Diante da crise política que vivemos, colocamos a pergunta a respeito do que Marx e o marxismo têm a ver com isto? Já se escutou falar por aí que Marx seria o culpado pela crise que o Brasil atravessa no momento. Parece-nos evidente que Marx tem algo a ver com a crise global do capitalismo internacional, e com a crise brasileira em particular. Sem entrarmos nas distinções entre a filosofia do velho Karl Marx, marxismo e as causas marxistas que se concentram nas conhecidas esquerdas, tais como as questões vinculadas ao trabalho, à organização social, à luta de classes e à exploração do trabalho. Uma distinção entre estes vários aspectos levaria o texto longe demais, o que não é o propósito deste artigo.
A crise política é provocada pela onda conservadora do neoliberalismo cujos ventos voltaram a soprar forte sobre o território brasileiro. Sabe-se que este modelo econômico, fortemente reinstaurado no Brasil com a posse do poder central por um governo golpista e conspirador, tem na privatização da economia, no grande empresariado e na retirada dos direitos sociais os seus dogmas fundantes. Na contramão desta tendência, uma noção social de inspiração marxiana tem na valorização do trabalho, na constituição do sujeito social, na economia solidária e na igualdade social, na coletivização dos bens e na constituição do fundamento universal do bem comum os seus valores fundamentais.
Dada a radical antinomia entre os dogmas do neoliberalismo e os fundamentos sociais da filosofia de Marx, entre o privatismo e os fundamentos sociais de base, Karl Marx e os marxistas aparecem como um bando de demônios inimigos do desenvolvimento econômico e vagabundos que vivem do trabalho dos que detém propriedade privada. Para os neoliberais, a crise econômica é causada pela significativa margem de recursos e de capital aplicado nas questões sociais, numa massa de “vagabundos” que não produzem e que consomem a riqueza dos que trabalham e produzem. Nesta lógica, é preciso retornar ao capital e aos produtores de riqueza tudo o que lhes é de direito, e tirar dos “vagabundos” tudo aquilo que provoca desequilíbrios econômicos.
Facilmente se escuta dizer que Marx não serve de referência para a leitura crítica e interpretação da crise econômica e política que atualmente vivemos. Na contramão desta investida, sustentamos que depois da grande crise econômica que solapou as bases do capitalismo mundial em 2008 e a crise que afeta o Brasil atualmente, têm na filosofia marxista uma de suas bases mais profundas para a sua compreensão. O que vivemos na atualidade, numa simples palavra, pode ser resumido na usurpação do poder político por parte de uma elite capitalista que impõe o seu projeto econômico. O projeto econômico que os golpistas liderados por Cunha e Temer estão impondo ao Brasil é o mesmo que foi duramente criticado por Marx, que faliu em 2008 e que impõe ao mundo uma onda de destruição da natureza, do homem e de si próprio. Assim como denunciou Marx no século XIX, o capitalismo atual está sucumbindo à sua própria contradição interna, cujo preço está recaindo diretamente sobre os recursos naturais do Brasil e sobre o povo brasileiro.
O Capital, obra sistemática de maturidade do velho e barbudo Karl Marx, nos mostra suficientemente que não são os marxistas e trabalhadores os culpados pela crise atual, e que o seu pensamento é referencial para a compreensão de qualquer crise capitalista. Aqui, junto com o velho Marx, denunciamos a ação do governo golpista de fazer recair sobre os trabalhadores e a base social a responsabilidade, fazendo a classe trabalhadora pagar a conta dela. É evidente que o grande capital, cuja lógica Marx esboçou de forma sistemática e metódica em sua obra o Capital (das Kapital), apresenta o grande sujeito do capital que sobrevive à custa do trabalho explorado e da mais valia, expropriando a força física e espiritual do trabalhador. O grande capital somente sobrevive com o trabalho dos trabalhadores, cuja subjetividade é expropriada até as últimas consequências. Acontece sistematicamente aquilo que os golpistas impõem de forma clara: o grande capital expropria os trabalhadores, com a necessidade absoluta do fundamento que ele próprio nega. Os golpistas dizem que os pobres, a classe trabalhadora, os pequenos agricultores, as mulheres e os negros são vagabundos, justamente aqueles “vagabundos” que com o seu trabalho sustentam materialmente a posse material dos ricos e machos golpistas.
