Cleber Dioni Tentardini
O juiz Eugênio Couto Terra, da 10ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central de Porto Alegre, pediu hoje acesso à medida cautelar do Ministério Público de Contas que questiona a extinção da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul.
O magistrado está julgando o pedido de liminar do Ministério Público Estadual que tem por fim proteger as coleções de plantas, animais e fósseis, e impedir a demissão dos pesquisadores da FZB.
“A medida interposta pelo MP de Contas pode contribuir para o desate desta, inclusive para a apreciação da liminar”, afirmou o juiz em seu despacho, salientando que, “caso os documentos que aportarem nos autos sirvam, de alguma forma, para fundamentar a decisão da liminar, intimem-se as partes para se manifestarem em cinco dias sobre o que for remetido pelo MP de Contas”.
A liminar solicitada pela Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre impede que o governo do Estado demita o quadro técnico-científico e se desfaça de qualquer bem, móvel, imóvel e de animais que constituem o patrimônio material e imaterial do Jardim Botânico e do Museu de Ciências Naturais, duas das três instituições vinculadas a FZB. O Parque Zoológico não está contemplado nesta ação.
O pedido de liminar proíbe ainda a rescisão de acordos ou contratos que impliquem as atividades de educação ambiental, preservação dos acervos ou pesquisa científica, e impede o desmembramento ou fracionamento da matrícula do imóvel do Jardim Botânico. No caso de descumprimento, multa de R$ 50 mil.
A ação requer que o Estado apresente em juízo um plano para a extinção da FZB que garanta a continuidade e a mesma qualificação de todos os serviços e atividades do Jardim Botânico e do Museu de Ciências Naturais, e providenciar imediatamente o conserto do muro que faz a divisa com a Vila Juliano Moreira. Por fim, determina ao IPHAE (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Rio Grande do Sul) a inscrição do Jardim Botânico no Livro Tombo, por já ter sido declarado patrimônio cultural do Estado, em 2003.
“Seria uma vitória para a nossa sociedade e para as futuras gerações, porque o governo não pode simplesmente dilapidar o patrimônio ambiental e cultural do Estado, não pode demitir servidores sem apresentar um plano, sem mostrar como serão preservadas as coleções e quem fará as curadorias”, argumentou a promotora de Justiça de Defesa do Meio Ambiente, Ana Maria Marchesan.
Ação Civil Pública corre desde fevereiro
No início de fevereiro deste ano, após realizar uma vistoria nos acervos do JB e do MCN, a promotora e os colegas Alexandre Saltz,Annelise Steigleder e Josiane Camejo assinaram uma Ação Civil Pública, com pedido de liminar, contra o Estado, decorrente da decisão do governo de extinguir a FZB e demitir os funcionários. A Lei n. 14.982/2017 que autoriza a extinção foi sancionada em 17 de janeiro deste ano.
Em quatro dias, produziram mais de 60 páginas com os argumentos para justificar a manutenção da Zoobotânica. Foram citados alguns fatos que colocaram em risco o patrimônio ambiental e cultural do Jardim Botânico e do Museu de Ciências Naturais, especialmente a queda de mais dois blocos do muro que faz divisa com a vila Juliano Moreira, na avenida Cristiano Fischer, as depredações, as e invasões do serpentário e de salas administrativas.
“Percebemos a necessidade de a Justiça tomar alguma medida urgente porque a área está vulnerável a novas invasões. Fora isso, está havendo uma série de iniciativas da direção no sentido de esvaziar a atuação da própria Zoobotânica, como, por exemplo, a retirada de representantes da FZB de conselhos estaduais que têm gestão na política ambiental do Estado”, destacou Ana Marchesan.
A promotora acredita que as pessoas não saibam o que é feito no museu, por exemplo. “As pessoas não conseguem mensurar a importância de toda a riqueza ambiental e cultural que eles produzem, não avaliaram o que a falta disso pode representar para as futuras gerações”, afirma.
Ela destaca outro fator que é inerente ao trabalho na Zoobotânica: “O patrimônio material não sobrevive sem a gestão dos especialistas, mestres e doutores em diversas áreas, com conhecimento científico acumulado”, salienta.
