te fizeram
– torturador –
afinal?
 
Rua Pantaleão
Permitam que relembre aqui uma rua
Pantaleão Teles
– hoje Washington Luiz.
Havia um bonde amarelo
que imitava Porto Alegre
com sua Rua Pantaleão:
quando chegava na Bento
(Martins) dava volta
virava o bancos de costas
para não ver o putedo…
E a Pantaleão, ali, firme:
um bordel ao lado doutro
prostitutas marinheiros
soldados e estudantes
os barcos
Ponte de Pedra
carro-motor
futebol
sobre um campo de carvão
da Usina do Gasômetro.
Um dia a puta chamou:
– você menino moreno
compra uma ceva pra mim?
comprei voltei entrei nela
– a primeira da minha vida.
Quando um lençol de cimento
cobriu a Pantaleão Teles
pensei que a prostituição acabara em Porto Alegre.
Para logo descobrir
que a antiga Pantaleão
é agora muitas ruas
da cidade
e do Brasil.
 
Tomara que tu morras
Se grita o meu poema
a fome dos roubados
morram ele
e seu tema
na hora da comida.
Podre realidade
a que esculpe esta poesia
da qual sou intérprete
e inimigo.
– Tomara que tu morras
Com meus versos.
Não quero ser poeta
de torpezas.
 
Retrato de pintor
Permiti
senhoras e senhores
que vos apresente
a mais amável
a mais terna
compreensiva
E sofrida pessoa que conheço
já está morta
(pior para a cidade
que vai morrendo
sem memória de Edgar Koetz
seu amante e pintor)
tão delicado de gestos
tão desligado na terra
do que não fosse a beleza do perene
no coração do homem libertado.
Por exemplo: foi a última pessoa que deu festa
para saudar o nascimento de uma flor
no vaso de lata de azeite no seu pátio
e que certa vez no Jockey passou fome
recusando-se à disputa do buffet.
Ele achava
– era artista o meu amigo –
que a todo homem corresponde
naturalmente
o direito de comer.
Edgar amava com suas cores
mulheres de ateliê
casas nas ruas
o rio
as praças as crianças
mas o traço principal de sua grandeza
era a suprema delicadeza em cada gesto
tanto que um dia
chegando de repente
Vi Edgar a conversar com as tintas.
Ele dizia:
– Desculpai que vos misture
Senhoras
Ocorre que já está amanhecendo
E eu tenho de pintar
A Aurora.
 
Uma canção para a noite do exilado
É preciso mais:
é absolutamente necessária
alguma experiência de saudade
acrescentada à possível sensação
de uma planta arrancada pelo caule
E não seria demais
a lembrança dos seios que perdemos
da mãe e das amadas para o tempo
Para entender-se o exílio
há que um dia ter-se dormido
sob um lençol de céu
que não é nosso
e sobre uma terra-
colchão que não é ventre
Ave submarina
um ser fora do cosmos
árvore no ar
barco no chão
ou feto na proveta
assim morrem na vida
os exilados.
Muitos há suspirando pelo fim
– tarifa que lhes cobram para a volta –
outros contam o tempo em grãos de angústia
chorados na ampulheta da saudade
Mas sabemos:
estão todos acordados
enquanto nós
os exilados que ficamos
fazemos para eles
a cama do regresso.
 
Aquarela do Brasil
Honório Nardin
esse teu quadro
me faz um mal
ao coração
que nem te conto.
Ou conto, sim:
— Na moldura, entardece
(há quanto tempo o sol não amanhece?)
na praça o dia morre
uma menina corre
rodando um aro
na areia do jardim.
Que mal me faz agora
Honório
o teu poema em cores
que foi sempre
paraíso de amostra na parede.
Porque essa praça
de teu quadro, Honório
me lembra outras
longe, neste mundo
onde, na hora morna
em que a luz reflui,
brincam crianças que não têm país.
Pequeninos brasileiros exilados
pelas praças do mundo em debandada
que existem
correm
brincam
— como as nossas –
mas são filhos e netos de exilados
não conhecem o céu que lhes pertence
nem as praças e a terra que são suas.
 
