Eleições 2024: um ciclo de 20 anos está em jogo em Porto Alegre

José Fogaça com Sebastião Melo, na convenção do MDB este ano.

Na virada do milênio, Porto Alegre parecia um caso exemplar de cidade democrática, popular, participativa.

Começara antes, em 1985, na primeira eleição depois da ditadura: Alceu de Deus Collares, nascido em Bagé, antigo militante do trabalhismo de Vargas, foi o primeiro negro a sentar na cadeira de prefeito. Com ele vingou a ideia de conselhos populares para discutir as prioridades da gestão municipal.

Quatro anos depois, a população elegeu o sindicalista Olívio Dutra, candidato de uma “frente popular” formada pelo Partido dos Trabalhadores, Partido Comunista Brasileiro e Partido Comunista do Brasil.

Os ventos da constituição de 1988, abrindo canais para a participação popular e aumentando a receita dos municípios reacenderam antigas experiências de movimentos comunitários que estavam adormecidas por duas décadas de autoritarismo.

Isso tornou possível um projeto de participação direta nas discussões do orçamento público municipal. Não era original, experiências de Orçamento Participativo já tinham sido feitas em vários municípios no Brasil e na América Latina.

Nenhuma, porém, nem antes nem depois,  teve o alcance do OP Porto Alegre. Além da disposição do governo municipal de abrir espaço à participação direta da cidadania, já havia na cidade um conjunto de agentes com grande experiência associativa, um movimento comunitário formado por associações de bairro, clubes de mães, defensores do meio ambiente, parte deles já envolvidos nos conselhos populares de Collares.

“Após a vitória é que surge o OP e o formato que ele adquiriu foi construído, não sem conflitos, por esses agentes sociais e o governo”*.

Os efeitos da participação dos moradores nas decisões do orçamento do município logo se traduziram numa inversão de prioridades do governo.

Em vez de grandes obras, melhorias localizadas nos bairros, escolhidas pelos moradores: pavimentação de ruas, extensão de redes de água e esgoto, iluminação pública, construção de creches e casas populares. Os críticos diziam que a administração só cuidava de “pintar o meio fio das calçadas”.

Mas a população gostou, tanto que deu mais três mandatos à Frente Popular que ganhou projeção nacional e internacional. “Porto Alegre se tornou a mais duradoura, premiada e conhecida nacional e internacionalmente experiência de participação direta da população em políticas públicas”**.

Uma pesquisa no ano 2000 registrou 140 cidades brasileiras com Orçamento Participativo, tendo como referência Porto Alegre.

Naquele ano, 15 plenárias temáticas  e seis regionais do OP, para decidir as prioridades, envolviam 20 mil representantes de comunidades.

A eleição de Olívio Dutra para governador do Estado, pela mesma Frente Popular, em 1998, e quatro anos depois, a chegada de Lula à presidência da República pareciam culminar uma tendência de longa duração, iniciada em Porto Alegre, estendida para todo o país.

Governos de esquerda em diversos países da América Latina, um partido socialista no poder na Espanha, eram fatores externos também influíam na experiência de democracia participativa experimentada em Porto Alegre.

Esse ambiente credenciou a capital do Rio Grande do Sul para sediar, em 2001, o I Fórum Social Mundial, movimento das esquerdas internacionais por um outro mundo possível, como alternativa ao capitalismo financeiro que se impunha ao mundo com a globalização.

Os desfiles de abertura e encerramento, com mais de 100 mil pessoas pela avenida Borges de Medeiros ganharam  as atenções do mundo inteiro. Porto Alegre era “A cidade vermelha”, segundo o Le Monde, de Paris.

Mas havia, ao mesmo tempo um outro movimento, no sentido contrário.

Nos Estados Unidos e na Europa desmonta-se o Estado de Bem Estar Social, limitando os sindicatos e liberando os negócios. Cai o Muro de Berlim e esfacela-se a União Soviética, o capitalismo ganhou a Guerra Fria.  O liberalismo teorizado por Friedrick Hayek e Milton Friedman ganha foros de cartilha mundial.

No Brasil, Fernando Collor de Melo se elege em 1989 alinhado com essa agenda. Promete um “choque de capitalismo”. Abre o mercado brasileiro, fomenta importações, desregula os negócios.

Seu sucessor, Fernando Henrique Cardoso, proclamou o fim da  “Era Vargas” , em que o Estado era o agente do desenvolvimento e entregou as principais estatais à iniciativa privada.

Essa conjuntura externa, foi alterando a percepção daquele “caminho localista” em Porto Alegre. Interesses contrariados, o desgaste natural do poder prolongado, a burocratização, vários fatores contribuem.