O maior acervo da biodiversidade do RS
Embora a Ação Civil Pública tenha sido produzida em ritmo acelerado pelos promotores de Justiça, está muito bem fundamentada. Faz um levantamento geral do trabalho realizado no Jardim Botânico e da qualificação de seus servidores. Da mesma forma, descreve as atividades no Museu de Ciências Naturais e suas coleções científicas que, segundo o documento, constituem o maior acervo de material-testemunho da biodiversidade dos ecossistemas terrestres e aquáticos do RS.
Além de ser uma ferramenta imprescindível para estudos que envolvam a flora e a fauna, recente e fóssil, essas coleções subsidiam a descrição de novas espécies. Os ‘exemplares-tipo’ dessas coleções, que servem de base para as descrições, tornam-se essenciais para a identificação precisa de cada espécie.
“Os exemplares preservados em museus e seus dados associados documentam a existência das espécies no tempo e no espaço. Os acervos científicos são, portanto, bibliotecas da biodiversidade. Essenciais para a expansão do conhecimento por meio da pesquisa e da educação. Os exemplares de coleções científicas servem para validar as pesquisas biológicas, assegurando que possam ser replicadas ou comparadas no futuro. Estudos que envolvem taxonomia, biotecnologia, biogeografia, perda e conservação da biodiversidade, invasões biológicas e mudanças climáticas, por exemplo, dependem das coleções biológicas. As coleções paleontológicas, por sua vez, são de grande relevância do ponto de vista científico e cultural para a reconstituição de paleoambientes e o entendimento da paleoecologia”, descrevem os promotores na ACP.
O documento lista uma série de consequências do ponto de vista científico para o Rio Grande do Sul em caso de “descontinuidade das atividades da FZB”.
a) Perda de patrimônio científico, histórico e cultural que integra o conhecimento científico nacional;
b) Comprometimento do maior conjunto de amostras biológicas e paleontológicas do Bioma Pampa;
c) Interrupção da rede de colaboração científica estabelecida há décadas entre os curadores/pesquisadores da FZB com universidades e instituições de pesquisa do país e do exterior;
d) Perda irreparável em Taxonomia (ciência que descreve e classifica novos organismos) no caso de perda de material-tipo (material que embasa a descrição da espécie. A perda de material-tipo aconteceu pela última vez durante a 2ª Guerra Mundial, o que trouxe dificuldades taxonômicas até hoje para toda comunidade científica mundial;
e) Perda de informações sobre a biodiversidade que deveriam subsidiar políticas públicas voltadas à gestão da biodiversidade, no âmbito estadual e nacional;
f) Interrupção da socialização da informação para o mundo científico de um dos três maiores herbários do RS. Em 2016, o Herbário HAS do MCN teve quase três milhões de acessos (2.909.189), através da Rede Herbário Virtual da Flora e dos Fungos do Brasil;
g) Perda de geração de conhecimento aplicado à gestão ambiental. Atualmente, os registros da coleção de anfíbios do MCN estão sendo utilizados na revisão do Plano de Manejo do Parque Estadual de Itapeva, na elaboração do Plano de Manejo da Reserva Biológica Estadual da Mata Paludosa e na elaboração do Plano de Manejo da APA do Banhado Grande;
h) Perda dos registros que subsidiam o Plano de Ação Nacional para a Conservação da Herpetofauna do Sul (PAN Herpetofauna do Sul);
i) Perda da capacidade de descoberta de usos potenciais da biodiversidade. Recentemente estudos desenvolvidos pelo MCN com espécies nativas de anfíbios revelaram novas substâncias com potencial para uso farmacêutico. Esse serviço não existe na iniciativa privada, portanto não há como reparar a sua perda;
j) A perda da coleção de microalgas continentais do Herbário Prof. Dr. Alarich R. H. Schulz (HAS), que possui o maior número de lotes em líquido e tipos nomenclaturais do Brasil, significa a perda de acervo fundamental para obtenção de conhecimento e testemunho da biodiversidade do Rio Grande do Sul;
k) Desaparecimento de local com condições de receber espécimes coletados por ocasião de EIA/RIMA, conforme legislação;
l) Perda de banco genético de representantes de cianobactérias da flora do RioGrande do Sul;
m) Interrupção de trabalhos realizados em parceria com outras instituições brasileiras no estudo das cianobactérias(Centro de Energia Nuclear na Agricultura, USP, Piracicaba, SP;
n) Impossibilidade de descrição de novos táxons de cianobactérias sul-riograndenses (gêneros e espécies) para a ciência;
o) Perda de banco amostral de referência de florações de cianobactérias registradas em distintos sistemas hídricos do Rio Grande do Sul, dentre outras.