Brava Gente
Mulheres
sois perigosas
guerrilheiras desarmadas
De noite agitais o sono
pesadelo dos tiranos
de dia agitais o lenço
da paz pelos torturados
— De onde tirais a força
para lutar com palavras
e fé contra as ditaduras?
Por certo do vosso ventre
onde se gera a criança
livre que o mundo terá
Quando não houver exílios
nem prisioneiros de ideias
algozes espancadores
espiões da violência
exploradores de homens
– que fareis, bravas mulheres?
Descansareis da guerrilha
pela Anistia no mundo
embalando em vossos braços
os filhos da Liberdade.
 
História para cordel
Senhor Doutor Sobral Pinto
que gosta de escrever cartas
aos poderosos do dia
defendendo os inocentes
fique sabendo
por estas mal traçadas linhas
que não creio em suas fotos
nem na certidão de idade.
— Por favor, não se apoquente
(Epa, isso é palavra de antanho
e antanho também já era…)
não se põe aqui em dúvida
a certeza do que diz
e a beleza do que faz.
Ocorre que há muito é noite
no Brasil: quatorze anos
(nem na Antártida é tão longo
o sono do amigo Sol)
e o senhor sempre na sua
gritando pela Justiça
mostrando os torturadores
criticando as ditaduras.
Por isso não acredito
nessa idade que lhe dão.
É uma pena que eu não seja
um poeta de cordel
para contar num livreto
essa história nunca vista
de quem – por ser justo e bom –
vai ficando cada dia
por condão de sua madrinha
a Senhora Liberdade
em vez de velho –
mais moço.
 
Memória
o escuro
da sala
teu nome
na tela.
Tua lembrança
nas palmas
das mãos
que se encontram.
Teu martírio lembrado:
teu nome no filme.
Teu nome
na tela
ilumina
a memória
do teu sofrimento.
A censura não pode
cortar a lembrança
de um tempo de horror
que se pode escrever
com muitas palavras
ou com teu nome
Vladimir Herzog
 
Nem favela
Um dia
Velha Restinga
visitei o teu colégio
— Tu sabes o que achei?
piolho e sarna
Restinga
nos cabelos das crianças.
Elas não passam na escola
como os meninos que comem.
Já nascem com a cabecinha
lesionada pela fome.
Velha Restinga
ainda doem
teu barro nos meus sapatos
e a memória dos casebres
residência da miséria.
Te falta tudo
Restinga
porque nem favela és
te falta um morro de pobres
para ter ricos aos pés.
Mas não te falta um dancing
com meninas de dez anos
nem cachaça nos balcões
das tendas e armazéns.
Tens demais algumas coisas
brigas facadas pobreza
tristeza e merda nas ruas.
Mas tu e eu bem sabemos
quanto te sobra Restinga:
indiferença e injustiça
bem mais velhas do que tu.
 
No exílio, em Berlim
O metrô
de Berlim Ocidental
há muito tempo
serve aos alemães
leva crianças aos colégios
empregados às fábricas
funcionários para os escritórios
e certamente
amantes e amadas
para a hora do amor.
Numa tarde
de maio de 1976
o metrô de Berlim
passou por cima
do corpo de Maria Auxiliadora
estudante
exilada
no Chile
e na Alemanha.
Dora Dorinha ou Doralice
mineirinha
agora no exílio
para sempre.
 
Para Sônia Prisioneira
Sônia: dez anos!
Quase quatro mil dias na prisão.
tu estavas livre
presa à enfermaria
dos hospitais
onde trocavas
teu amor aos outros
pela escassa ração
de pão aos teus.
Bendito pão
– pois ganho em liberdade –
dividindo o que tinhas
para dar.
Cada noite
te pagava a faina
com beijos
da tua filha
E da tua mãe.
Não do marido
que teu homem fora
também jogado
às lajes da prisão.
 
