Até alguns anos atrás, pareceria estranho promover uma palestra sobre os campos nativos do Pampa no auditório da Livraria Cultura do Bourbon Shopping, um espaço típico da vida urbana de Porto Alegre. Mas a Fundação Gaia bancou a noitada na terça-feira, 9, ao convidar o agrônomo Carlos Nabinger, da UFRGS, para falar sobre as possibilidades de se praticar uma pecuária sustentável no Pampa, o bioma que a cada ano cede 300 mil hectares às lavouras de grãos e às pastagens artificiais.
O evento em horário nobre juntou mais de meia centena de cabeças. Entre estudantes e agrônomos maduros, lá estava Marcelo Fett Pinto, representante no Rio Grande do Sul da Alianza del Pastizal, instituição criada no Pampa argentino e uruguaio para defender a produção de carne bovina em pastos naturais.
Professor do Departamento de Plantas Forrageiras da Faculdade de Agronomia, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Nabinger esclareceu que não é contra nenhuma lavoura, mas lamenta que a pecuária gaúcha, salvo algumas exceções consagradas na Expointer e em exposições e leilões pelo interior, continua restrita a métodos primitivos que a impedem de produzir mais do que 60 a 70 quilos de carne por hectare/ano, quando se sabe que há tecnologia suficiente para multiplicar esses índices por dois, três e até 10 ou 12 vezes.
Entretanto, ele admitiu francamente que não faz sentido “os sabichões da academia” promoverem palestras ou dias de campo para ditar fórmulas técnicas aos homens do campo. “Os produtores agem como agem por uma série de razões ambientais, culturais, econômicas e familiares”, disse o professor, lembrando que a única forma de sair desse impasse é “promover a educação ambiental desde a escola primária”. Uma tarefa para décadas.
Trabalhando na pesquisa do melhoramento da pecuária, Nabinger recomenda que, antes de se atirar na aplicação de insumos modernos oferecidos pelos fabricantes de máquinas e produtos químicos, os produtores devem dar prioridade à “gestão dos processos” para o aproveitamento dos pastos nativos, que vêm sendo castigados pelo excesso de pastoreio. Um diagnóstico feito em 2006 mostrou que os campos naturais do Pampa estavam sobrecarregados por uma carga de 1,1 unidade animal por hectare. “É uma carga muito alta!”, segundo Nabinger.
Arrendamento
Com tamanho índice de ocupação, os campos não se recuperam do pastejo, a vegetação não chega a florescer ou dar sementes, as raízes não se desenvolvem, o excesso de pastoreio provoca a proliferação de plantas impróprias para o consumo animal (alecrim, chirca, caraguatá etc) e o solo fica desprotegido contra chuvas fortes, sofrendo com a erosão. No afã de produzir mais carne, o produtor enche o campo de gado magro que demora a engordar. No final das contas, com a descapitalização e a desvalorização do seu patrimônio, o proprietário opta pelo arrendamento para o plantio de soja. Ou acaba vendendo a terra. Um enredo cada vez mais comum no Pampa.
A alternativa sustentável, permanecendo na pecuária, é reduzir a carga animal para melhorar a condição da pastagem, que crescerá mais, tornando-se mais saudável e nutritiva, apenas pela fotossíntese. “Sem por a mão no bolso”, ou seja, sem investir um tostão, essa simples medida denominada diferimento –“um processso tecnológico”, afirma Nabinger – resulta numa produção anual de 236 kg de carne por hectare. Foi o que se alcançou em experimentos na Depressão Central (vale do Jacuí).
Aplicando outros métodos como a fertilização, a sobressemeadura de pastagens de inverno e de verão, a limpeza do campo (com roçadeira) e irrigação, pode-se chegar até 1000 kg de carne por hectare/ano. Em termos econômicos, isso significa que “gado de corte dá dinheiro como soja”, mas com menor custo e menos risco.
Além disso, a manutenção do campo nativo é um bom negócio para o país, que pode exportar carnes apreciadas em países que destruíram suas coberturas vegetais primitivas. Se é tudo tão simples, como parece, por que não se caminha naturalmente para a pecuária sustentável e rentável?
“É preciso organizar a bagunça”, concluiu Nabinger, lembrando que a educação ambiental é uma via de mão dupla: não basta que o agricultor aprenda o que se ensina nas escolas urbanas sobre ecologia, também os habitantes das cidades precisam se reconectar com a vida no campo.
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Carlos Nabinger fala sobre campos nativos no Pampa
“Conservação do Bioma Pampa a partir do manejo correto das pastagens naturais” é o tema da palestra com o professor Carlos Nabinger (UFRGS), que acontece na terça-feira, 9, promovida pela Fundação Gaia em parceria com a Livraria Cultura de Porto Alegre . O evento inicia às 20h no auditório da livraria, com entrada franca.
A atividade integra o Ciclo de Palestras Ecologia na Cultura, cuja temática norteadora de 2014 é “Construir o Futuro com Visão”. Trazendo assuntos relacionados às questões ambientais, no final da apresentação será proposto ao palestrante um questionamento: qual visão permite um avanço sustentável e mais acertado em direção ao futuro comum na Terra?
