Movimento busca diálogo para reverter extinção de Fundações

Painelistas João Carlos Brum Torres, Lúcia Carpena, Claudio Accurso, Pedro Cezar Dutra Fonseca e Diego Mizette Oliz/Divulgação

Cleber Dioni tentardini e GERALDO HASSE
Mesmo com o auditório do Dante Barone pegando meia lotação em consequência da tempestade que caiu ao anoitecer de quinta-feira (9), foi um sucesso político o evento convocado por um coletivo de entidades que buscam – tardiamente – reverter a decisão do governo Sartori de extinguir a maior parte das fundações estaduais.
O encontro foi aberto por Francisco Maschall, professor de História da UFRGS. Ele explicou que o coletivo está buscando dialogar com o governo, mas a margem de manobra é mínima porque “o Piratini está num transe ideológico”. Foram protocolados convites a integrantes do governo, mas ninguém ocupou as quatro cadeiras reservadas para eles.
No bojo das manifestações, iniciadas com um mini-show do compositor Bebeto Alves, que cantou três novas canções de protesto (“Traidor, é preciso estocar o amor para a fome que vai se fazer sentir”), aflorou a crítica generalizada à submissão do governo do Estado ao modelo neoliberal de gestão das finanças públicas. Segundo Carlos de Martini, presidente do Sindicato dos Técnicos Tributários do Estado, “não há dúvida de que tudo se encaminha para a privatização do Banrisul, CRM, CEEE e Sulgás”.

Carlos de Martini , André Scherer e Josué Martins analisaram alternativas para a crise/Divulgação
Carlos de Martini , André Scherer e Josué Martins analisaram alternativas para a crise/Divulgação

Foi a primeira vez desde a segunda quinzena de dezembro (quando a Assembleia Legislativa aprovou o pacote de extinções) que uma significativa fração da inteligência gaúcha se reuniu para combater a “reforma sartoriana”. De Accurso a Brum Torres, ninguém poupou os autores da façanha suspeita de carregar consigo. Ao todo, 16 pessoas se pronunciaram. As primeiras, representando as fundações extintas, tiveram cinco minutos cada. As últimas, dez minutos. No começo, protestos, queixas e acusações. No meio, perplexidade. No final, três análises técnicas arrasadoras sobre a falta de consistência das decisões do governo estadual. A seguir, um resumo das falas conduzidas por Carla Ferreira, Luís Augusto Fischer e Antonio Villeroy.
LEANDRO TABORDA (Cientec) – Com mais de 75 anos de existência (começou com o Instituto Tecnológico do Rio Grande do Sul em 1942), a Fundação Cientec realiza um trabalho técnico de pouca visibilidade que se revela em episódios históricos como a construção da ponte do Guaíba, eclusas da bacia do Jacuí e a implantação do Polo Petroquímico de Triunfo. A Cientec está presente no cotidiano de muitas medidas técnicas e decisões judiciais. Ela ajuda o Ministério Público a inspecionar os combustíveis, os fertilizantes e os resíduos de carvão mineral usados na indústria de cimento. “Com a extinção, quem vai fazer o que a Cientec faz?”
JAIR STANGLER (Corag) – O governo alega que vai passar a publicar o Diário Oficial eletronicamente. Ignora que há três anos o DO já tem uma versão digital feita pela Corag, que presta diversos serviços a órgãos do Estado, como a impressão de documentos para o Detran, a Secretaria da Fazenda e a Assembléia Legislativa. Além de publicar livros em parcerias com instituições públicas, a Corag é uma empresa lucrativa. Nos últimos cinco anos, transferiu aos cofres públicos 55 milhões de reais.
IRACEMA CASTELO BRANCO (FEE) – A Fundação de Economia e Estatística tem 43 anos de existência e desfruta de grande credibilidade nos setores público e privado. Possui um acervo de dados de mais de um século. Mantém 93 mestres e 36 doutores. Produz 25 indicadores e 8 publicações que ajudam a avaliar o desempenho da economia e contribuem para orientar as políticas públicas. Com a extinção da FEE, o IBGE vai perder seu parceiro em vários aspectos como o cálculo da população do Estado, a medição do Indice de Desenvolvimento dos Municípios, a pesquisa de emprego e desemprego e o cálculo do Produto Interno Bruto. “Fechar a FEE não trará economia de custos. Aliás, é bom lembrar que desde 2011 a fundação vem reduzindo seus custos operacionais”.