Os empresários queixavam-se de excessiva regulação, as lideranças comunitárias reagiam ao dirigismo partidário. Dentro da própria frente popular surgem divergências, inquietações com a protelação de medidas realmente transformadoras.

Um exemplo: o “gatilho” que garantia a reposição das perdas com a inflação a cada dois meses foi positiva, deu motivação aos funcionários municipais. Mas em seguida comprometeu o equilíbrio  do orçamento, duramente conquistado. Dividiu internamente.

Quando se viu, a oposição, com um candidato “escolhido a dedo” quebrou o jogo, em 2004, elegendo José Fogaça, advogado, professor, músico (autor de “Porto Alegre é demais,” hino informal da cidade), deputado federal, duas vezes senador pelo MDB.

Conciliador, com bom trânsito na esquerda, sem atritos à direita, Fogaça, então filiado ao PPS, começou reconhecendo os méritos do adversário em seu slogan: “Manter o que é bom, mudar o que está errado”.

Um de seus compromissos: manter o Orçamento Participativo, que ainda projetava Porto Alegre e tinha apoio popular.

Fogaça ficou em segundo lugar no primeiro turno, com 28,3% dos votos, mas no segundo turno aglutinou forças e alcançou os 53% que lhe deram a vitória.

Um ciclo de 16 anos se rompeu e o que poderia ter sido uma vitória fortuita ganhou outra dimensão com a crise política que estourou em seguida.

Em junho de 2005, o deputado Roberto Jefferson de um dos partidos aliados do presidente Lula, denunciou a compra de votos na Câmara dos deputados, para aprovar projetos do governo.

Foi o escândalo do Mensalão, uma bomba que atingiu em cheio o Partido dos Trabalhadores e seu discurso quanto à moralidade pública. O presidente Lula conseguiu restabelecer seu prestígio e se reeleger no ano seguinte. Mas o PT de Porto Alegre não se recuperou do abalo, embora não tivesse nenhum de seus líderes implicados nas denúncia. “O PT gaúcho, sempre rigoroso na cobrança de princípios éticos foi o mais atingido. A militância mais aguerrida sofreu profunda decepção e a própria liderança se abalou com o Mensalão”***.

Não foi só isso. A Frente popular nunca teve maioria na Câmara Municipal. No seu melhor momento teve 14 vereadores num plenário de 33. Na Câmara cresceu o sentimento de que o OP e outros canais de participação direta estavam usurpando atribuições do Legislativo.

Fora as despesas compulsórias – folha de salários, dívida, custeio – a destinação do orçamento era decidida entre o poder executivo e a população, através das plenárias, dos fóruns ou conselhos, à margem do legislativo.

Não por acaso a Câmara Municipal promoveu, em março de 2008, um ciclo de conferências chamado “Porto Alegre, uma visão de futuro”, para discutir a gestão da cidade, que estaria muito voltada para as questões do dia a dia, sem “olhar para a frente”.

Na eleição naquele mesmo ano reelegeu-se José Fogaça e as sucessivas derrotas foram selando o rechaço ao legado petista. Os mecanismos de gestão participativa foram perdendo a prioridade, a começar pelo OP.

Embora o discurso fosse de manter as plenárias e outros canais de participação, na prática uma sequência de medidas foram mudando os rumos.

Foram ganhando eco as propostas de reduzir o tamanho da estrutura pública, transferindo ao setor privado, através da concessão ou terceirização, a prestação de muitos serviços públicos – desde a poda de árvores ao recolhimento do lixo.

Esse modelo reconsidera o papel do poder público. Em vez de planejar e organizar ou dirigir o crescimento da cidade, o papel do governo é cada vez mais o de licitar e transferir  serviços e espaços públicos  para empresas privadas.

É uma tendência que se aprofundou depois da crise de 2015, radicalizada a partir de 2016, com a eleição de Nelson Marchezan Junior, e continuada com a eleição de Sebastião Melo, em 2020.

É essa continuidade que está em jogo neste segundo turno de 2024.

*História dos Movimentos Populares em Porto Alegre”, Baierle (1992) e Avritzer (2002),

**“Orçamento Participativo: projetos políticos partilha de poder e alcance democrático. Ana Cláudia Chaves e Maria do Carmo Albuquerque, in “Disputa pela Construção Democrática na América Latina”, Evelina Dagnino, Alberto Oliveira e Aldo Panfichi, 2006, Paz e Terra, Unicamp, Fundação Ford.

***A crise desencadeada em março de 2014, pelas denúncias de corrupção da Operação Lava Jato, culminou com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, substituída pelo vice Michel Temer que deu início às reformas do receituário liberal, aprofundadas com a eleição de Jair Bolsonaro e a gestão de Paulo Guedes na Economia.