Quando o rio mudar de rumo
Um dia esse rio que passa
o braço das suas águas
na cintura da cidade
e depois vai ser lagoa
e dormir enfim no mar
por artes de seu destino
de ser caminho no tempo
vai navegar para trás.
As suas águas que levam
barcos e homens aos peixes
também são de retornar:
foram rio-lagoa-mar
serão mar-lagoa-rio
E esse rio vai ser mais
do que foi desde que é rio:
uma avenida de águas
para a volta dos banidos
regresso dos exilados.
E a Senhora dos Navegantes
vai bendizer o Guaíba
como o faz em fevereiro
enquanto o povo fará
– por então ser soberano –
a festa de Iemanjá
estender-se o ano inteiro.
 
Raul Sendic
Uma grossa parede
de vidro entre nós dois
no Presídio Central del Uruguay
Era um tempo de respeito
aos prisioneiros
e parecias cansado
não ferido
Estava contigo
a Topolanski
Uma feia campeã
de pontaria
e outros mais
tupamaros
na prisão.
Te vi, Sendic
com esse jeito
de tímido colono
dos que preferem
por dentro ser leão.
Quanto tempo, Sendic,
desde aquilo?
Houve a libertação
Do cônsul brasileiro
um túnel em Punta Carretas
para a liberdade
a morte de Mitrioni
e esse pesado véu
da ditadura
que desceu também sobre vocês
no Uruguai.
Caíste com um tiro
na boca em Ciudad Vieja
e nunca mais se ouviu
falar de ti.
Em que tumba
ou masmorra
te enterraram?

Flávio Koutzii

Flávio Koutzii

Natural de Porto Alegre, dedicou-se desde adolescente ao ativismo político nas frentes estudantis, passando desde cedo a militar no PCB e sucessivas cisões. Persegui­do, buscou refúgio em países europeus e da América Latina, militando finalmente na Argentina. Sequestrado e conde­nado, cumpriu vários anos de pena naquele país. Após cam­panha internacional por sua liberdade e a redemocratização argentina, retornou ao Brasil, onde militou no PT e exerceu diversos cargos parlamentares e executivos.
 
Te deixo hoje…
Te deixo hoje,
com um abraço,
com todo o carinho,
Com a presença da memória,
Com a saudade de ti,
Com a saudade do “Flaco”
Pensando nesses imensos territórios
da vida e do amor,
pensando nas possibilidades, potencialidades,
e nas continuações,
pensando no que não pôde ser,
pensando no que deveria ser,
pensando no que será…

Emanuel Medeiros Vieira

Emanuel Medeiros Vieira

Natural de Florianópolis (SC, 1945), formado na UFRGS em Direito, 1969, participou ativamente da militân­cia estudantil. Escritor de romances, poesias e memórias, com vinte e três livros publicados, participou de mais de cinquenta coletâneas no Brasil e no exterior. Membro da AP (Ação Popular), esteve preso durante meses na OBAN (Operação Bandeirantes) e no DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social), em São Paulo, seguindo posteriormente ao exílio. Foi vendedor de livros, editor, professor e redator de discursos. Seu romance “Olhos Azuis – Ao Sul do Efême­ro” (2009) -, foi contemplado com o Prêmio Internacional de Literatura, concedido pela UBE (União Brasileira de Es­critores).
 
Desterro
Desterro cumpriu-me
e cumpriu-se.
O rio começava atrás de casa
(como eu),
e foi embora – afluentes.
Vento sul, Campo do Manejo, Rita
Maria, Rio da Avenida, Miramar,
bala queimada, Catecipes, Praia do Muller,
procissão do Senhor Morto, Cine Rox,
gibis, Grupo Escolar Dias Velho,
Chico Barriga D’Água, paixão camuflada pela menina
da Rua de Cima – ela nunca soube.)
Só enuncio: acumulo – sobrecarregado.
O rio foi embora.
Casa demolida, mãe na soleira da porta, pitanga no
quintal, regata na Baía Sul, matracas, turíbulos, trapiche da
Praia de Fora, gaita-de-boca, groselha, tainha frita,
fogão de lenha, beliches, pé de amora.
Perdeu-se o rio: não sei do seu delta.
Perdi-me: tiro certeiro na gaivota.
A rua pequena, era a maior do mundo – coração.
Desterro inunda-me:
outrora/agora.
 