Jardim Botânico é indivisível, diz Ação Civil
O Jardim Botânico de Porto Alegre é um museu vivo com um patrimônio público inalienável, não privatizável, indivisível e que exige o máximo zelo dos gestores públicos na sua preservação para as gerações presentes e futuras, diz a Ação Civil Pública do MP.
O JB contempla um conjunto de 27 coleções vivas de plantas envasadas ou em arboreto. Dentre as atividades, estão a manutenção de coleções científicas de plantas vivas, o banco de sementes, os programas institucionais de iniciação científica envolvendo bolsistas do Pibic/CNPQ, Probic/Fapergs e convênios para estágios curriculares, o viveiro de mudas, a biblioteca, as atividades de educação ambiental, e o envolvimento em inúmeros projetos de pesquisa.
Em função desse cipoal de atividades, dizem os promotores, o Jardim Botânico de Porto Alegre está entre os cinco do Brasil que se enquadram na categoria A, o que significa que atende a todas as 16 exigências previstas no artigo 6º da resolução Conama 339/2003. “Entre elas, a primeira e mais importante é possuir quadro técnico-científico compatível com suas atividades.”
Outras considerações da Ação Civil Pública:
O Jardim Botânico possui em seu acervo um conjunto de plantas que integram a Flora Gaúcha ameaçada de extinção. Esse conjunto somado a outras plantas raras compreende um total de mais de quatro mil plantas.
A perda do registro na Agenda Internacional de Jardins Botânicos do Botanic Gardens Conservation International (BGCI), o que dificultará a captação de recursos para pesquisa; ocorrerá a perda de exemplares de espécies raras, endêmicas e ameaçadas, dificultando a ampliação do conhecimento voltado à conservação; haverá o desaparecimento de ambiente controlado para desenvolvimento de pesquisas com universidades nacionais e internacionais interessadas na flora do RS.
Em relação ao Banco de Sementes, eventuais danos serão incomensuráveis. Haverá o encerramento das atividades de análise fisiológica e morfológica de sementes de espécies arbóreas e arbustivas nativas do RS.
O Laboratório de Análise de Sementes do Banco de Sementes/JB é o único no RS que procede, rotineiramente, essas funções, inclusive no tocante às espécies ameaçadas.
Haverá profunda perda em termos de sistematização de dados gerados em experimentos nos últimos 20, podendo comprometer a lista de Index Seminum, pois não existirão sementes armazenadas.
Esse conjunto de perdas e reduções certamente implicará a perda de pré-requisitos para a obtenção da categoria “A”, por parte do JB.
A par do acervo, o patrimônio imaterial do Museu de Ciências Naturais se alimenta de seu corpo funcional extremamente qualificado. Esse corpo técnico mantém a instituição viva e capaz de nutrir o Estado do Rio Grande do Sul com informações sobre a biodiversidade, patrimônio paleontológico, patrimônio genético, dentre outros bens culturais e ambientais de suma relevância para a preservação da vida humana, animal e vegeta
A extinção da FZB e, via reflexa, das estruturas que compõem esses dois equipamentos culturais vem causando grande comoção não só na sociedade gaúcha como também na comunidade científica internacional. A Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente recebeu manifestações da Profa. Graciela Piñeiro do Departamento de Bacias Hidrográficas do Uruguay, do Conselho Regional de Museologia e do Prof. Johannes Vogel, Diretor Geral do Museu de História Natural de Berl