Lançado em agosto e repicado agora na 62ª Feira do Livro de Porto Alegre, “O Sargento, o Marechal e o Faquir” (272 páginas, Libretos), de Rafael Guimaraens, recebeu uma carrada de comentários favoráveis em jornais, revistas e blogs, mas nenhuma resenha ousou dizer que se trata da mais completa e precisa reconstituição da história trágica do sargento nacionalista Manoel Raymundo Soares, protagonista central – como vítima — do “Caso das Mãos Amarradas”, que veio à tona em agosto de 1966 na margem esquerda do Rio Jacuí, em águas da capital gaúcha.
Seus algozes, identificados como integrantes do DOPS e do Exército, não foram punidos por um rol de crimes que começa com a prisão sem mandado judicial, segue com a tortura por uma semana em dependências militares e policiais, agrava-se com o encarceramento por cinco meses sem processo na Ilha do Presídio, no Lago Guaíba, e termina com a morte por afogamento durante uma sessão de “caldo” em que o preso foi obrigado a ingerir uma bebida alcoólica, fosse para aguentar o frio de agosto, fosse para “abrir o bico”.
Na sua última viagem, à noite, nas águas do lago-rio que banha Porto Alegre, Manoel tinha as mãos amarradas às costas com tiras de sua própria camisa, item que ajudaria na sua identificação, pois a “volta-ao-mundo”, fácil de lavar e que não precisava ser passada a ferro, era sua roupa de todo dia na prisão.
O “Caso das Mãos Amarradas” passou das páginas policiais para o noticiário político, pois gerou uma CPI (comissão parlamentar de inquérito) na Assembleia Legislativa do Rio do Grande do Sul, afrontando as autoridades militares e o próprio governador Ildo Meneghetti, obrigado a lavar as mãos como o títere romano Pôncio Pilates no caso de Jesus Cristo, segundo o Novo Testamento.
Salvo descuido histórico, Manoel Raymundo Soares foi a primeira vítima da tortura política praticada à sombra da ditadura militar então comandada pelo marechal Castello Branco.
No livro, o sargento nacionalista, admirador de Leonel Brizola, desertor do Exército, brilha como herói por não entregar os companheiros dissidentes da ditadura, com quem andava a tecer planos revolucionários — findas as sessões de tortura, isolado em sua cela, ele punha-se a cantar o Hino Nacional Brasileiro, como recordaram alguns companheiros de cárcere ao repórter-historiador de Porto Alegre. No fundo, era um sonhador que foi se isolando no radicalismo político, como aconteceria com algumas centenas de dissidentes nos anos seguintes.
Já o marechal Castello Branco, pivô da prisão do sargento, consta no livro como o chefe fraco que não ousou enfrentar os militares adeptos do endurecimento do regime, sacrificando seus supostos sentimentos democráticos à disciplina da caserna.
Por fim, num achado digno dos melhores romances policiais, Rafael Guimaraens põe na história um “tertius” até agora esquecido por narradores e acadêmicos que se debruçaram sobre o Caso das Mãos Amarradas: o faquir fracassado Edu Rodrigues, pintor de letreiros e fazedor de bicos que entra em cena para “ajudar” o solitário sargento na colagem de panfletos antiditadura no centro de Porto Alegre e acaba se revelando um “cachorrinho” do Serviço Nacional de Informações (SNI).
Narrada em takes que se sucedem como um pré-roteiro cinematográfico, a história não se limita às três personagens do título. Nela aparecem também investigadores policiais sem medo, advogados conscientes de seu papel profissional e parlamentares corajosos diante de autoridades civis e militares armadas de evasivas, mentiras e omissões. O próprio general-presidente Castello Branco não obtém resposta para um memorando em que pede informações sobre o “Caso das Mãos Amarradas”. Entre os estudantes que se movimentam na cena, aparece até Tarso Genro, então com 16 anos, disputando vaga na liderança da entidade nacional dos secundaristas.
Em seu relatório-denúncia, o promotor Paulo Tovo conclui que os principais responsáveis pela morte do ex-sargento são o delegado do DOPS José Morsch e o major do Exército Menna Barreto. Nada acontece, exceto que Tovo ficou marcando passo em sua carreira no Judiciário gaúcho. Uma injustiça profissional, sem dúvida.
Cinquenta anos depois, o crime de Porto Alegre permanece impune. Afora a leveza e precisão da narrativa, o maior mérito do livro de Rafael Guimaraens é provar que o “Caso das Mãos Amarradas” foi um “thriller” do que a ditadura militar faria nos anos seguintes, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, que se destacaram como centros de caça, aprisionamento e tortura de dissidentes políticos.
Porto Alegre não abdicou de seu papel como coadjuvante da repressão, como se viu no sequestro dos uruguaios Universindo Diaz e Lilian Celiberti, episódio de novembro de 1978 cujos autores não foram punidos, embora estivessem a serviço da Operação Condor, uma das maiores organizações criminosas da história da América Latina (ver a propósito o livro “Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios” (464 páginas, L&PM Editores, 2008), do repórter-historiador gaúcho Luiz Claudio Cunha.