Ninguém reconstruiu a estrutura da lógica capitalista como Karl Marx, especialmente em sua obra o Capital. O grande capital, estruturado pelas determinações do capital industrial, do capital financeiro e do capital comercial, caracteriza um círculo de mediação no qual uma determinação do capital determina a outra, e todas se determinam reciprocamente na grande lógica da autodeterminação do capital. Mas o movimento de construção do capital é sustentado pelo trabalho dos trabalhadores, a grande força que coloca o capital em movimento. Os capitalistas, perfeitamente representados pelos golpistas, não gostam dos trabalhadores e negam a própria base que construiu o seu capital. Uma vez precarizado o trabalho, a tendência é de que o capital seja fragilizado.
Marx não apenas reconstrói a estrutura dialética das inter-relações entre as modalidades de capital dinheiro, capital produtivo e capital comercial, como a lógica da grande circularidade do capital global, mas critica outra configuração que consiste na separação entre a estrutura produtiva e a lógica especulativa e financeira. O grande causador da crise é a financeirização do mundo provocada pelas instituições financeiras que recolhem os recursos econômicos da base material da sociedade e os concentram em forma de capital financeiro. Este basta a si mesmo para se multiplicar, no melhor estilo autotélico de um deus absoluto e incondicional. Como alguns poucos se beneficiam desta lógica perversa e lucram com a crise, o sistema econômico material é explorado em seus fundamentos quando a carência econômica é sentida na indústria, no comércio, no consumo quotidiano e no trabalho, a financeirização pulveriza a estrutura material e a sua necessária circularidade de produção e consumo. Marx é um crítico contumaz desta lógica capitalista financeirista na qual o capital dinheiro adquire a configuração autotélica capaz de expropriar a realidade material e a estrutura social.
Pelo viés crítico fortemente marxista, a crise que vivemos evidencia uma radical desestruturação do tecido social pela coisificação das relações sociais fortemente impactadas pela lógica capitalista. Diretamente acompanhado dela, o sistema da natureza está sendo desintegrado, com a destruição dos ecossistemas, com a poluição do ar, das águas, dos rios, do desmatamento, da exploração predatória de recursos naturais, de aplicação de defensivos agrícolas em grande escala etc. O sistema capitalista dogmatizado e endeusado pelos golpistas não apenas desintegra a sociedade e a natureza em seus fundamentos, mas estabelece uma ruptura na relação fundamental entre o homem e a natureza.
Partindo do legado intelectual proporcionado por Marx, criticamos o projeto desencadeado pela elite golpista que está no poder. Este projeto já faliu o Brasil com o governo Fernando Henrique Cardoso na década de 90, quando o Brasil acumulou uma dívida externa impagável, com sucessivos empréstimos junto ao Fundo Monetário Internacional, com um déficit significativo na balança comercial durante os oito anos, e com diminuição do Produto Interno Bruto. O governo golpista está aplicando irrestritamente a cartilha econômica dogmatizada pela tradição neoliberal, que faliu a Europa e os Estados Unidos em 2008 e espalha estruturalmente os efeitos de sua decadência no mundo inteiro.
Apoiados no pensamento de Marx, criticamos radicalmente o modelo econômico representado pelo governo golpista que usurpou o poder. Ele representa um projeto econômico que retira direitos sociais assegurados pela Constituição de 1988. Isto representa uma contradição porque o próprio capital nega a sua força estruturante, o trabalho, destruindo-se a si mesmo. Os golpistas representam um projeto que já faliu o mundo, e está matando a natureza, está desintegrando a sociedade, provoca desequilíbrios econômicos, ecológicos e sociais globais.