SILVIA SPALDING (FEPPS) – A Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde tem 22 anos de existência, mas acumula conhecimentos de mais de 100 anos de laboratórios de referência em saúde pública. Com a extinção, estamos jogando fora conhecimento e expertise em diversas áreas como tuberculose, hepatite, HIV e dengue. No início, o governo disse que para acomodar a FEPPS seriam criados quatro departamentos na Secretaria da Saúde. Agora a decisão é remeter o pessoal da FEPPS para o Centro de Vigilância Epidemiológica. Isso indica falta de planejamento e desrespeito à saúde pública.
SERGIO LISANDRO DORNELLES (FDRH) – Eu tinha orgulho de trabalhar numa instituição de mais de 40 anos que mantém uma escola de governo apta a capacitar e treinar funcionários públicos, seleciona estagiários sem apadrinhamento e prepara concursos públicos sem possibilidade de fraudes. Com a extinção, nós estamos nos sentindo humilhados. A Constituição Federal manda cada estado manter uma escola de governo.
NEMORA RODRIGUES (Fepagro) – A Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária foi criada em 1994, mas herda estruturas e trabalhos iniciados em 1919, quando foi aberta a primeira estação experimental em Veranópolis. Hoje, além da sede no bairro Menino Deus, a Fepagro possui 22 áreas operacionais no interior, onde trabalha em vários campos sem superposição com outros órgãos de pesquisa como a Embrapa. Um dos nossos orgulhos é ter ajudado a acabar com a febre aftosa no Rio Grande do Sul. É bastante evidente que a extinção visa abrir espaço para a iniciativa privada. É que se chama de estado mínimo. Uma visão mesquinha. Nós funcionários da Fepagro somos concursados e não podemos ser demitidos. Mas fomos colocados num quadro de extinção, dentro da Secretaria da Agricultura, que não pode fazer pesquisa.
FERNANDA BASTOS (Fundação Piratini) – A TVE está fazendo 43 anos neste mês. É a segunda maior rede do estado, alcançando mais de 6 milhões de pessoas. A FM Cultura vai para 28 anos. A extinção da Fundação Piratini vai contra o artigo 23 da Constituição Federal, cujo item 5 trata da obrigação governamental de prover a difusão da cultura. A TVE e a Radio Cultura fazem parte do patrimônio imaterial do Rio Grande. Exigimos que o governo interrompa e suspensa a extinção.
(“Fora Sartori!”, exclama a mediadora Carla Ferreira, no seu púlpito à esquerda da mesa)
MARCOS AZEVEDO (Fundação Zoobotânica) – A FZB mantém atualmente mais de 100 projetos de pesquisa, além dos trabalhos de conservação e manutenção de coleções científicas. No campo da sustentabilidade, um dos nossos trabalhos é ajudar a Alianza del Pastizal, dos criadores de gado em pastos nativos do RS, Uruguai e Argentina. Outro, a manutenção de um centro de triagem de animais silvestres. Na gestão da biodiversidade, elaboramos as listas de espécies ameaçadas de extinção. Recebemos 130 mil alunos por ano no Jardim Botânico, no Zoológico e no Museu de Ciências Naturais. Damos assessoria para órgãos públicos. Atendemos pesquisadores. Treinamos professores e profissionais do meio ambiente. Recolhemos peçonha de cobras para produção de soros. Monitoramos os levantamentos de qualidade do ar. Editamos livros e revistas. Tudo isso custa 0,045% do orçamento estadual.
