Ditadura golpista e criacionismo

João Alberto Wohlfart – Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor de Filosofia no IFIBE
O regime ditatorial ao qual o Brasil atualmente está submetido tenta trazer de volta a antiga e obsoleta doutrina do criacionismo. Aliás, o que facilmente se vê por aí é o retorno de questões há muito tempo superadas e radicalmente antagônicas ao contexto histórico atual. O que há de tradicionalismo, conservadorismo, patriarcalismo e posturas reacionárias retorna com muito mais força em relação às suas manifestações históricas em tempo real. Em instâncias oficiais dos poderes da república é proposto o ensino do criacionismo nas escolas, seguramente com o propósito de dar sustentabilidade religiosa aos interesses econômicos e políticos em jogo.
Partimos da estruturação da sociedade, onde a infraestrutura é ocupada pela economia e o seu sistema de organização, e a superestrutura é ocupada pelo sistema político, pelas leis, pelo sistema judiciário, pelo sistema de ideias e pela religião. No momento atual, a proposta do criacionismo tem relação direta com a significativa bancada religiosa do congresso nacional, de natureza neopentecostal e ultraconservador que precisa impor uma doutrina religiosa conservadora para legitimar os seus interesses. O criacionismo é uma espécie de névoa espiritual para assegurar a benção divina a um determinado projeto econômico que serve às elites conservadoras do país.
Dentre os múltiplos retrocessos existentes neste governo golpista, a proposta do criacionismo é expressão doutrinal do conservadorismo político. Trata-se de uma antiga doutrina religiosa segundo a qual a natureza e o mundo foram criados por Deus. Antes do mundo, este Deus é absoluto, imaterial, eterno e intemporal, decidiu criar o mundo como uma esfera rebaixada, contingente e finita. Este mundo saiu de acordo com a mente divina, imprimiu nele uma lei que é imutável e não cabe ao homem a mudança desta trajetória. O homem e a sociedade obedecem a um curso inexorável ao qual simplesmente devem reverência. Para o criacionismo, a estrutura social está estabelecida de acordo com a vontade de Deus, razão pela qual as relações sociais estão divinamente regradas e teologicamente estabelecidas. De acordo com o criacionismo tradicional, as coisas simplesmente são e não podem ser transformadas.
O criacionismo está ultrapassado do ponto de vista sistemático, histórico e conceitual. Do ponto de vista sistemático, a realidade e os conhecimentos da atualidade são muito mais amplos e complexos que o criacionismo não dá mais conta. Do ponto de vista histórico, está ultrapassado porque temos outras concepções muito mais avançadas e mais adequadas para um mundo em constante transformação, tais como as Teorias da Evolução, as Teorias da Complexidade e dos Sistemas, as Teorias Dialéticas da História, as Cosmologias contemporâneas, apenas para citar algumas. Do ponto de vista conceitual, o criacionismo não dá conta dos conceitos e argumentos requeridos pelos conhecimentos atuais, pois não é capaz de incorporar argumentos que expressam a dinamicidade e complexidade do mundo. De tudo isto, contra um Deus que age externamente em relação ao mundo, as ciências contemporâneas pensam um mundo articulado a partir da imanência de sua própria interioridade cuja força o articula em círculos sistemáticos como a Natureza, a Sociedade, a História e o Universo.
O criacionismo somente sobrevive nas religiões neopentecostais, nos setores mais conservadores da Igreja Católica e nas mentes dos fiéis mais ortodoxos. Este dogma religioso tem um viés claramente ideológico porque é destinado a encobrir e mistificar a realidade para que ela permaneça intocada, segundo a vontade eterna de Deus. Isto é fundamental para o encobrimento ideológico de interesses econômicos, pois as elites dominantes usam da religião para evitar o despertar da consciência do povo. Uma religião conservadora é tudo o que o sistema econômico precisa para adequar as consciências à realidade estabelecida. No Brasil, muitas religiões catequizam massivamente o povo com um objetivo claramente político, integram a bancada religiosa do congresso nacional e representam os interesses econômicos de uma minoria.
