O Brasil voltou para o mapa da fome. Nunca saiu, na verdade.
Em 2013, quando o país saiu do Mapa da Fome da ONU, o IBGE ainda contava mais de 9 milhões de brasileiros passando fome.
Agora voltou com tudo.
Uma pesquisa divulgada nesta segunda feira, 05, conclui que no Brasil da pandemia 19 milhões de pessoas não sabem o que vão comer no dia seguinte. Isto é, em cinco anos cerca de 10 milhões de brasileiros entraram para o bloco da fome.
Mais grave: os brasileiros em “situação de insegurança alimentar” chegam a 116,8 milhões. Ou seja, mais da metade da população não tem emprego ou renda para atender suas necessidades básicas, a começar pela comida.
Os dados são do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), como parte do projeto VigiSAN.
A íntegra do trabalho está aqui: olheparaafome.com.br
O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 foi realizado em 2.180 domicílios nas cinco regiões do país, em áreas urbanas e rurais, entre 5 e 24 de dezembro de 2020.
Os resultados mostram que nos três meses anteriores à coleta de dados, apenas 44,8% dos lares tinham seus moradores e suas moradoras em situação de segurança alimentar. Isso significa que em 55,2% dos domicílios os habitantes conviviam com a insegurança alimentar, um aumento de 54% desde 2018.
Em números absolutos: no período abrangido pela pesquisa, 116,8 milhões de brasileiros não tinham acesso pleno e permanente a alimentos.
Desses, 43,4 milhões (20,5% da população) não contavam com alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave) e 19,1 milhões (9% da população) estavam passando fome (insegurança alimentar grave).
É um cenário que não deixa dúvidas de que a combinação das crises econômica, política e sanitária provocou uma imensa redução da segurança alimentar em todo o Brasil.
Brasil fora do mapa
Problema histórico no Brasil, a fome recuou entre 2004 e 2013, em função das políticas públicas de combate à pobreza e à miséria.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em 2004, 2009 e 2013, registra essa redução da insegurança alimentar em todo o país.
Em 2013, a parcela da população em situação de fome havia caído para 4,2% – o nível mais baixo até então.
Isso fez com que a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura finalmente excluísse o Brasil do Mapa da Fome que divulgava periodicamente.
Esses resultados foram anulados. Os números atuais são mais do que o dobro dos observados em 2009.
E o retrocesso mais acentuado se deu nos últimos dois anos.
Entre 2013 e 2018, segundo dados da PNAD e da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares), a insegurança alimentar grave teve um crescimento de 8,0% ao ano.
A partir daí, a aceleração foi ainda mais intensa: de 2018 a 2020, como mostra a pesquisa VigiSAN, o aumento da fome foi de 27,6%.
Ou seja: em apenas dois anos, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar grave saltou de 10,3 milhões para 19,1 milhões.
Fome tem lugar
Segundo a pesquisa VigiSAN, a insegurança alimentar cresceu em todo país, mas as desigualdades regionais seguem acentuadas.
As regiões Nordeste e Norte são as mais afetadas pela fome.
Em 2020, o índice de insegurança alimentar esteve acima dos 60% no Norte e dos 70% no Nordeste – enquanto o percentual nacional é de 55,2%.
Já a insegurança alimentar grave (a fome), que afetou 9,0% da população brasileira como um todo, esteve presente em 18,1% dos lares do Norte e em 13,8% do Nordeste.
O Nordeste apresentou o maior número absoluto de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, quase 7,7 milhões.
Já no Norte, que abriga apenas 7,5% dos habitantes do Brasil, viviam 14,9% do total das pessoas com fome no país no período.
Além disso, a conhecida condição de pobreza das populações rurais, sejam elas de agricultores(as) familiares, quilombolas, indígenas ou ribeirinhos(as), tem reflexo importante nas condições de segurança alimentar. Nessas áreas, em todo o país, a fome se mostrou uma realidade em 12% dos domicílios.
Quem passa fome
Nos dados de 2020, em 11,1% dos domicílios chefiados por mulheres os habitantes estavam passando fome, contra 7,7% quando a pessoa de referência era homem.
Das residências habitadas por pessoas pretas e pardas, a fome esteve em 10,7%.
Entre pessoas de cor/raça branca, esse percentual foi de 7,5%.
A fome se fez presente em 14,7% dos lares em que a pessoa de referência não tinha escolaridade ou possuía Ensino Fundamental incompleto.
Com Ensino Fundamental completo ou Ensino Médio incompleto, caiu para 10,7%. E, finalmente, em lares chefiados por pessoas com Ensino Médio completo em diante, despencou para 4,7%.
A fome vem acompanhada de muitas outras carências, destacadamente a falta de água.
A insegurança hídrica, medida pelo fornecimento irregular ou mesmo falta de água potável, em 2020, atingiu 40,2% dos domicílios no Nordeste e 38,4% na região Norte, percentuais quase três vezes superiores aos das demais regiões.
O abastecimento irregular de água é uma das condições que aumentam a transmissão pessoa a pessoa da Covid-19, ocorrendo com maior frequência em domicílios e regiões mais pobres do país.
A relação entre a insegurança alimentar e a insegurança hídrica é incontestável.
Segundo a pesquisa VigiSAN, a proporção de domicílios rurais com habitantes em situação de fome dobra quando não há disponibilidade adequada de água para a produção de alimentos (de 21,8% para 44,2%).i
Em dois ano houve um aumento acentuado na proporção da insegurança alimentar leve – de 20,7% para 34,7%.
Cerca de metade dos entrevistados relatou redução da renda familiar durante a pandemia, provocando inclusive cortes n as despesas essenciais. Esses lares constituem o grupo com maior proporção de insegurança alimentar leve – por volta de 40%.
Isso aponta para o impacto da pandemia entre famílias que tinham renda estável, que provavelmente foram empurradas da segurança alimentar para a insegurança alimentar leve.
A crise econômica agravada pela pandemia está fazendo com que a insegurança alimentar se alastre inclusive entre os que não se encontram em condição de pobreza.
Um dado se destaca: a insegurança alimentar moderada e grave desaparece por completo em domicílios com renda familiar mensal acima de um salário-mínimo per capita: 0,0%.
No que se refere à situação de trabalho da pessoa de referência dos domicílios, a ocorrência da fome foi quatro vezes superior entre aquelas com trabalho informal e seis vezes superior quando a pessoa estava desempregada.
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