Masmorras
Clandestinidades, fugas na boca da noite
Dormir cada dia num lugar
Pensões, pulgas, esconderijos, dinheiro contado, pratos
[feitos, uma pinga para o consolo provisório.
Palavras apenas – e foi na carne que doeu.
Tudo já foi ditado, mastigado, expelido.
Foi?
O Primeiro Interrogatório.
O Segundo Interrogatório.
O Quarto Interrogatório.
O Décimo-Quinto Interrogatório
(De manhã, de tarde, à meia-noite, às quatro da
[madrugada).
Choques elétricos, pau de arara, “cadeira do dragão”,
[“telefones”, palmatórias.
O verso de T.S.Eliot na cabeça:
“As palavras se movem, a música se move
Apenas no tempo: mas aquilo que apenas vive
Pode apenas morrer. As palavras após a fala, alcançam
[o repouso. (…)
O corpo: não.
Um bafo de morte na soleira da porta.
(O processo, a burocracia, togas pretas, auditorias, fardas.)
E um dia ir embora para plagas não conhecidas
Um dia, voltamos.
(Só restará o oblívio Alguém se lembrará?)
 
Exílio
Um Atlântico nesta separação:
batido coração segue as ondas de maio.
Desterros além da anistia,
para lá dos poderes.
Velas ao vento,
não bastam os selos,
a escrita crispada.
Queria os sinais da tua pele,
vacinas, umidades, penugens,
pêlos perdidos no mapa do corpo,
o olhar suplicante, soluços.
Jornadas:
missas de sétimo-dia,
retratos arcaicos.
Outro exílio:
sem batidas na boca da noite, armas, fardas, medos,
clandestinidades.
Sol neste retorno:
casa, guarda-chuva no porão, caneca de barro,
álbuns, abraço agregador,
cheiro de pão, gosto de café,
o amanhã junta os o dois nós da memória,
um menino e o seu outro: estou melhor feito vinho velho.
Pai
Meu pai cavalgava
abraçado à sua dor oculta.
No crepúsculo: só – na soleira da porta,
cadeira de balanço, boina, olhar azul.
Antes do assobio da Inelutável
foi para a montanha.
Como um elefante em despedida
quis morrer sozinho.
Quando chegar a hora
farei como meu pai:
subirei a montanha,
 
Madona
Senhora das horas inconclusas
Senhora do torto parto
do porto inalcançável
Madona da ânsia infinita
vã peregrinação
Senhora do desassossego
Conceda-me o bálsamo do olvido
passagem silenciosa
travessia sem medo
Senhora do inútil tempo – que continua queimando
Senhora da veloz juventude
Madona de todas as velhices
Outorga-me o estatuto da ausência
 
Planalto
O Planalto é sempre –
nós é que passamos.
Ulisses, oráculo, reaparece
(num tempo que não quer profetas),
Penelópe só tece dúvidas, eclipsado o sagrado:
mercantis propósitos – só.
O Planalto é sempre
– nós é que passamos.
A memória: nossa matéria
– como lidar com tanto esquecimento?
Carece preparar os rituais de retorno:
suado feixe de
carnes/emoções?
(Qual a sua forma?)
Aqui irrompeu o pranto,
não a redenção.
Expulsos do paraíso: vagamos.
Rebanhos eletrônicos, restos de pompa,
retóricas cartorárias, tecnocratas com dentes de ouro
[– e celulares de última geração.
O Planalto é sempre
– nós é que passamos.
Mas cansou-me o pranto:
O sol inunda esta manhã
pão quente, cheiro de café torrado,
o poema arranca algo do efêmero,
fundo-me no esquecimento
(Também somos feitos daquilo que perdemos.)
Deus faz que me esquece:
depois reaparece.
 
