Renan Antunes de Oliveira |
C
omo estava muito quente naquele dezembro, Liquinha passou todo dia dormindo com o ar condicionado ligado no quarto do sobrinho Pedro, na confortável casa da família na rua Tijucas. Pelas 7 da noite ele acordou faminto. Pediu bolinhos de carne pra dona Carmen. Ouviu um breve sermão do pai, seu Nilo, por ter faltado ao trabalho. A irmã Leopoldina gritou alguma coisa lá do quarto dando o maior apoio ao velho.
Liquinha os ignorou e foi buscar um vídeo na locadora – despediu-se da balconista dizendo que tinha “uma coisa muito importante pra fazer em casa”. No caminho, tomou três latinhas de Skol e comprou cocaína.
Já no quarto, a mãe lhe serviu os bolinhos. Ele botou o prato embaixo da cama: estava sem fome, de tanto cheirar coca.
Pouco depois das 10, Liquinha saiu da cama apenas de bermuda para aquela “coisa tão importante”: assassinar todos da casa com golpes de marreta e martelo.
Em menos de 15 minutos ele matou mãe, irmã, sobrinho e pai, nesta ordem – o crime que foi a única coisa notável em seus 38 anos de vida.
Em seguida, Liquinha tomou banho, comeu os bolinhos, correu para a rua, chamou os vizinhos e encenou uma farsa: “Socorro, mataram meu paizinho”.
Esta tragédia acontecida em 7 de dezembro de 2012 na cidade praiana de Penha foi revivida no Tribunal do Júri de Florianópolis na segunda semana de março de 2015.
O amplo auditório da corte estava ocupado por 20 familiares que vieram de Penha (a 115 km de Floripa) e por um bando de alegres estudantes de Direito interessados nas tecnicalidades do processo.
O júri ocorreu na capital porque o sentimento da população da pequena vila de pescadores desde a primeira hora era de linchar Liquinha.
A estrela da acusação foi outra irmã do réu, Zilda, 15 anos mais velha. Foi ela quem contou aos jurados que “ele me disse que queria ser conhecido como o maior matador de Santa Catarina” – lugar que já perdeu, em fevereiro, para o funcionário público Alcir Pederssetti, que matou cinco da família e a si mesmo, em Cordilheira Alta.
A irmã garantiu que Liquinha é “um psicopata, sem sentimentos, toda vida foi assim e talvez só eu tenha percebido”.
Um psiquiatra atestou para os jurados que Liquinha estava consciente quando cometeu os crimes e que sabia das consequências, levantando a bola para uma condenação certeira.
Em juridiquês: ele estava ‘imputável’, isto é, capaz de ser julgado e condenado, se os jurados assim o entendessem.
o réu
Luiz Carlos Flores, o Liquinha, hoje com 40, deu problemas desde a adolescência.
Na cidade pequena, os vizinhos sabiam que ele era um drogado. Passou pela maconha, bebida e estava firme na cocaína.
Foi pescador, motorista, pedreiro. Nunca estudou nem trabalhou direito. Era só biscateiro. Fazia alguma coisinha pra arrumar dinheiro pro vício e deu.
Entre os 11 filhos do casal ele ainda morava com os pais porque era o xodó da mamãe – a quem mataria a marretadas com tal ferocidade que conseguiu quebrar o cabo da ferramenta.
“Ela sempre o defendia de tudo e todos”, contou Carminha, irmã mais velha que ajudou a mãe a cuidar dele na infância.
De tudo ela o defendeu na escola, na rua, dos drogados – quando alguém vinha cobrar a conta do consumo da noite, dona Carmen pagava.
Seu Nilo só resmungava – ele era um autêntico manezinho, pescador aposentado, de uma tradicional família açoriana que remonta aos colonizadores do pedaço.
a mágoa
Zilda agia nos bastidores do tribunal como porta-voz da ala da família que pedia a mais longa condenação possível ao irmão.
Ela pediu isto ao promotor, que por sua vez queria condená-lo a 100 anos de cadeia – para ele cumprir no mínimo 20 em regime fechado.
A irmã disse que “desde pequeno ele ficava furioso quando era contrariado”.
Ela contou que a diferença de idade entre eles a fez ver o menino “com isenção”. Jurou que o respeitava nos encontros da família, mas temia “suas reações violentas”.
Uma das namoradas dele teria se queixado que uma vez Liquinha tentou estrangular o filho menor dela (de outra relação).
Zilda afirmou que a mãe tentou aliviar sua barra dizendo que fora briga de casal. Mais tarde, a mesma mulher procurou Zilda para contar que Liquinha havia tentado estrangular a mesma criança num segundo incidente, mas que ela chegou a tempo de impedi-lo. A mulher então anunciou o rompimento via Zilda e sumiu do mapa.
Tios, primos e irmãos desfilaram pela corte. Todos horrorizados pelo crime.
Um sobrinho conta que a família sofreu um racha irreparável quando um dos irmãos mais velhos, Roberto, de 53, passou a visitar Liquinha na cadeia, no que seria o mais parecido com uma absolvição.