DIEGO OLIZ (Sindicato dos Engenheiros) – “O governo está matando a inteligência do Estado. Daí a pergunta: para que fazer mestrado e doutorado se não houver espaço para trabalhar no serviço público? Precisamos acordar para a proposta de negócios que o governo está armando. Vejam o caso das entidades que lidam com o carvão mineral: a Cientec, a CRM e a Sulgás têm um pré-sal em Candiota. Quem vai explorar isso? Com a extinção das fundações e a privatização das empresas, serão os chineses, os estrangeiros. Mas prestem atenção: as fundações estão extintas no papel, mas na prática seguem operando. Não ta morto quem peleia. Estamos dispostos a recorrer à Justiça.”
LÚCIA CARPENA (Conselho da UFRGS) – Citando o escritor francês Vitor Hugo, que se manifestou em 1848 na Assembléia de Paris sobre a contradição entre a insignificância financeira e o valor das coisas perenes, lembrou que no dia 25 de novembro de 2016 o Conselho Universitário da UFRGS fez uma moção contra a extinção das fundações, que representam um patrimônio físico, cultural e imaterial. “Apagado o conhecimento, ficaremos sem memória”. Segundo Carpena, a extinção das fundações reflete a ignorância política e administrativa de um governo subserviente ao Mercado.
PEDRO CEZAR DUTRA FONSECA (professor de economia da UFRGS) – A extinção das fundações não é racional. Se foi feita para “mostrar serviço” em Brasília, é uma medida inócua, tanto que o governo federal, interessado em valores muito maiores, não lhe deu a menor pelota. Além disso, mais gera despesas do que faz economia. Também não é racional porque nenhum estudo foi levado à Assembléia Legislativa, que agiu de forma vergonhosa. Qualquer obra oficial precisa de projeto, de estudo de impacto e de planejamento financeiro. Nada disso foi feito. Tampouco se aplica às fundações o discurso neoliberal da desqualificação do serviço público. Elas trabalham bem, são úteis e necessárias, têm baixo custo. O que acontece de fato é que as fundações não se enquadram no novo modelo… Modelo que não nos foi apresentado na campanha eleitoral ou em qualquer momento nesses últimos dois anos. A extinção das fundações é uma medida isolada que destoa do modus operandi do neoliberalismo, que age de forma concatenada, como estão fazendo Macri na Argentina e Temer em Brasília. Enfim, estamos no fim de um ciclo: sem qualquer proposta explícita, o governo do Estado está pondo abaixo uma estrutura montada nos últimos 70 anos. Ao se sujeitar ao projeto de arrocho fiscal do governo federal, o Rio Grande do Sul abre mão do seu futuro.
JOÃO CARLOS BRUM TORRES (professor da Universidade de Caixas do Sul) – Vocês sabem que eu tenho uma relação histórica com o PMDB, mas confesso que não é fácil entender as razões do governo. Pelo que ouvi dos operadores do projeto de extinções, são decisões ilógicas. Enfim, acho que essas medidas são erradas. Gravemente erradas. Lamento especialmente pela FEE: nas duas vezes em que fui secretário do Planejamento do Estado, vi o quanto é importante o trabalho da FEE na geração de informações fundamentais para a avaliação da situação do Estado. O governo não pode se desonerar de órgãos técnicos e de conhecimento. São instituições que precisam de tempo para se consolidar e não podem ser destruídas por erros induzidos por aprêmio financeiro. Mesmo órgãos debilitados pela crise financeira não podem ser descartados. Há nisso tudo uma falta de visão histórica de longo prazo. O Rio Grande do Sul não vai acabar por causa dessa crise. Por isso acho que essas decisões são profundamente equivocadas.
CLAUDIO ACCURSO (professor de economia aposentado) – Estamos entre a frustração e a indignação. Quando um governo se afasta das ruas, tomando decisões de gabinete, ele pratica a ruptura democrática. As decisões de castas põem a democracia em risco. A suposta modernização da estrutura do governo é um embuste. Com que direito o governo sonega as opções que se têm hoje? Que intenção escondida sustenta a extinção das fundações?  Vivemos um momento triste no Brasil. Perdemos partidos, não temos líderes e não temos projeto. Vivemos de conjunturas. Mas esse momento pode ser pedagógico se soubermos tirar lições de tudo isso.