Autor de vários livros-reportagem, entre os quais se destacam “A Enchente de 1941” e “A Dama da Lagoa”, Rafael Guimaraens construiu com “O Sargento, o Marechal e o Faquir” sua maior obra. Entretanto, trata-se de apenas um tijolo a mais na reconstrução da história brasileira que se enfileira ao lado de outros livros como “Os Vencedores” (Geração Editorial, 2013), do gaúcho Ayrton Centeno, que usam a ferramenta da investigação jornalística para fazer aflorar verdades e mentiras, das quais se valem os cidadãos conscientes para fazer a justiça possível no momento oportuno.
Foi assim no episódio de dois anos atrás, quando a Câmara dos Vereadores de Porto Alegre rebatizou como Avenida da Legalidade e da Democracia a principal via de acesso a Porto Alegre, até então denominada Marechal Castello Branco.
Autor: Geraldo Hasse
“Moro num país desigual…”
Geraldo Hasse
Para um pobre mortal situado na base da pirâmide social, é afrontoso ver os senhores magistrados aceitarem o benefício do auxílio-moradia alegando que é legal e que uma recusa, ostensiva ou discreta, seria mal vista pela categoria. Nisso, ao contrário da lenda, a magistratura não foi lerda. Até onde se sabe, nenhum juiz teve coragem de recusar o auxílio- moradia, o mais recente privilégio da categoria funcional mais bem remunerada do país.
A mordomia habitacional dos magistrados é acintosa quando se pensa que essa casta é protegida constitucionalmente por três invejáveis garantias: indemissilidade, inamovilidade e irredutibilidade dos salários.
Essa trinca de “ades” foi institucionalizada para que os magistrados fiquem teoricamente livres de perseguições políticas e de tentações corruptivas, podendo assim se dedicar à administração da justiça e à busca do bem comum. Entretanto, bem remunerados e com a carreira garantida, muitos deles se deixam seduzir pelo brilho fácil das entrevistas e palestras.
No momento, os mais picados pela mosca azul do poder são o juiz Sergio Moro, o ministro Gilmar Mendes e a nova presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Carmen Lúcia.
Por mais meritocrático que seja, o sistema do Judiciário abriga e cultiva privilégios incompatíveis com o estágio de (sub)desenvolvimento do Brasil.
Seria muito mais justo se o dinheiro do auxilio-moradia fosse aplicado em favor da segurança do patrimônio público — escolas, creches e postos de saúde – frequentemente depredado por gente sem noção de direitos e deveres sociais. Mas quem vai dizer – “Eu passo, não vou aceitar”?
Como estão no topo da escala salarial do funcionalismo, eles poderiam dispensar benesses que afrontem o espírito democrático. Seriam aplaudidos pela população. No entanto, o que se vê é a maioria dos magistrados fazendo força para entrar para o clube da elite pensante, aquela que só pensa em si.
Além de não ter coragem de corrigir distorções como as férias de 60 dias, que agridem a cidadania, a maioria dos magistrados adota como seu o estilo de vida da classe dominante, ignorando o fato de que a maioria dos brasileiros está digerindo o trauma do impedimento presidencial e o triste espetáculo da Operação Lava Jato.
Na vida pública, o exemplo ético é fundamental. Sem ele, não se constrói um país equilibrado e feliz.
O “endireitamento” do Brasil
A avacalhação do Judiciário
Quatro da tarde, liguei o rádio do carro e apertei no botão de busca automática. O som veio do 970 AM: o apresentador de um programa de entrevistas criticava a recente decisão do Supremo Tribunal Federal que, por 6 votos contra 5, confirmou a prisão de condenados em segunda instância antes do trânsito em julgado — ou será do “julgado em trânsito”? (O vocabulário da Justiça é diabólico).
“Estão legislando por cima dos autos”, diz o âncora do Pampa na Tarde. Cheio de razão, ele passa a palavra ao depoente do momento, Dr. Lenio Streck, um jurista muito considerado nas rodas judiciais e nas redes sociais. Data venia, Doutor Streck critica os ministros do STF, prevendo dias sinistros para o exercício do Direito. Presente no estúdio, uma desembargadora chamada Isabel parece constrangida e se esquiva de opinar. Barra pesada nas hostes judiciais.
O apresentador chamado Vitorino dispara balas para todos os lados. Ao vivo ou pelo telefone, vai colhendo depoimentos sobre os fatos do dia. As coisas estão assim, o programa vespertino é exageradamente crítico para uma emissora comercial. No fundo, porém, reflete o sentimento de frustração da sociedade com o andamento das coisas nas instituições governamentais. Em quem confiar?