Com periodicidade mensal, os encontros realizam-se sempre na segunda terça-feira de cada mês. Interessados podem obter certificado de participação nas palestras, tanto para cada evento como para todas nas quais participarem. Para isso basta escrever para reservas@fgaia.org.br e solicitar maiores informações. (Cláudia Dreier)
Estudo relata impactos da monocultura do eucalipto sobre mulheres do Rio Grande do Sul
Por Carlos Matsubara, Ambiente JÁ
A ONG Amigos da Terra Brasil (NAT) apresentou no dia 19 na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul um estudo que apontou possíveis impactos da monocultura de eucalipto sobre as mulheres.
Entre outros impactos, o estudo de autoria da bióloga e mestre em Educação Ambiental, Cíntia Barenho, relata situação de violência e assédio sexual. Foi relatado que a chegada de trabalhadores incitou formas de assédio sexual, atitudes machistas e sexitas.
“A Aracruz geralmente não contrata funcionário do município, então, os que vêm de fora mexem com as mulheres, não se tem caso de abuso, mas de assédio sexual sim, ficam chamando as mulheres de ‘gostosas’, inclusive no interior, quando as mulheres vão fazer caminhadas, isso acontece cotidianamente,” disse uma agricultora não identificada pelo estudo.
Para Cíntia, esta forma de migração pendular que ocorre, cria uma situação favorável (comunidade “desconhecida”, família não está presente) a tais fatos. As mulheres relataram a bióloga que a presença destes trabalhadores desconhecidos promove medo e insegurança por parte das mulheres e suas famílias. “Anteriormente, se ocorresse qualquer eventualidade era possível contatar algum empregado da estância ou propriedade, porém agora devido aos maciços de eucaliptos, dificilmente encontra-se alguém que possa ajudar”, diz, ao fazer a ressalva que não há casos conhecidos de prostituição.
O estudo que foi feito em parceria com a Friends of the Earth e Movimiento Mundial por los Bosques Tropicales (WRM), traz ainda relatos como assaltos a propriedades rurais. Conta uma agricultura, que uma prima sua teve a casa assaltada, coincidentemente depois de ter negado vender suas terras para uma empresa de celulose e papel. “Após o assalto ela se sentiu coagida, com medo e resolveu pela venda”, diz Cíntia.
Também em Encruzilhada do Sul, uma residência cercada pelos eucaliptos teria sido assaltada. A família ficou com receio de permanecer por lá e mudou-se para a casa os pais da esposa. Para uma das mulheres entrevistadas, além da presença de homens desconhecidos, também as estradas têm facilitado os roubos (devido a melhoramentos realizados).
Contaminação da terra
Ainda entre os impactos relacionados pelas mulheres, o estudo de caso mostra dificuldades com relação às condições sociais e de sobrevivência diária, como a contaminação do ambiente e de animais devido a utilização de grande quantidade de agroquímicos nas lavouras de eucalipto; a precária situação das estradas rurais devido ao tráfego de veículos pesados; escassez de água; degradação da terra e condições de trabalho são precárias. “Como conseqüência a reforma agrária está neutralizada e o abandono do campo tem se intensificado”, destaca a bióloga.
O estudo contou com a participação de vinte mulheres de movimentos sociais do campo e da cidade que relataram diferentes impactos da silvicultura em suas vidas. As participantes moram em Rio Grande, Hulha Negra, Piratini, Encruzilhada do Sul, Barra do Ribeiro, São José do Norte, Santana do Livramento, Herval e Porto Alegre.
O “desempoderamento” das mulheres
O trabalho de Cíntia faz parte de um projeto desenvolvido pelas ONGs intitulado “A função da União Européia no desempoderamento das mulheres no Sul através da conversão dos ecossistemas locais em plantações de árvores”.
“É uma importante ferramenta não só para a luta contra a expansão dos megaprojetos de celulose e papel dos movimentos sociais e ambientalistas, mas também para todos os setores da sociedade porque mostra a realidade de mulheres que pouco ou quase nada têm sido divulgado pela mídia,” afirma a bióloga. Conforme ela, a situação destas mulheres ainda é de invisibilidade social, apesar de elas já estarem protagonizando lutas de resistência.
Pampa pode virar Patrimônio da Humanidade
Carlos Matsubara, Ambiente JÁ
O bioma Pampa pode ser transformado em Patrimônio da Humanidade. O primeiro passo para isso ocorrer foi dado no último dia 28 de agosto durante reunião do do Comitê Brasileiro para o Programa “O Homem e a Biosfera” (MaB), da Unesco, em Brasília.
Na ocasião foi aprovada, de forma unânime, a ampliação da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (RBMA). A proposta foi apresentada pela Rede Brasileira de Reservas da Biosfera, resultado dos trabalhos iniciados em 2006 e aprovados em 2007 pelo Conselho Nacional da Reserva da Biosfera
(CN-RBMA).