Hiroshima
Na manhã dominical,
a bomba de Hiroshima,
a bomba,
tão clara,
exata,
cirúrgica.
Bomba geométrica,
certeira.
A bomba vem do céu,
mas não é ave.
A bomba vem de cima,
mas não é Deus.
Desce fumegante,
a bomba não negocia,
a bomba não conversa,
célere, impositiva,
acerta o alvo, cai,
a bomba queima, a bomba dissolve,
a bomba dilacera.
Alguém nasce no ano em que ela cai,
e pensa naquele 1945:
a surpresa daqueles milhares de olhos,
à espera do lúdico no matinal domingo,
parques, igrejas, passeios, visitas familiares,
percebendo – sem tempo para a reflexão –
a chegada da não-ave,
emissária de Tanatos,
que cai, cai,
na paisagem limpa (cogumelos atômicos).
 
Homem diante do mar
Homem diante do mar
(instância interrogativa).
Precária caravela.
E finita: a vida
Trapiche:
o homem só contempla
(desembarcado).
No estatuto da memória:
ele se interroga, nunca mais a ação.
No porto: a rapariga rosada estendeu um lenço.
Limo: foram-se a juventude, o trapiche, a rapariga, o lenço.
(Mátria: sou apenas um homem diante do mar.)
Desterro: instante convertido em sempre.
O homem desembarcado só pode viver de memória:
[diante do mar.

Eloy Martins

Eloy Martins

Catarinense de Laguna, já na década de 1930 Eloy Martins integrava o movimento sindical metalúrgico e os quadros do PCB em Porto Alegre. Reiteradas prisões obri­gam-no a buscar trabalho em várias cidades, onde se man­tém na luta pela democracia, pelo petróleo e pela inclusão do Brasil nas tropas anti-nazistas. Consegue, após a rede­mocratização do país, eleger-se vereador em Porto Alegre. Dirigente operário em nível nacional e internacional, após o golpe de 1964 viveu vários anos na clandestinidade, sendo sequestrado e passando vários anos no cárcere a partir de 1971. Escreveu suas memórias políticas, onde descreve as sevícias sofridas na mão dos algozes.
 
Boa noite
Boa noite companheiro,
Diga ao menos boa-noite,
Quero ouvir você cantar.
Lá lá lá Lá lá lá lá
Boa noite companheiros,
Mais um dia que passamos,
Sustentando a nossa luta, para o homem libertar.
Lá lá lá Lá lá lá lá
Boa noite companheiros,
Confiança no futuro,
Pois estamos construindo,
Um amanhã cheio de sol.
Lá lá lá lá lá lá lá

Athanásio Orth

Nasceu em Tapera, RS, onde realizou seus estudos básicos. Na convivência do Seminário da Cidade de Viamão, conheceu e adotou a Teologia da Libertação, forte movimento religioso dos anos 1960. Por suas convicções democráticas, passou a integrar grupos secretos de resistência ao regime autoritário vigente no Brasil, sendo perseguido, sequestrado, torturado e condenado. Na prisão, este filósofo e professor escreveu e publicou seu livro de poemas “A companheira e Duas Três Coisas Vistas da Ilha das Pedras”, vindo a falecer em acidente rodoviário em 1978. Na região de origem, dá nome a escolas, praças e bibliotecas.
Encantamento
Nos olhos do teu olhar
enxergo minhas feições
impregnadas de você.
Manso e suavemente
triste – o olhar.
Estes olhos ocupados
na descoberta de você,
ainda se multiplicarão
em pesquisa e admiração
do ser e do acontecer.
Depois nós dois miramos o longe:
construções e chaminés,
a urbe estrangulada
vetada a meus pés.
Expectativa: fundir
ilha e cais da estiva
dirigir o movimento…
Lento, porém contramão,
domingar uma barca
carregada de rosas.
Perdela jamas
ternura, y cosas
que vivan su muerte.
Entonces está prohibido
matar/matar
a un hombre nuevo.
 
