João Alberto Wohlfart – Doutor em Filosofia pela PUCRS e professor de Filosofia no IFIBE
O golpe aplicado na Presidente Dilma Rousseff pela oligarquia política do congresso nacional, pela mídia dos grandes meios de comunicação social, pelo judiciário direitista ultraconservador e por grandes corporações capitalistas evidencia os seus efeitos em todos os espaços e em todos os setores. O que acontece no epicentro do poder em Brasília, os interesses que se escondem e as forças de poder se disseminam por toda a sociedade. Abordaremos no artigo que segue alguns desdobramentos sistêmicos do golpe e que sentimos duramente em todas as esferas nas quais nos encontramos.
O golpe tem um viés econômico que tem tudo a ver com o capitalismo internacional e nacional. Os atores do golpe são grandes elites capitalistas nacionais e internacionais diretamente interessadas em nossas riquezas naturais, tais como a Amazônia, o Pré-sal, os minérios, as terras etc. O fundo do golpe é uma nova fase do imperialismo capitalista internacional que visa transformar o Brasil em uma das colônias privilegiadas da voracidade devoradora da imensa fome capitalista. Diante desta força devoradora das grandes corporações capitalistas, qualquer projeto nacionalista, que envolve algumas das políticas adotadas pelos governos Lula e Dilma fogem aos interesses privatistas dos golpistas. Este é um dos motivos basilares pelos quais a elite dominante depõe a Presidente Dilma e deseja acabar como PT.
A crise econômica que o país atravessa nos últimos tempos tem as marcas da elite golpista. Como o Brasil estava emergindo como uma nova potência mundial, impulsionada por algumas políticas estatais estruturantes, desestabilizaram mundialmente os preços do petróleo, dos minérios, da soja e outros produtos agrícolas, o que inevitavelmente colocou o país em crise. Soma-se a isto a crise hídrica que causou uma profunda restrição no setor elétrico, provocando o aumento considerável do preço da energia elétrica. Uma significativa classe social, amplamente beneficiada por Lula e Dilma, sentiu profundamente os efeitos de contingenciamentos e os meios de comunicação aproveitaram o descontentamento destas classes e incendiaram um onda de protestos contra Dilma. Assim, a profunda crise política na qual o Brasil atualmente está mergulhado inviabiliza qualquer perspectiva de retomada da atividade econômica em curto prazo, com a qual o povo sofre profundamente.
O golpe em curso tem efeitos danosos na política. Definitivamente, a política deixou de ser o poder do povo para o povo. Como a ética e a política foram cindidos, a política se transformou numa estratégia de domínio de uma pequena classe de privilegiados que explora a grande massa da população. Vimos no golpe em curso a força em coro de um grupo elitista nacional e internacional, através de um processo parlamentar que envolve o congresso nacional, o judiciário, os meios de comunicação, para inviabilizar a efetivação de qualquer projeto democrático. Os poderes do Estado, constituídos para salvaguardar a Constituição e a Democracia, são os primeiros a violentá-las e dissolvê-las. Em função da cisão estabelecida entre estes poderes e o povo brasileiro, transformaram-se em articuladores do golpe, numa ação política de extrema direita. As vozes do povo que emanam dos mecanismos políticos legitimamente estabelecidos se perdem e a política se transforma na voz dos mais fortes, tudo na legitimidade parlamentar e jurídica.
O golpe em curso tem consequências doutrinais e ideológicas. Estamos assistindo a volta de formas de pensamento autoritárias e conservadoras. Elas estão vindo com toda a força e se destinam a legitimar um estado de coisas existente, inviabilizando qualquer tentativa de transformação social. São fundamentalismos econômicos, religiosos, políticos e sociais. São facilmente perceptíveis dogmatismos neoliberais ligados ao privatismo econômico, ao mercado absoluto e dominador, ao individualismo consumista etc. Os dogmatismos religiosos são visíveis nos muitos fiéis que ostentam práticas devocionais, concepções superadas como o criacionismo e práticas religiosas separadas da realidade. A leitura fundamentalista da bíblia é uma das facetas deste dogmatismo. A faceta mais conservadora do fundamentalismo é concentrada num significativo grupo de políticos que habita o congresso nacional, que carrega a bíblia embaixo do braço e representa uma das facetas mais conservadoras da política brasileira. É uma forma de encobrir com a santa religião e com discurso moralista um conjunto de interesses econômicos.