Roberto: “Não há como perdoá-lo, isto é coisa para Deus. Mas eu não posso abandonar um irmão, se um dia ele for solto eu vou até acolhê-lo em minha casa”.
A maioria da parentada no tribunal era toda a favor dos 100 anos de cadeia para “o maldito que não é mais meu tio”, como disse um sobrinho no banco das testemunhas.
O julgamento
Liquinha subiu no banco dos réus exatos 824 dias depois do crime, para explicar o inexplicável. Mas ele não tinha a explicação: “Parece que foi um sonho”, “uma força me dominou”, “não queria fazer mal a ninguém”.
Fechou seu depoimento com a frase muito ouvida em tribunais: “Não lembro de nada”.
Para avivar a memória dele e ajudar na decisão dos jurados o promotor exibiu num telão um vídeo gravado pela polícia de Penha dois dias depois do crime. Nele, Liquinha faz uma confissão completa e dá o ciúmes da irmã como motivo do crime: na cabeça dele, os pais gostavam mais dela.
O promotor apresentou fotos das vítimas para os sete jurados – três homens com menos de 30, uma mulher de 30, duas com mais de 40 e um careca cinquentão. A de 30 chorou ao vê-las.
Na plateia, uma irmã do réu soluçava tão alto que um oficial da corte a levou para o corredor.
Liquinha acompanhou a exibição de fotos da perícia e a leitura da súmula dos crimes pelo juiz quase sempre de cabeça baixa, esfregando um dedo da mão esquerda numa unha da direita, olhar fixo nos mocassins pretos. Às vezes, alternava o olhar para as luminárias da corte.
A sessão durou das 9 às 19, ele deu umas choradinhas lá pelas 10, uma no depoimento perto das 12 e novamente ao final dele – mas era coisa pouca, sem muita lágrima, se recompunha em segundos.
O promotor chamou Liquinha de monstro, animal, fera, destruidor de uma família – só abrandando o ímpeto de sua performance duas vezes, uma para saudar a presença da esposa no auditório, outra para cumprimentar um amigo promotor de uma comarca distante que veio prestigiar sua performance acusatória.
o crime
O crime de Liquinha ficou conhecido como “chacina de Penha” e se tornou instantaneamente num dos mais notáveis da crônica policial catarinense.
Aconteceu numa noite muito quente, naquelas em que as famílias manezinhas ficam acordadas até mais tarde.
As testemunhas afirmaram que dona Carmen, 69, pareceu intuir que alguma coisa ruim aconteceria.
Por volta das 9h30 da noite, ela ligou para a Zilda e disse que temia alguma violência de Liquinha, àquela altura no quarto de Pedrinho (10), a minutos de cometer seu desatino.
Nos autos consta que a irmã Leopoldina (41) estava trancada noutro cômodo, com Pedrinho, protegendo-se com uma faca sob o travesseiro pro caso do irmão atacá-la: “Eu a avisara para nunca abrir a porta e manter o menino sempre junto dela”, disse Zilda – imaginem o terror de se viver naquele ambiente.
Pouco depois das 10, na casa silenciosa, Liquinha disse alguma coisa para a mãe que a convenceu a segui-lo até um ponto do pátio distante 100 metros da residência. Ele carregava a marreta.
Não foi possível apurar o que ele disse, nem quando ela percebeu que morreria: o certo é que ele deu dois golpes na boca da mãe, quebrando os dois maxilares, fazendo saltar longe a dentadura postiça dela.
Os golpes foram tão fortes que os peritos acham que ela morreu na hora do primeiro. Em seguida, o filho ajeitou o cadáver, quase com carinho, numa posição confortável numa vala – para depois urinar sobre ele.
Aos jurados ele explicou que matou a mãe para que ela não sofresse com a morte da irmã Leopoldina, que ele pretendia matar por puro ciúmes: “Minha mãe gostava muito dela e não suportaria o sofrimento”. Nem juiz nem promotor perguntaram o porquê do xixi – talvez pela insanidade do gesto.
Suado e ensanguentado, já sem a marreta quebrada, Liquinha voltou para casa e pegou um martelo na gaveta da cozinha. Bateu na porta do quarto de Leopoldina. Ela falava com o namorado ao telefone e não queria abrir.
Falando em tom calmo, o mano pediu que ela lhe emprestasse a moto. Iludida, ela abriu uma fresta para passar-lhe a chave: “Eu acertei o olho dela com uma martelada”.
Ai ele a empurrou, entrou no quarto e acertou mais dois golpes, um na testa e outro na têmpora.
“Durou segundos”, ele contou ao delegado na fita exibida no tribunal. “Meu sobrinho acordou e eu disse que a vez dele ia chegar”. Três marteladas no rosto desfiguraram o menino.
O pai, de 71, acordou com a gritaria e correu para o quarto da filha, ainda de cuecas – sendo recebido com três golpes, todos na cabeça: “Eu não tinha nada contra meu pai e Pedrinho, mas não queria testemunhas”.
Depois que seu patético pedido de socorro ( “mataram meu paizinho”) foi ouvido nas ruas, Liquinha recebeu bombeiros, paramédicos, vizinhos, familiares e a polícia. Ele estava banhadinho, de roupa limpa, mas tinha manchas de sangue nos pés.
