Marília Veronese
Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UNISINOS.
Eu queria mudar radicalmente de tema aqui na coluna. Queria escrever sobre gênero e sexualidade – temas fundamentais hoje, por várias razões -, sobre economia solidária, sobre iniciativas positivas em várias áreas que vejo por aí, falar de cultura e das iniciativas econômicas da periferia, que são muitas e me dão ânimo para continuar vivendo nessa selva de gente enlouquecida e meio perdida que é o planeta Terra. Gente que acha que comprar um monte de bugiganga cara no ‘xópin’ ou ter carrões luxuosos e uma casa suntuosa é o grande objetivo da vida, é sinal que alguém ‘venceu’. Queria escrever sobre a insanidade disso.
Mas a situação em que estamos vivendo hoje simplesmente não me deixa divagar muito cogitando assuntos variados. Acabo de ler, atônita, que Eduardo Suplicy foi preso pela PM fascista de São Paulo! A indignação é tanta que só consigo escrever sobre isso. E ainda bem que ainda consigo escrever, pois não podemos nos deixar paralisar pelo golpe de estado em andamento. A situação toda é tão surreal que é potencialmente paralisante – e isso é parte do problema.
Eduardo Matarazzo Suplicy é um grande cidadão. Um homem honesto, sempre conectado às necessidades do povo brasileiro, sempre presente nas boas lutas. Temos um país governado provisoriamente por um bando de achacadores, fichas-sujas inelegíveis que não têm quadros, têm capangas e cúmplices. Bem o cenário onde gente boa como Suplicy pode terminar presa, mesmo. Pobre Brasil, pobre povo brasileiro. Chegamos ao ápice do absurdo. E os donos da meia tonelada de pasta de cocaína, soltos. Todo repúdio a essa farsa institucional ainda será pouco…
Tá bom, tá bom, tudo isso parece uma reação emocional, mesmo, um desabafo. Confuso e sem análise racional, relacionando fatos que não teriam relação entre si. Mas será que não têm?! Leio nas redes que a prefeitura de Haddad é que pediu a reintegração de posse, postado por quem queria falar mal desse prefeito. Depois leio de defensores que ele tentou impedi-la na justiça, temendo uso da violência, mas não conseguiu e a polícia de Alckmin entrou em ação, investindo contra o povo pobre que luta por moradia, e levando o Eduardo errado pro xilindró. Porque o Eduardo certo a ser encarcerado, o Cunha, ah, esse eles ficam com medinho de prender! Ou não têm interesse em fazê-lo. Então, parece que nessa teia intrincada do nosso presente, tudo tem relação com tudo.
Fazendo uma pausa no texto e nas reflexões já menos emocionais, visito o perfil do Facebook do Suplicy e ouço-o contar o que aconteceu, já tendo sido liberado pela ‘puliça’. Pressentindo a violência iminente da PM sobre as mais de 80 pessoas que estavam resistindo na ocupação de reintegração de posse no Jardim Raposo Tavares, Zona Oeste de São Paulo, interpôs-se entre os dois lados, deitando-se no chão, para evitar que a violência fizesse vítimas. Foi carregado pelos policiais, pois recusou-se a sair de onde estava, pacificamente deitado. Típico gesto ético de desobediência civil visando o bem comum, aos 75 anos de idade! Cada vez o admiro mais, pois é preciso muita coragem para fazer algo assim. No seu perfil na rede social, a posição do ex-senador é declarada sem rodeios: é contra a truculência inaceitável da PM, especialmente da Tropa de Choque, na desocupação de áreas ocupadas. Assim como eu também sou, e quem tem um mínimo de dignidade e compaixão humanas também deveria ser. Essas ocupações urbanas são cheias de crianças e idosos e os adultos que estão lá trabalham, só que mesmo assim não conseguem adquirir ou alugar uma moradia digna para suas famílias. Ao invés de providenciar políticas de moradia decentes, geralmente os governos estaduais lançam as suas polícias militares para cima dos cidadãos reivindicadores.
Ao longo do século XX, com a industrialização e a adoção do modelo do agrobusiness, que provocou um violento êxodo rural para as grandes cidades, houve a formação de áreas urbanas irregulares e ilegais. Os governos pouco fizeram, além de considerar “caso de polícia” e retirá-los à força, ou jogá-los em periferias longínquas e sem infraestrutura urbana para que não “incomodassem”. O Minha casa, minha vida é uma política incompleta e possui alguns defeitos, mas é alguma política, e se tivessem sido feitas ações semelhantes (de preferência melhores) ao longo do século passado, teríamos evitado muitos dos problemas que hoje castigam essas gentes que não têm moradia digna para os seus. E que sofrem violências terríveis do Estado que deveria provê-los com condições de adquirirem uma casa. Mas não, faz de tudo para defender os interesses da bilionária especulação imobiliária!
Matérias em diversos veículos de comunicação, tanto hegemônicos como alternativos, deram conta, há alguns anos atrás, da recomendação da ONU sobre o tema do fim da militarização das polícias no Brasil1. Notícias frequentes de assassinatos de pessoas – inclusive crianças – nas favelas cariocas e demais periferias brasileiras motivaram o relatório e nos assombram, embora sejam negligenciadas por boa parte das classes médias e altas brasileiras. “Onde está Amarildo? ” foi a frase mais repetida nas redes sociais em 2013/2014. Ele – ou seu corpo – nunca apareceram. O auxiliar de pedreiro foi confundido com um bandido e torturado até a morte pela PM, em julho de 2013, é o que se concluiu. Quem era mesmo o bandido?! Apesar de parte dos culpados terem sido julgados e condenados em janeiro de 2016, isso só aconteceu devido à intensa pressão popular, nas redes e nas ruas, que não cedeu até ver algo feito a respeito.