O golpe protagoniza tensões e enfrentamentos extremos. É a tensão entre a casa grande e a senzala, entre o povo e a oligarquia dominante, entre o patriarcalismo de direita e as esquerdas políticas etc. Mas as supremas tensões carregam em si mesmas o fenômeno da indiferenciação e da indistinção. Esta indiferença se manifesta na massificação da opinião pública amplamente dominada pelos grandes meios de comunicação social, na postura religiosa ultraconservadora, no discurso fascista contra o PT e contra Lula, na voz unívoca dos meios de comunicação, na generalização de um discurso que retrata apenas uma pequena fração da realidade, sem permitir que ela apareça de forma abrangente. O que circula nos meios de comunicação, nas mentes das pessoas e o que é comentado no dia a dia caracteriza uma aparência imediata que esconde uma realidade muito mais ampla e complexa. Trata-se do fenômeno do cinismo generalizado e universalizado, expresso principalmente na dogmatização de uma visão imediata e parcial da realidade. Em outras palavras, a realidade é encoberta por um discurso imediato, não raras vezes expresso numa linguagem de deboche. Vê-se um discurso uniformizado, extremamente superficial, imediato, parcial e fragmentado, que tomou conta de toda a sociedade e se manifesta numa opinião pública intensamente massificada.
A massificação da opinião pública, em forma de cinismo social, é um ambiente propício para que os golpistas possam impor o seu projeto. Diante da massificação da informação intensamente interiorizada pela população, as vozes democráticas e os discursos que apontam para outra interpretação da realidade ficam sem força. Neste contexto, uma iniciativa de desmistificação dos interesses ideológicos que se escondem por debaixo do golpe, não vai ter expressão na opinião pública e não terá força de transformação social. Em outras palavras, um discurso místico e parcial toma conta da realidade, enquanto que um discurso mais crítico e abrangente fica proibido de ser dito. Os meios de comunicação exercem um papel central para que a opinião pública se configure desta maneira. Talvez seja esta a intenção de fundo para a implantação da dita escola sem partido, para excluir da escola toda a tentativa de gestação de um pensamento crítico e sistemático.
O fenômeno social aqui indicado precisa produzir a sua negação, a sua oposição, a sua contradição interna em tensões sociais com posições e práticas diferentes e opostas. A imensa superficialidade da opinião pública e o cinismo social precisam ser quebrados e produzir uma nova configuração e correlação de forças. Para a quebra da indiferença e imediatez social precisam aparecer novas forças de informação, novas forças políticas, novas concepções sociais, novos discursos capazes de penetrar na estrutura social. E esta oposição deve configurar-se em nova síntese social, em nova estrutura social para redimensionar o Estado e os poderes constituídos. Estes fenômenos devem dar outra função ao congresso nacional e ao supremo tribunal federal, no sentido de recuperarem a vanguarda da Democracia e da vontade popular. Mas, considerando o cenário nacional de hoje, com quase certeza devem aparecer fenômenos sociais intensos opostos ao que hoje vivenciamos e interpretamos epistemologicamente.
Mas os efeitos do golpe não param por aí. Ele tem consequências locais, nacionais e internacionais. Representa a ruptura de uma série de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, especialmente no que concerne à Democracia e à liberdade dos povos. Uma geografia complexa de relações internacionais na qual o Brasil figura como um dos atores fundamentais pode ser dissolvida. Neste cenário, corremos o risco de voltar a um modelo de relação de dependência diante das grandes potências do norte e perder a soberania nacional. A plataforma de fundo de um golpe como aquele que estamos assistindo, no qual o que não é dito e não aparece na telinha da televisão, são os interesses capitalistas internacionais que representam os motivos fundamentais. Todos os dias observamos a tendência de dissolução de importantes conquistas do povo resultantes de muita luta, suor e sangue de muitas gerações. A condição de importante ator internacional conquistada pelo Brasil nos últimos anos tende a desaparecer e a se transformar, em pouco tempo, numa republiqueta sem expressão internacional.
Com estas considerações, as consequências do golpe aparecem na totalidade da estrutura social, na economia, na política, na religião, na cultura e no conhecimento. Tem a sua faceta na padronização da informação e na consequente massificação da opinião pública, que repete em toda a sua abrangência um discurso superficial e imediato. Uma possível força de contradição de uma opinião mais crítica e sistemática, por ora, não tem muita força. O golpe se transformou num fenômeno de muitas dimensões, pois penetra no interior das relações interpessoais mais restritas, no interior das famílias, dos grupos, e se estende para o cenário nacional e internacional.