Domingo, se não chover
verei a ave de olhos inesgotáveis
pousar seu corpo no meu.
Vezes incontáveis configurei
as partes e o conjunto. A boca
ávidos trançamos em beijos.
Quando recordo, a noite
se faz imensa com o rio
me invadindo de nostalgia.
Então ouço companheiros
em sonhos de lamentação.
Domingo, salvo imprevisto,
enlaçarei em lábios vertentes
meu recado mudo e concreto
com os cinco sentidos sentirei
a presença lasciva da primavera
ao entrelaçarmos os braços
no toque libente
de pólos que se atraem.
Tudo quieto por aqui
só a melancolia da paciência
ao contemplar os clarões
que da fábrica se espalham na água
e umedecem meus olhos de tristeza.
Domingo se você quiser
seremos dois e um e mais
como somos muitos agora.
 
A balada pungente da ausente
trinca e tranca o pranto
no tristonho-risonho dos olhos.
No sinistro da cela, ao pé
da cama., Neruda sempre redito
(puedo escribir los versos
más tristes esa noche)
me desespera em intenções de antes.
Tenho pensado, careço dizer,
um réquiem por Chael
que dure exato o silêncio
e um baião baiano, tributo
a cantigar em novembro
quatro de cada ano.
Imaginei monumentos estilizados
aos tombados no risco de esculpir
a manhã plena de dia.
Compus em madeira fragmentos
à militante, mas Vera Lígia
ainda não os leu e já
se extraviaram e são outros
e são desejos de talvez
virem a ser inventos
de mais encanto, porquanto
o envolvimento em novas malhas
da formosura cresce o labor.
 
De Longe e de Perto
Chispas se levantam do levante de Ática
e atiçam ódio contra a Amérika.
Da contextura brutal do presídio
brota uma alvorada de ternura e dureza.
Sob os cassetetes se volatizam
sonhos remotos, mas dos mortos
sangram gritos de pantera.
Sovados na teimosia de negar as grades
os punhos deflagram a ousadia de ser.
A coragem de carecer “o riso de um amigo
e a voz macia de uma mulher”
e de tombar sob escombros de gás
madruga grávida de primavera.
Corpo crivado à bala, Sam Melville
se dissipa em fulgência de saber:
“Há sutis surpresas à minha frente
mas eu me sinto seguro e forte”.
 
Nas palavras suprimidas
A alegria de debate com o ódio.
Dos quadrantes da terra informam:
requinto central do capital
e camaradas torturados
metralhados na nota oficial
segundo voz de prisão.
Sem mediação a condição inumana
se mistura com fome e fama
de bem-aventuranças e proteínas
e de gingas e danças com meninas,
luzes roxas sobre as coxas
pó e cisco na tigela.
Ninguém vela a criança
achada morta na favela.
A burguesia exporta
cresce a renda bruta,
cada vez mais enxuta
a marmita do servente.
 
77 vezes 7 vezes
Contra grandes estandartes
setenta e sete vezes
sete vezes se desejou
enfarte dos patrões…
benedictus
pecata mundi
Contra as chaves da opressão
setenta e sete vezes
sete vezes danados
clamamos antes de trancados…
miserere
fructis ventri
Contra os horizontes abertos
setenta e sete vezes
sete vezes usaram em vão
ferrolhos e tramelas…
ora amem
hora morti nostri
pérfidos e fétidos
eles vão apodrecendo em feliz ilusão.
 
Do continente sul
Una noche envejece
El destino de la América:
Huevos de arañas
Pájaros muertos
E insetos tontos
Em la calle central.
Las tripas llenas de hambre
La toza llena de torpezas
Aunque parezca mentira,
Proezas de la misma hazaña,
Contra las cuales se assoma
La artimanha de fuziles
Discursos y canciones miles.
No panorama soturno
O triste pindorama
Que ficou para submundo,
Com o auri-verde perdão
Da pujança, que cansa os olhos
Que sabem sobre as contradições.
Esta é a véspera
Pro proleta proletária
 
A fome fomenta a morte…
A fome fomenta a morte
mordendo mansamente
a dor da vida desprovida.
A dor dormida mais se rebela
em cada nova ferida.
nada será como antes:
um dia a rebeldia eclodindo,
aves de rapina alçando vôo
derradeiro em mergulho fatal
ao orgulho nas águas estagnadas
de peixes podres emersos
e escombros submersos
carcomidos-fedidos idos,
contra a granada arremessada
o tiro repentino assassinando,
contra a surpresa um quartel
perdendo a defesa, ao estalido
o sentinela esquecendo a ressaca
babaca da própria sina…
Mas a morte morde
a fome fomenta
a dorme até
um dia a rebeldia.
 