Atualmente o Brasil possui sete Reservas da Biosfera: RB Pantanal, RB Caatinga, RB Cerrado, RB Amazônia Central, RB da Serra do Espinhaço e a RBMA. Com a proposta aprovada pelo Comissão Brasileira do Programa Homem e Biosfera (Cobramab), a RBMA no Rio Grande do Sul será significativamente ampliada, fazendo com que áreas do bioma Pampa passem a ser tombadas como
patrimônio da humanidade, como já é parte do banhado do Taim, cuja área tutelada será ampliada em aproximadamente 70 mil hectares.
Conforme o advogado e ambientalista Antonio Soler, membro da ONG de Pelotas, Centro de Estudos Ambientais (CEA), a decisão foi importante e inédita para a proteção do bioma Pampa, uma vez que o mesmo não apresenta áreas protegidas na proporção de sua diversidade biológica e relevância
ecológica. Representante da única ONG ecológica no Cobramab, Soler dá detalhes do que pode ocorrer com o bioma daqui por diante em entrevista a seguir.
As Reservas da Biosfera formam uma rede mundial de áreas protegidas compreendendo ecossistemas terrestres e/ou marinho e tem como objetivo a conservação da biodiversidade e o desenvolvimento sustentável. A revisão da RBMA deve ser feita a cada cinco anos e seguiu orientações estabelecidas pelo CN-RBMA, abrangendo os seguintes critérios zoneamento; inclusão de áreas urbanas; inclusão de áreas marinha e limites da RBMA.
Ambiente JÁ – O que significa, na prática, o bioma Pampa ser
tombado como patrimônio da humanidade?
Antonio Soler –Na prática, a tutela jurídica de um determinado espaço territorial, como é o caso, não muda a realidade. A lei é um instrumento que precisa ser manejado pela coletividade e pelo Poder Público (Executivo, Legislativo e Judiciário), o que tem sido muito difícil nesses tempos atuais de flexibilização do Direito Ambiental. A tutela do Pampa (ou parte dele) como Reserva da Biosfera (RB) é um acontecimento que contrária essa lógica dominante do descuido ambiental, na qual o mercado é o deus.
A Estação Ecológica do Taim (ESEC Taim) já é tombada, e mesmo assim, sofre diversos tipos de agressão. Isso não seria uma demonstração de que na prática nada muda com esse status?
Soler – A ESEC Taim é uma unidade de conservação federal, considerada patrimônio da humanidade
por ser o que se denomina de zona núcleo da RB da Mata Atlântica (RBMA). A lei só transforma a realidade se for aplicada, e para ser aplicada necessita, antes de tudo, ser conhecida para, quem sabe, ser exigida a sua materialização. Cabe a coletividade e aos órgãos de controle ambiental, entre eles o MP, exigir o respeito a lei ambiental. Os órgãos públicos têm meios legais e efetivos para tal. Precisam cumprir seu dever constitucional de proteger o ambiente.
Aliás, a área tutelada da Estação Ecológica do Taim será ampliada com essa decisão em quantos hectares?
Soler – mais protetiva. Ou seja, a zona núcleo da RBMA passaria dos atuais aproximados 33 mil hectares para (tb aproximadamente) 100 mil hectares. Área muito semelhante ampliação decretada em 2003 pelo governo federal, mas suspensa temporariamente, por razões formais e não materiais, pelo STF.
Qual o objetivo dessa ampliação?
Soler – Os objetivos são os previstos na lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que são os da preservação da diversidade biológica, o desenvolvimento de atividades de pesquisa, o monitoramento ambiental, a educação ambiental, o desenvolvimento sustentável e a melhoria da qualidade de vida das populações.
Sendo considerado Patrimônio da Humanidade, tanto a estação no Taim, quanto o bioma Pampa, a utilização dessas áreas fica mais restritiva?
Soler – Sim. Os planos e políticas públicas e privadas deverão observar tais limitações, sob pena de ilegalidades ou até de prática de crimes ambientais
Pode – se dizer que é uma espécie de ” freio” nos projetos de plantio de eucalipto no Pampa?
Soler –No plano formal sim, mas…
O bioma Pampa vem obtendo um reconhecimento crescente pela sua importância ecológica, social e até cultural para sua preservação, isso foi levado em conta na última reunião do dia 28 de agosto?
Soler – Certamente. Não só no COBRAMAB como no processo de construção da proposta aprovada. A figueira, árvore protegida por lei (não pode ser cortada e nem podada, salvo em casos expressos e previamente autorizados), tem importância ecológica e cultural. Nesse ultimo caso, entre outros motivos, pela relação estabelecida pelo gaúcho e pela gaúcha a sua sombra, ao seu abrigo.
Antônio Soler milita no CEA, ong criada em 1983, desde o final da década de 1908. Cursou Mestrado em Desenvolvimento Sustentável na Argentina, foi conselheiro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) em duas oportunidades, além de diversos outros colegiados ambientais. Foi coordenador do Programa Mar-de-Dentro do Governo do Rio Grande do Sul e participou da elaboração do Plano Nacional de Áreas Protegidas do Ministério do Meio Ambiente. Atualmente é professor da disciplina de
Direito Ambiental.