Guilherme Kolling
Na manhã da quinta-feira 25 de agosto, o movimento começou cedo no saguão de espera da 2a Vara do Fórum Central de Porto Alegre. Dava para notar que algo de importante estava por acontecer ali. Às 8h30 da manhã, uma equipe de TV estava a postos.
Um segurança vigiava qualquer movimento no local, ostentando seu revólver na cintura. Parecia tenso. Não parava quieto, jogando o peso do corpo de um lado para o outro, como se fosse um joão-bobo.
A espera era pelo depoimento dos três judeus que foram vítimas do ataque de skinheads em 8 de maio no Bar Pingüin, na Cidade Baixa. Eles iriam falar do caso que levou à prisão de quatro suspeitos: Israel da Silva, Valmir Macahdo Jr., Leandro Braun e Laureano Vieira Toscani.
A sessão começava às 9h, mas bem antes já tinha gente esperando. Uma das primeiras a chegar foi a esposa de Israel. Ficou quieta num canto até ser abordada. Garantiu a inocência do marido. “Na hora do crime, ele estava comemorando o nosso aniversário de casamento e o aniversário da mãe dele”, balbuciou.
Mais jornalistas chegaram e formaram uma rodinha. Havia estranheza sobre a já divulgada mudança de rumo no caso. “Mas eles não tinham sido reconhecidos?”, perguntou um repórter. “Não entendo o que aconteceu”, disse o colega. “A gente fez a matéria, as vítimas reconheceram os caras”, comentava, mostrando o xerox do jornal da época.
Um outro círculo logo reuniu parentes dos acusados. Na maioria, mulheres, que vinham esperançosas, otimistas, como se soubessem da reviravolta no caso. Cochichavam informações a todo o momento para em seguida trocar abraços e até chorar de alegria.
Às 9h05, um rapaz e um senhor passaram reto por todos sem desviar o olhar do horizonte. Posicionaram-se bem em frente à porta da 2a Vara. Logo, a dupla entrou. O jovem era uma das vítimas do ataque dos skins. Foi o único dos três a se apresentar. Em seguida, entraram os advogados dos presos.
Duas senhoras que vieram dar apoio ao único depoente ficaram aguardando do lado de fora. Trocavam um olhar de desconfiança mútuo com parentes dos acusados. O ápice da tensão ocorreu quando o pai de Laureano, um dos presos, resolveu tirar satisfações. Houve um início de bate-boca, mas a esposa logo tratou de tirar o marido da confusão.
O homem justificava a revolta. “Meu filho ficou 100 dias preso. E ele é um cara bom. A gente ia lá na cadeia e ele dizia: ‘Pai, só quero um pedido de desculpas’. Imagina. E o rapaz perdeu o semestre na faculdade. Um absurdo”, protestava.
Às 9h15, 9h20 e 9h40, a funcionária do Fórum chamou os outros dois judeus atacados. A ausência da dupla causou temor entre os familiares dos presos. “Eles não vêm?”, perguntavam-se. A expectativa era pela confirmação do testemunho de uma das vítimas, que inocentara os skinheads ao não reconhecê-los, conforme estampava a manchete do Jornal JÁ Porto Alegre.
Dona Zeonlida, mãe de Valmir Machado Jr., outro acusado, carregava um exemplar. Ao ser abordada por repórteres, exibia a matéria como prova da inocência do filho e, em meio à leitura dinâmica dos jornalistas, comentava o caso. “Meu filho foi crucificado!”, protestava.
Nesse meio tempo, o advogado Clodes Bernardes deu uma escapada da audiência e confirmou que a juíza iria soltar os presos. A notícia foi dada aos cochichos para parentes. Depois confirmada em tom triunfal:“A farsa caiu”, anunciou Bernardes.
A frase foi repetida por familiares dos presos, que imediatamente começaram a ligar para parentes e amigos. E para os pais de Leandro Braun, que moram em Caxias e não foram ao Fórum. A esposa de Israel correu para um orelhão para contar tudo para o pessoal de Guaíba, onde mora.
Não demorou até a juíza chamar a imprensa para uma coletiva.
“Experimentem a liberdade!”
Somente a imprensa e os advogados das vítimas tiveram acesso à sessão em que foi comunicada a liberação dos skinheads. Ao receber os repórteres, a juíza Marta Borges Ortiz explicou a confusão que foi feita em tom de pesar, salientando que a semelhança entre os presos e os novos acusados é incrível, até em detalhes do rosto. Depois, organizou a sessão em que a liberação dos réus foi oficializada.
Juíza instrui os réus (Fotos: Naira Hofmeister)
Por volta das 10h30, os quatro entraram na sala algemados, em silêncio e de cabeça baixa. A juíza perguntou o nome de cada um e solicitou que os guardas tirassem as algemas. Incentivou os fotógrafos a registrar o momento.
Em seguida, explicou a suspensão da audiência que previa o depoimento das vítimas, já que na véspera (24/08), o delegado (Paulo César Jardim) havia entregue novos elementos da investigação. Por isso, ela iria conceder liberdade provisória aos acusados. Justificou que a prisão fora legítima, pois havia indícios suficientes com o que havia sido apurado até então.
O promotor Sílvio Miranda Munhoz falou da correção do trabalho da polícia, que seguiu na busca pelos responsáveis do crime. Insistiu na impressionante semelhança entre os novos acusados e os presos – “parecem gêmeos”. Adiantou ainda que os rapazes agredidos serão chamados novamente para depor e fazer o reconhecimento dos novos acusados.