A burguesia velejando
A burguesia velejando
à tarde mansa
não se cansa de usufruirfluir líquido do lucro.
Navios que entram lentos pelo canal
já se agitaram contra outros ventos
e as ondas que convulsionam contra as pedras
voltam e se amainam no rio
como os marinheiros se acostumam
aos ares de muitos mares.
Braços proletários cujo trabalho
vai incorporado neste frete
alaram-se aos que aqui sofrem algemas
exercendo protesto noutras terras.
Já aconteceu saudar-nos
um navio de bandeira vermelha
emitindo acentos sonoros.
Já aconteceu em manhã de sol
as gaivotas espantadas em bando
lembrarem poetas de cantares
cantados e sofridos em portos
sem portas, em minas e cantinas.
 
Apesar de esbordoarem o rosto…
Apesar de esbordoarem o rosto
posto em algemas no pó da rua
apesar de provar aos berros que o corpo
é ótimo condutor de eletricidade
apesar dos vergões no dorso
e dos dentes que se esmigalham
apesar da coronha na cabeça
e a sanga de sangue entre os cabelos
apesar de trancado entre paredes
ferros e chaves ou cercado
de águas e guardas
apesar da dor que mais dói,
o pior de tudo: pôr mudo
a quem cabe pontear.
 
Braço erguido em punho…
Braço erguido em punho
como se rompesse grilhões
a alegria nos contagia, ele
deslancha rumo ao nascente.
Pega a voga companheiro,
Segue antes. Já viste
que o cativeiro não resiste
à chispa em riste madrugando
Conosco no bojo da liberdade.
Mais que nunca sorve agora
a bebida amarga dos operários,
prova a taça até o fundo
e do gosto a suor faze
o nosso momento.
Pelo descampado adestra a mira
e o dedo no gatilho,
guarda a pólvora e o sarilho
para a hora propícia.
Lembra de empunhar malhos
Para derrubar os deuses.
Não coleciones cântaros cristalizados
cultiva as promessas que vicejam
e que se vejam no acontecer diário.
Prevê as provisões de volta.
E considera que o amor
aviva a visão das coisas.
(para o Calino)
 
Talhado para as coisas da vida
Talhado para as coisas da vida
zurziram tua carne barbaramente,
mas teu corpo se esculpiu em bravo.
Apodrecerá viva a boca
que insultou de canalha a solidariedade
e os algozes terão seu dilúvio
misturados a excremento e lixo.
Podemos ouvir George Jakson
não entendendo tudo que Dylan diz,
lixar o verniz de cada um,
buscar dimensões não abraçadas,
retomar as lições calhadas na lida.
lançar a linha e aguardar o peixe,
comer o pão dormido e não perder
a firmeza, saber do acontecido
conhecendo para onde indicam
as luzes e percalços dos pioneiros da terra,
não estamos num beco sem saída.
Mas o reduto é de trevas
E a prova palpável da luz
Pode ser o ósculo dos camaradas
Que compartilham a estrada.
(num aniversário do Minhoca)