Em nome do “combate ao tráfico”, a polícia muitas vezes atira primeiro e pergunta depois. As balas “perdidas” – que as vezes atingem mães trabalhadoras, pretas e pobres, indo na padaria comprar pão para a família2, como Claudia, ou crianças como Jonathan, assassinado pela polícia em Manguinhos3, são parte do cotidiano dos bairros periféricos. Os moradores dessas periferias têm igual medo dos bandidos e dos policiais. “Se é preto e mora na favela, é bandido e tem de levar bala”, parecem pensar PMs e boa parte da população anestesiada (aquela que mora dentro da caverna, como descrevi em texto anterior). “Que hipocrisia, essa PM mata pobre todo dia!”, respondem os moradores das periferias acossadas pela violência, tanto de agentes do tráfico como de agentes policiais. Espero o dia que eles tomarão as ruas do asfalto, exigindo seus direitos. Estarei lá com eles. Eu, o Eduardo certo e tenho certeza que muita gente mais.
Quando noticiam, os jornais geralmente escrevem que houve morte de “traficantes”, e não de “pessoas”, pois pretendem encarnar a ideia de “inimigo interno”, desumanizado, que precisa ser abatido em nome da paz das “pessoas de bem”. A desumanização coloca a todos no mesmo saco e não se pensa que a razão disso tudo é a falida guerra às drogas e uma noção completamente equivocada de segurança pública, calcada nessa ideia de inimigo a ser combatido. No tempo da ditadura era o “subversivo” e agora é o “periférico”, sempre um suspeito. Ah, e não me venham dizer, “mas os policiais também morrem, bandido bom é bandido morto e blá, blá, blá”, pois é óbvio que isso é igualmente trágico, igualmente insano e igualmente injusto. Uma coisa não justifica nem anula a outra. É preciso parar com a mortandade de uma vez por todas. Mas como só pobres da favela e ex-senadores do ‘petê’ parecem ser alvos da ‘puliça’, voltamos à estaca zero.
“Informam agora que o Suplicy já foi solto. Mas o Aecius Aegypti nunca foi preso.” Essa foi publicada hoje pelo meu amigo Moisés Mendes, em seu excelente blogue diariamente alimentado, que tem perfil no Facebook. Nem nunca foi investigada sua ligação com os Perrela, nem com o aeroporto irregular de Cláudio, né, Moisés? Parece que os guardiões da eterna reprodução das desigualdades e injustiças brasileiras não permitem a real busca da justiça no nosso país.
Aliás, a justiça não pune os ricos por aqui. Essa frase já deu título a uma ótima matéria de autoria da repórter Tatiana Merlino4, ganhadora do prêmio Vladimir Herzog em 2009. Merlino narra a história de uma moça pobre e negra, empregada doméstica, com deficiência mental leve, que foi presa por tentar furtar um xampu e um condicionador que somavam 24 reais na época. Sofreu o pão que o diabo amassou na prisão e seu pedido de habeas corpus foi negado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Entretanto, mais ou menos no mesmo período, o pedido ingressado pela defesa da dona da grife Daslu, Eliana Tranchesi, condenada por vários crimes contra o erário público, foi acatado em menos de 24 horas. A proprietária da butique de luxo devia aos cofres públicos cerca de 1 bilhão de reais. Era muito rica, justamente por causa de tanta sonegação e picaretagens. A moça presa por dois anos, Maria Aparecida, que ficou cega de um olho na prisão, era uma invisível, era muito pobre. E com os pobres é assim: os lugares, para eles, são mais longe. Assim disse o grande escritor Guimarães Rosa5, e tinha toda a razão. Os lugares e a possibilidade de justiça, para eles, são bem mais longe. Os diretos básicos lhes são negados e a injustiça é seu cotidiano. Para eles, sobra a violência policial, o desinteresse do Mercado e o abandono do Estado.
Eduardo Suplicy é o Eduardo certo. Um herói e um abnegado para estar ao lado deles, aos 75 anos de vida, exercendo sua empatia e compreendendo que eles precisam é de políticas públicas sérias, não de desprezo ou truculência. Esse texto é em sua homenagem – ao Eduardo e aos seus ‘compas’ que reivindicam moradia. E esse senhor ainda tem um excelente senso de humor, pois publicou em sua timeline o link a seguir, imperdível: https://catracalivre.com.br/geral/humor/indicacao/7-momentos-em-que-suplicy-foi-o-assunto-do-dia-em-sua-timeline/, acompanhado do texto: “Na vida precisamos olhar os fatos sempre com olhos positivos, na esperança de que as coisas vão melhor. Nada como ter bom-humor para os acasos da vida. Acho que nesse dia do avô meus netos vão se divertir. ” É mesmo um querido. Parabéns, Eduardo! Você é o cara certo no lugar certo!
1 http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/05/paises-da-onu-recomendam-fim-da-policia-militar-no-brasil.html
2 https://juntos.org.br/2014/03/claudia-e-amarildo-tragedias-anunciadas-na-cidade-maravilhosa/
3 http://www.global.org.br/blog/carta-do-forum-de-manguinhos-de-apoio-aos-familiares-de-jonathan-de-oliveira-lima-e-repudio-a-seu-assassinato/
4 http://www.revistaforum.com.br/rodrigovianna/outras-palavras/por-que-a-justica-nao-pune-os-ricos-por-tatiana-merlino/
5 Em “Sorôco, sua mãe e sua filha”, conto de Guimarães Rosa.