Em nome da defesa, o advogado Marcelo Bertolucci observou que todos podem errar, mas pediu que a imprensa restabeleça a dignidade dos acusados e familiares, ao dar uma cobertura na mesma proporção da que foi feita na época da prisão. Ainda deu uma alfinetada na conduta do Movimento de Justiça Diretos Humanos neste caso.
Depois de 105 dias na prisão, jovens confirmam a liberdade
Finalmente, os jovens foram chamados pela juíza para receber o alvará de soltura. Antes ela deu um recado: “Experimentem intensamente a liberdade. Vivam próximos do bem. Vocês ficaram presos esses 100 dias por um desígnio maior, nada é por acaso. Experimentem intensamente a liberdade!”, repetiu. Os libertos, apenas acenaram com a cabeça.
Investigação paralela A juíza Marta Borges Ortiz elogiou a polícia, afirmando que não tem dúvidas sobre a eficiência do trabalho: “Na próxima semana deveremos ter os nomes dos possíveis autores da agressão”. O promotor Sílvio Miranda Munhoz fez coro a ela.
Mas os jovens presos mostravam revolta. Eles teriam indicado os reais agressores. “Na rua todo mundo sabia quem eram os responsáveis, só a polícia que não”, disse Laureano Vieira Toscani. Segundo ele, os autores do crime, que se rotulam skinheads, vangloriavam-se publicamente do feito, e debochavam “dos otários que foram presos”.
“Não foi a polícia quem descobriu, fizemos nossa investigação. Minha mãe procurou na rua, no bar, na internet. Se não fosse isso ainda estaríamos presos”. Sobre a explicação de que os quatro novos acusados seriam muito parecidos com eles, Laureano é direto: “Essa história não bate”, resume, lembrando que só uma vítima os reconheceu.
O advogado do jovem, Marcelo Bertolucci, diz que um fato novo já estava no inquérito há bastante tempo, mas que não havia sido observado. É que uma das testemunhas não reconheceu os quatro como os agressores. O promotor Munhoz observa que os jovens não tinham delatado os autores para não passar por dedo-duro, mas acabaram identificando outros possíveis atacantes. “Agora dizem que éramos parecidos com os outros caras. Mas a verdade é que desde junho já podiam ter nos liberado. A polícia sabia que nós não éramos os culpados”, garante Leandro Braun, que contou estar num show em Caxias do Sul na hora do crime. “Tenho 27 testemunhas”.
Valmir Machado Jr. falou que a polícia é incompetente, “principalmente o delegado que tentou se promover em cima de nós”. Ele justificou que só fazia estudos sobre Segunda Guerra Mundial e que criaram uma confusão.
“Nos venderam como culpados e pegou. Olharam o nome pelo outro processo (agressão de skinheads a um punk, no qual o jovem foi indiciado) e como estávamos mais acessíveis nos levaram”, afirmou o jovem que acredita em armação e afirma que só não os liberaram em seguida por pressão da comunidade judaica.
Israel da Silva preferiu ser diplomático. “Não tenho nada a falar da Justiça, nada contra comunidade nenhuma. E posso dizer que dentro da cadeia a gente aprende a perdoar”. Solidariedade na prisão Os quatro acusados de ter agredido jovens judeus na Cidade Baixa passaram mais de 100 dias presos. Eles são unânimes ao classificar a cadeia como um inferno. Mas tiveram o apoio de parte dos colegas de Presídio Central. “Sofremos represália da polícia. Só os presos nos respeitaram”, contou Valmir Machado Jr. Depois da exibição do vídeo de uma banda skinhead no programa Fantástico, da Rede Globo, que está entre o material apreendido pela polícia, não houve retaliações na cadeia.
“Os presos da nossa ala eram legais. Viram que éramos inocentes, não havia cobrança. O problema era um outro setor, chamado ‘país livre’, onde há leis próprias. Lá era perigoso”, testemunha Leandro Braun.
“Sofremos várias ameaças. Ninguém sabe o que é estar lá dentro”, conta Laureano Toscani. Ele soube pela televisão que seria preso e resolveu se entregar. “Fiz isso porque tinha certeza da minha inocência”, disse.
A mãe de Valmir, Dona Zenilda, revela que até quando os rapazes foram depor, no Fórum Central, a Susepe fez represálias. “No meio de 60 presos eles anunciaram que os quatro eram skinheads. Não aconteceu nada para o meu filho nesses dias porque eu estava em cima o tempo todo”.
Leandro revela que a polícia fazia pressão psicológica para “ferrar” com os outros. “Nos interrogatórios, o delegado dizia: ‘Entrega 5 ou 6 nomes que a gente te libera'”. Valmir confirma a história.
Fora isso, as tradicionais precariedades da estrutura carcerária. “A comida é um lixo. A Brigada te trata que nem lixo, para eles tu é um animal”, compara Valmir. “Enfermaria não existe. Tá com dor de dente? Pega um AAS infantil e volta para cela”, relata o ex-detento.
Pelo menos agora o jovem vai desfrutar do comida da mamãe. O cardápio do dia da volta era bife à milanesa, prato predileto de Valmir.
Agora, os quatro voltam a tocar a vida. “Vou retomar minha rotina, voltar para Caxias, mas o trauma, o dano psicológico fica, é para sempre”, observa Leandro Braun.
Os advogados falam em pedir reparações, entrar com uma ação na Justiça contra o Estado e exigir a responsabilização dos atos das autoridades que cometeram equívocos, “estragando a vida dos rapazes e trazendo essa humilhação”. Apenas o representante de Laureano, Marcelo Bertolucci, disse que vai aguardar o encerramento do caso e esperar a definição da família.