Antonio Pinheiro Salles

Antonio Pinheiro Salles

Nascido em Estrela, Minas Gerais, Antonio Pinheiro Salles já na adolescência militou no movimento estudantil. Iniciando como jornalista, foi vereador e líder universitário, sofrendo reiteradas prisões. Procurando preservar-se, pas­sou à vida clandestina na Bahia, São Paulo e Rio Grande do Sul. Como membro do POC, foi sequestrado neste estado, sofrendo inomináveis torturas. Anistiado, retomou a ação política, publicou vários livros de memória e é ativista de Direitos Humanos por Memória, Verdade e Justiça.
O Adeus a Porto Alegre
Não mais serei levado para o país do sul
Onde, apesar dos pesares, pude sobreviver
E te ver, te conhecer, te amar, te desejar
Como se não fossem tantas as turbulências
Como se o adeus ao porto de Porto Alegre
Não estivesse na posse das possibilidades.
É incrivel, mas sempre eu sabia da beleza,
Até se a tristeza e a dor não adormeciam.
Tu decidiste ser a minha serenidade
Em cada visita me apresentando a vida
Plena de nuanças novas, de esperanças
Ressuscitadas e graças sem agradecimentos.
Coisas que não te disse, macias pétalas
Guardadas para te oferecer no amanhecer
Talvez nunca possam mesmo ultrapassar
Sustos, soluços e solidões da minha cela.
Mas o amor não tem data nem concordata,
Ainda que o terror não reconheça o amor.
Não mais serei levado para o país do sul,
Não nos veremos após a espera desesperada
Havia névoa no voo da velha aeronave
E uma nívea revolta na volta das algemas.
O perfil de Porto Alegre foi fenecendo
Enquanto tu sonhavas sem saber de mim.
Tudo ficou distante… Teus olhos verdes
Eu não vou conseguir mais ver de perto
Em teus pagos peleamos; desafiamos o fogo,
O frio, o minuano, a imensidão do mundo.
Hoje, o Guaíba nasce e desce em minha face
Quando penso em ti, tua força, tua cidade.

Antônio Alberi Malfi

Natural de Passo Fundo (RS), militou na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Preso em 1970, foi condenado pela 3ª Auditoria Militar de Santa Maria. Cumprida a pena, continuou sendo perseguido, tendo que exilar-se nos seguintes países: Chile, México, Bélgica e Argentina. Casado com Ieda Maria Andreatta Maffi. Após retornar do exílio, foi professor universitário, na Universidade de Ijuí, de Cultura Brasileira, Literatura Brasileira, Literatura Latino Americana, Literatura Portuguesa e Literatura Africana de Língua Portuguesa. Ativista político e dos Direitos Humanos, elegeu-se prefeito municipal de Braga (RS), por dois mandatos (1983/88 e 1993/96). Autor de um livro de poesias, escrito durante a prisão, que foi confiscado pelos militares.
Dos Motivos
Escrevemos porque nos falta o tempo
de purgar a grande dor coletiva
e na poesia que fazemos
trazemos nossa esperança rediviva.
Fazer versos é mais que manifesto:
hoje, é luta e testemunhos.
É um cerrar de punhos
e um grito de protesto.
Cantemos, pois, com a certa convicção
de que calar é mais trágico e atroz.
Infeliz o que sabe a canção
e, no entanto, emudece a voz.
Cicatrizes
Crava-se na memória
o espinho
e a dor escorre
como sangue.
Na desesperança desencarnada
de uma terra seca de searas
pedras sobre pedras
O suor é o sonho.
As manhãs e as claras madrugadas
foram apenas festas que a noite castrou.
O espinho encravado no miolo da esperança
na sutura dos ossos
no pêndulo do nervo
na paz do sangue
na sagração dos dias
na origem do pasmo
na confluência da dor
nas raízes da terra
e na carnadura da pedra
agride nossas cicatrizes.
No eixo do tempo,
a memória.
Mas não serei eu
agreste e perdido
que há de lavar o sangue
das mãos que mataram nos porões
do tempo.
Da dor vertida no peito
feito lágrima e fel
sabem o fio da faca
e prumo da História.
Da noite, sabemos nós
que viemos do mundo dos abismos
carregando almas naufragadas
salitre nas feridas
mágoas no peito
e engasgo na garganta.
Nós, que de muito plantar
no escuro da noite
as palavras que nos marcavam
os sonhos que nos embalavam
e os mitos que nos mantinham
restamo-nos, sobreviventes,
amanhecendo cicatrizes.
 
Precariedade
As precárias palavras
no papel
concentram a vontade do canto.
Mas nada se revela
nesta noite de mudez
que não sejam inúteis, velhos
e cansados gestos.
O nó na garganta.
A espinha do peixe
não fere mais que o silêncio.
Tudo é provisório
nesta noite.
Eu. Você. O ditador.
E o nó.