A maior derrota do ocidente na era moderna. Assim é chamada a saída das tropas da OTAN do Afeganistão. Independente do ângulo a ser observado, ela representa um fracasso sem precedentes, e que irá reverberar pelo mundo todo por muito tempo.
Na perspectiva alemã, segunda maior presença militar depois dos Estados Unidos, a manobra teve nuances nítidas de uma fuga acovardada. Logo no primeiro atentado ao aeroporto em Cabul, os alemães fizeram as malas e vazaram para o Uzbequistão. Quatro dias antes do prazo final acordado com o Talibã, três aviões do Exército (Bundeswehr) pousaram na base militar de Wunstorf, próximo a Hannover. Neles, os últimos 440 soldados da missão germânica.
A bordo, junto com a tropa, estava a ministra da defesa, Annegret Kramp-Karrenbauer. Ela foi ao Uzbequistão para acompanhar o encerramento do resgate. No desembarque em solo alemão, fez um pronunciamento rápido, juntamente com o comandante da operação, o general de Brigada Jens Arlt. Ambos elogiaram a competência e a eficiência na “extremamente difícil e perigosa” evacuação. Nenhum mencionou falhas. Especialmente o fato de que foram deixados para trás mais de 300 alemães e outros milhares de antigos colaboradores nativos, agora sob o jugo talibã.
Para dar um ar mais dramático ao evento, todos os soldados desceram dos aviões carregando suas armas e em trajes de combate. Até o general Arlt carregava pendurada uma G-36, fuzil de assalto exclusivo do exército alemão. Durante o discurso da ministra, ele por vezes mantinha o dedo na trava do gatilho da arma, como que pronto para responder a um ataque inimigo. “Na Alemanha!? Ele nunca nem pegou nessa arma no Afeganistão”, comentou, em tom de brincadeira, um colega da Agência de Imprensa do Governo durante a recepção. Outros presentes pareciam consternados com a encenação, que terminou com um abraço carinhoso de Annegret no general, e o fuzil pendurado entre eles.
Apesar do teatro dirigido pelo marketing político, o desgaste causado pela desastrosa retirada é nítido. Tanto que políticos da própria União (CDU/CSU) se anteciparam às críticas. “Fomos sem dúvida desacreditados, mas é importante reconhecer os avanços conquistados e trabalhar para mantê-los através da diplomacia”, declarou Roderich Kiesenwetter (CDU), presidente do Comitê de Relações Exteriores da coalizão. “É uma série de lições amargas que devemos aprender desse episódio”, acrescentou ele, lembrando da infraestrutura construída pela OTAN e agora prestes a ser concedida a empresas chinesas.
Faltando menos de um mês para a eleição geral do parlamento, a catástrofe geopolítica no Afeganistão é só uma pá de cal nas pretensões de Angela Merkel de fazer o seu sucessor (a). Uma gota de água, em um oceano de erros no cálculo político. Um processo de desgaste que vem ocorrendo desde o início da pandemia.
Movimento esquisito
O fato que atesta internamente a profundidade e abrangência da crise, aconteceu durante os protestos contra o governo no início de agosto. Quando a saída do Afeganistão ainda não trazia nenhum sentimento de vergonha. Como uma rotina dos finais de semana, milhares de pessoas foram às ruas das principais cidades do país. Convocadas pelo chamado “Movimento dos Pensadores Queer, ou Esquisitos” (Querdenken Bewegung), elas demostravam sua inconformidade com as medidas de contenção da pandemia em vigor há 15 meses, mantendo suspensos direitos individuais fundamentais garantidos pela constituição.
Para mostrar força política e moral, o governo federal, em parceria com a prefeitura, havia proibido os protestos convocados para o domingo (01/08) na capital, Berlim. Alegando desrespeito às “normas de segurança sanitária”, as autoridades tentavam barrar o crescimento do movimento. Além do muro político-midiático que o cerca, desta vez foram convocados mais de três mil policiais para debelar qualquer tentativa de ajuntamento.
Apesar da proibição e da intimidação policial, dezenas de milhares de pessoas marcharam pelas ruas dos principais bairros da antiga parte capitalista de Berlim. Reportagem do grupo Die Welt no Youtube mostra o fiasco do aparato autoritário preparado para reprimir os protestos. Em uma das cenas, policiais empurram duas senhoras de mais de 60 anos que tentavam passar de uma rua para a outra, acompanhando outras pessoas na marcha.
Corrupção legalizada
A discussão que se seguiu às cenas de violência policial, mais a sua nítida inutilidade para conter uma massa de pessoas pelas ruas, conotam uma nova qualidade do ambiente político na maior economia da Europa. Já não são radicais de direita ou de esquerda, confrontando um governo eleito democraticamente. O que se vê hoje nas ruas são pessoas simples, eleitores dos partidos da coalizão do governo no parlamento e que estão fartas das contradições e conflitos de interesse que marcam a política para a pandemia desde o seu início.
Os exemplos só se acumulam. O ministro da saúde, Jens Spahn (CDU), comprou durante a primeira onda da pandemia três imóveis milionários em Berlim. Entre eles, a mansão em que mora junto com seu marido, avaliada em três milhões de euros. Como um bom financista, Spahn pagou os imóveis com empréstimos generosamente concedidos pela Sparkasse, a Caixa Econômica Federal dos alemães, onde havia trabalhado anos antes como membro do “Board” da administração. Em resposta, o ministro processou os autores da denúncia, obtendo liminar da justiça sob alegação de “uso político de um assunto privado”. Afinal, toda a transação foi legal.
No início da segunda onda, Merkel e Spahn tentaram impor a obrigatoriedade de um só tipo de máscaras, as chamadas FFP2. Tecnicamente eram “as mais seguras”. A medida chegou a ser implementada, gerando uma demanda imensa para as empresas que produzem tal insumo. Em seguida apareceram os primeiros casos de lobby dentro do parlamento. De cara, dois deputados da União Democrata-Cristã (CDU) foram denunciados por receberem comissão pela venda de máscaras para o governo. Uma bagatela de 200 e 600 mil euros para cada um deles.
Opinião cristalizada
Novamente, tudo conforme a lei, já que o trabalho de lobby é legalizado no país. O erro dos parlamentares foi não ter feito a declaração de ganho extra, que é obrigatória. Como resultado acabaram “licenciados” de seus cargos. O caso apenas relembrou aos alemães que muitos parlamentares trabalham como lobistas de interesses corporativos dentro do parlamento. E quase nunca declaram seus ganhos paralelos.
No final, a obrigatoriedade de um tipo específico de máscara foi contestada por médicos e especialistas. Sem esquecer que, até hoje, os alemães não sabem se qualquer tipo de máscara protege efetivamente. “Não existe evidência científica de que o uso de máscaras proteja quem usa, ou quem está em volta. Um vírus como o corona não é freado assim. O uso de máscara em lugares abertos é um absurdo”, atestou o presidente do Conselho Federal de Medicina da Alemanha (Bundesartztkammer), Klaus Reinhardt, em entrevista no dia 21 de Outubro de 2020.
O mais interessante é que uma questão assim não consegue ser debatida em um país altamente desenvolvido. “Da perspectiva científica trata-se de um carnaval de opiniões, onde ninguém sabe quem é quem”, brinca o filósofo e apresentador Richard David Precht. O que desespera é não parecer haver mais espaço para discussões sobre as controvérsias. Cada um dos lados cristalizou em sua própria posição, e não há sinais de que tal inércia possa agora ser revertida.
Um comentário em “Marketing político é a única arma contra vexame no Afeganistão”