ANDRÉ SCHERER (economista da FEE) – É um erro achar que a saída da crise fiscal do Rio Grande do Sul poderia estar no corte de despesas, pois isso quase sempre acaba redundando numa queda de receitas. Do ponto de vista estrutural, o que configura a dimensão das dificuldades de gestão do Tesouro é uma soma de três fatores: a dívida com a União, a desoneração das exportações (Lei Kandir) e o acirramento da guerra fiscal entre os estados. Desde o início de seu governo Sartori mostrou um grande imobilismo seja por falta de liderança ou de capacidade de correta percepção da realidade. Nos últimos tempos, assistimos ao servilismo do governo do RS diante da repactuação fiscal liderada pelo Estado do Rio de Janeiro. Quais seriam as alternativas? O primeiro passo é fazer uma repactuação da dívida com o governo federal, mas não nos termos propostos pela União, que aceitou a troca do indexador da dívida e depois voltou atrás. Se o novo indexador foi aplicado ao estoque da dívida (55 bilhões de reais), o total cai pelo menos um terço. Outro ponto fundamental é incluir nas negociações o valor das isenções às exportações segundo a Lei Kandir. São pelo menos 30 bilhões durante 20 anos. Se o Rio Grande do Sul é um dos estados que mais contribuem para as receitas cambiais brasileiras, o mínimo que se espera é que o governo estadual use isso como argumento diante do governo federal.
CARLOS DE MARTINI (presidente do Sindicato dos Técnicos Tributários) – Nossa crise é de receitas! A Secretaria da Fazenda argumenta que o Rio  Grande do Sul aumentou a receita do ICMS em 37% entre 2008 e 2014, mas o desempenho da arrecadação do Estado fica em 20º lugar no ranking nacional. Ou, seja, estamos ficando para trás. Há vários indicadores de que poderíamos melhorar as receitas. Temos uma evasão fiscal gigantesca. Segundo a Fecomércio, a pirataria movimenta 65 bilhões de reais por ano no estado. Se aplicarmos sobre esse montante a alíquota de 18% do ICMS, arrecadaríamos mais de 11 bilhões. E quanto perdemos com a sonegação federal, estimada em 539 bilhões por ano? E quanto deixamos de arrecadar em face do 1,5 trilhão de reais das dívidas das empresas com a União? A dívida ativa das empresas como Tesouro do Rio Grande é de 39 bilhões. Por aí vemos que a Secretaria da Fazenda patrocina a privatização, mantendo uma caixa preta, apontada pelo procurador Geraldo da Camino, do Tribunal de Contas. Temos que estatizar a Secretaria da Fazenda. Ela parcela salários do funcionalismo mas perguntem se tem algum fornecedor com atraso no pagamento. Todas as empresas estão recebendo em dia, a começar pela Gerdau. Se não brecarmos a campanha para passar patrimônio público para a iniciativa privada, tenham certeza de que vão privatizar o Banrisul, a CRM, a CEEE e a Sulgás.
JOSUÉ MARTINS (presidente do Sindicato dos Auditores Fiscais do RS) – A dívida pública tem sido usada como instrumento de dominação financeira. É uma situação que vem se agravando. De 91 a 97, a amortização da dívida do RS representou 8% do orçamento. De 98 a 2015, passou para 16,6%. A história registra que os países hegemônicos – Inglaterra no início do século XX e os EUA agora – são os grandes beneficiários do caos financeiro mundial. Nesses momentos em que as amarras do sistema financeiro começam a se esgarçar, é hora de propor algo novo. O Brasil não propõe nada porque está sem projeto. A proposta do governo federal no momento é austeridade para os pobres e ‘o céu é o limite’ para as finanças. O objetivo é manter o estado de joelhos diante do sistema financeiro.
No final do evento, a artista plástica Zorávia Betiol leu um manifesto conclamando a população a cobrar do governo a manutenção das fundações culturais e técnicas.
Representantes das fundações e de outros órgãos do Estado/Divulgação
Representantes das fundações e de outros órgãos do Estado/Divulgação

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