E levava nas mãos o denunciador martelo ensanguentado. O primeiro policial na cena matou a charada na hora: doido de pedra. Liquinha citava criminosos imaginários e a polícia resolveu não contrariá-lo.
Havia sangue nas paredes e teto do quarto onde Leopoldina e Pedrinho foram encontrados. Também no hall onde o corpo do pai estava caído.
Não havia nenhum suspeito, ninguém na rua vira nada, os cachorros não latiram para supostos invasores – tudo apontava para Liquinha, mas a polícia demorava em prendê-lo porque primeiro queria entender o motivo para aquela carnificina. A tese do ciúmes da mana apareceria mais tarde – se perdeu na loucura geral.
Nas horas seguintes ao crime a vila de pescadores dançou um balé de doidos.
Liquinha continuou circulando entre as centenas de pessoas que desfilaram pelo velório e enterro como se nada tivesse acontecido – ele estava sempre sendo seguido por policiais à paisana.
Eu o entrevistei duas vezes, na madrugada do velório e antes do enterro. Na ocasião, consegui puxá-lo para um cantinho, tomar um café com ele. E fiz a pergunta que não queria calar – quem fez a matança?
Pude perceber que ele ainda estava naquela loucura dos embalados por coca, babando, agitado: “Se eu encontrar quem fez isto com minha família eu juro que o mato”. Prometia vingança contra o assassino imaginário.
As pessoas ao nosso redor interrompiam a conversa para dar-lhe condolências e fingiam acreditar na inocência dele.
Mudei de assunto e lhe perguntei quais eram seus planos. Me disse que estava esperando o enterro para ir de moto até Goiás para visitar uma namorada – e pediu para ser fotografado, sorridente, ao lado da motoca.
o arrependimento
No Tribunal do Júri pude notar que Liquinha engordou bastante na prisão, talvez uns 20 quilos, deveria estar com mais de 100. Estava bem barbeado, cabelo aparado, vestindo calça e camisa jeans. Não olhou para a plateia de familiares, nem encarou primos, tios e sobrinhos que testemunharam.
Liquinha insistia em interromper o juiz durante o interrogatório para deixar bem claro um ponto: “Excelência, eu amava minha família”. O promotor ironizou tipo assim “imagine se não amasse”.
O matador descreveu o menino Pedrinho: “Meu sobrinho era um anjo de criança”. Neste ponto ele derrapou um pouquinho: “Eu sei que tenho que pagar, estou arrependido” – dois soluços curtos acompanharam o momento de remorsos.
Quando o juiz perguntou pelos motivos dos crimes ele disse “eu não era a pessoa que sou hoje, fui vítima do uso da cocaína que me controlava” – a mesma tese com que a defesa tentou interná-lo numa clínica de rehab.
A tese de que o crime foi cometido por ciúmes da irmã consta do inquérito policial, mas ninguém pareceu realmente interessado em achar um motivo mais palpável.
Liquinha encontrou uma pessoa culpada por seu temperamento: “Minha mãe tapava minhas fraquezas”, resmungou, transformando o amor de dona Carmen num defeito.
De tempos em tempos ele voltava a professar aquele amor eterno à família. Lá pelas tantas disse que quando saísse da cadeia, queria constituir uma para si – ao que o promotor recomendou, com sarcasmo: “Faça como a Suzane Richtofen e case com um colega de cárcere”.
a condenação
Os jurados levaram menos de meia hora para concluir que ele merecia os 100 anos de cadeia, dando-lhe 97 anos e seis meses. O promotor achou de bom tamanho.
A defesa quer recorrer e pedir novos exames de sanidade mental. A tese é que ele tem que ter um parafuso frouxo, pelo detalhe que nem Freud explica: por que fazer xixi no cadáver da mãe?
O comportamento dele enquanto ainda negava a autoria também surpreendeu aos policiais.
Quando familiares encontraram o corpo de dona Carmen nos fundos da propriedade, Liquinha foi levado para fazer o reconhecimento. Ele só deu uma espiadinha para concluir “que merda, mataram minha mãe”.
Em seguida, tirou o pinto pra fora e fez xixi no mato, na frente de peritos, policiais e bombeiros.
Depois da condenação, Liquinha foi levado de volta à penitenciária da Agronômica, em Floripa. Ele está lá para sua proteção, porque detentos assassinos e estupradores da cadeia de Canhanduba tentaram matá-lo, horrorizados com a barbárie de seus crimes.
Hoje o matador cozinha pros carcereiros e diretores da prisão. Virou evangélico. Descobriu Cristo.
Todos na jaula atestam que ele tem um comportamento exemplar, o que vai contar quando pedir regime semiaberto, aquele no qual o condenado dorme na cadeia mas pode passar o dia na rua.
Como ele é réu primário, o pessoal acha que em 8 anos o cidadão Luiz Carlos Flores poderá sair livre, para recomeçar sua vida.
Ele disse pro irmão Roberto que quando cumprir a pena quer se mudar de Penha para outro lugar do planeta onde ninguém saiba sua história.
Vaya con Dios.
História macabra. Texto impressionante, muito bem feito.