No contexto de uma onda ultraconservadora, com retrocessos na economia, na religião, na política, na sociedade e no pensamento, chama a atenção o retorno dos fundamentalismos. Trata-se de concepções dogmáticas e autoritárias, verticalmente impostas, com a proibição categórica de manifestações de pensamentos críticos, libertadores e emancipadores. Para que isto seja socializado, pensadores progressistas são objeto de ódio e de preconceitos, tais como Hegel, Marx, Paulo Freire, Einstein etc. Os fundamentalismos se manifestam em vários campos, especialmente no universo intelectual, econômico e religioso. Na dimensão intelectual, a sociedade e as pessoas são cada vez mais impregnadas por visões tradicionais. No campo econômico, retorna uma economia de mercado com as suas regras absolutas e restrição do poder regulador do Estado, que apenas serve aos interesses dominantes. Com uma profunda sensibilidade religiosa, e facilmente manipulado por uma onda religiosa conservadora, o povo facilmente acolhe velhas ortodoxias religiosas nas quais e através das quais sustentam a classe dominante.
No contexto atual, os fundamentalismos são amplamente apoiados e incentivados pelos Estados Unidos. O fundamentalismo religioso, com apoio forte no criacionismo, forma uma “consciência social” conservadora segundo a qual a base social incorpora uma visão de mundo adequada ao modelo econômico estabelecido. Nunca se viu, como atualmente, a manifestação em conversas espontâneas e em espaços oficiais a expressão de concepções econômicas e políticas ultraconservadoras. A ideologia do golpe estabelecido e os interesses econômicos que se escondem na imanência do mesmo, estão fortemente respaldados pela visão conservadora de mundo e de sociedade, principalmente induzidos pelos meios de comunicação social e pelo fundamentalismo religioso baseado no criacionismo. Com forte repressão ao pensamento crítico e inovador, estabelece-se uma mística social que reproduz os interesses dominantes.
O fundamentalismo religioso do criacionismo tem incidência na religião. Esta corrente sustenta uma religião que proporciona uma visão estática de mundo, onde tudo está definitivamente dado, diante do qual as pessoas interiorizam o mundo como pronto e acabado. O criacionismo tem incidência forte na política, com representantes que justificam as suas ações a partir de um dogmatismo religioso. Em outras palavras, a corrupção política é escondida embaixo do manto sagrado da religião devocionista e fundamentalista. Disto resulta um Estado teocrático guiado pelos princípios de uma determinada religião, o que facilmente resulta na transformação da economia em religião econômica. A determinante incidência da economia na vida das pessoas e da sociedade, na condição do fenômeno do fetichismo da mercadoria, se transforma numa religião dominadora e mistificadora. E o criacionismo tem incidência forte na dimensão do conhecimento e da cosmovisão. Dela resulta uma visão vertical, estática, autoritária e essencialista do mundo, tudo o que é necessário para dominar as massas.
O criacionismo proporciona o espetáculo de uma visão vertical de mundo. É o Deus sábio, absoluto e imóvel lá em cima no céu, e nós e o mundo finito e imperfeito cá embaixo. Trata-se de uma estrutura vertical e incomunicável, na qual o mundo é estruturado em estruturas justapostas e irredutíveis entre si. Esta teologia ultraconservadora, traduzida para o universo político e social, resulta num pequeno grupo que manda e dita as regras, e os outros simplesmente precisam acatar e obedecer. Os golpistas têm uma mentalidade autoritária e eles impõem os seus interesses ao povo, odiando a democracia. Do ponto de vista econômico, seguindo os caminhos do criacionismo, o grande capital impõe os seus interesses, independente das regras democráticas e dos anseios do povo.
O criacionismo que as classes políticas ultraconservadoras querem nos impor é obsoleto, autoritário e ultrapassado, assim como o projeto dos golpistas. Em nome daquele deus representado de barba branca, no melhor estilo de um senhor feudal medieval, querem impor uma moralidade dos bons com a condenação de uma grande população formada por negros, mulheres, jovens, agricultores familiares e índios. Trata-se de uma espécie de maniqueísmo social onde Deus abençoa os “bons” e castiga os “maus”, e encobre os caprichos dos golpistas.
 

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