O Executivo parece perdido em campo, o Congresso se desmoraliza a cada sessão e o Judiciário “está virado num chapéu”, expressão popular corrente em Florianópolis, onde o povo pode explodir a qualquer momento (em novembro de 1979, alguém numa rua central gritou um desaforo ao presidente João Figueiredo, que visitava a cidade a pé em horário comercial; o general se incomodou e partiu para “tirar satisfação”, quase levando uns sopapos dos populares e transeuntes — o episódio rendeu até livro).
“A situação está de vaca não reconhecer bezerro”, disse certa vez, ainda nos soturnos anos 1970, o deputado gaúcho Nelson Marchezan, um dos civis mais queridos pela Ditadura Militar. Ele se referia à confusão política, ao tiroteio moral, à degradação dos debates, em síntese, àqueles tensos momentos rurais que precedem as tormentas, quando os bichos ficam assustados e começam a se estranhar.
Para alguns, a tempestade já passou na forma do impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Para outros, a posse do vice Michel Temer é que marca o começo de um processo temerário segundo o qual as melhorias obtidas recentemente pelos pobres serão varridas por um vendaval em favor de minorias historicamente privilegiadas. Um revertério inimaginável até alguns meses atrás.
Como diria o corajoso Dr. Streck, estamos agora diante da avacalhação da Justiça por ação de integrantes do próprio Judiciário. Juizes tomando partido, desembargadores truncando processos, ministros contrariando a letra da Constituição e deixando no ar a sensação de que “a lei, ora a lei” (frase atribuída a Getúlio Vargas), o que está valendo é a opinião dos magistrados, além da convicção dos procuradores e a interpretação policial.
Tudo isso rolando num meio privilegiado por salários no teto, benefícios em penca e mordomias em cascata difunde entre os cidadãos a sensação de que na crise vale tudo para garantir o lugar conquistado. Nesse contexto, o que faz quem não tem sequer lugar na fila?
Fala-se de reforma política, reforma tributária, reforma educacional, reforma agrária… Seria oportuno colocar na agenda, também, a reforma judiciária.
LEMBRETE DE OCASIÃO
O Estado Democrático de Direito está em risco. Exceção em cima de exceção. Tudo em nome de argumentos finalísticos. A moral predou o direito. E com apoio de grande parte da comunidade jurídica. Os juristas estão canabalizando o direito! Isso não vai terminar bem!
Dr. Lenio Streck, comentando sentença recente do juiz Sérgio Moro
O pré-sal não pode ser entregue numa bandeja global
Geraldo Hasse
A economia começa a sair do fundo do poço e quem a puxa é a locomotiva Petrobras, que já produz mais de um milhão de barris por dia nos campos do Pré-Sal descobertos em 2006.
Alcançar tamanha performance em apenas dez anos seria caso para prêmio, mas não há no famoso Mercado quem reconheça a eficiência da empresa, colocada na linha do choque entre o neoliberalismo emergente e o distributivismo de governos voltados para os pobres.
Também não se vê ninguém festejar a autossuficiência finalmente alcançada após mais de 60 anos de trabalho em terra e no mar. Pelo contrário, o que se nota é um esforço para deteriorar a imagem da empresa. E, no entanto, ela vem dando a volta por cima.
Na moita, sem alarde, a grande BR já recuperou R$ 455 milhões de dinheiro desviado em casos comprovados de corrupção. Uma gota d’água no oceano, dirão os pessimistas. De fato, o valor equivale a apenas meio dia de faturamento anual da empresa, mas o fato relevante é que a petroleira nacional vem tapando os furos por onde vazavam as propinas.
Detalhe: os últimos R$ 145 milhões foram recuperados de casos ocorridos entre 1997 e 2012. O dinheiro estava em bancos suíços em conta pertencente a Julio Faerman, ex-representante da empresa holandesa SBM Offshore, locadora de navios-plataforma, equipamentos caríssimos e cartelizados no mundo. Num acordo de delação premiada com o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, o tal Faerman reconheceu que obteve o dinheiro “através de atividades criminosas”.
As investigações começaram bem antes da Operação Lava-Jato e a Petrobras, como vítima das falcatruas, atuou como assistente de acusação no processo. Atingida em cheio pelo vendaval da Operação Lava Jato a partir de 2014, a Petrobras vem se mostrando muito maior do que a crise.
Dias atrás, o presidente Pedro Parente teve de reconhecer que a produção média dos poços do Pré-Sal ultrapassou a previsão – de 15 mil barris diários, chegou a 25 mil. Ex-ministro dos governos tucanos, Parente parece ter assimilado o pensamento nacionalista dominante no corpo técnico da empresa. Pode ser uma tática conciliatória enquanto não é possível aplicar a estratégia subjacente ao golpe contra a presidenta Dilma: “entregar” o pré-sal a petroleiras estrangeiras.
O perigo está na Câmara dos Deputados, onde tramita o Projeto de Lei 4567/2016, que retira da Petrobras a obrigatoriedade na exploração na camada do pré-sal. Essa proposta formulada às pressas pelo senador José Serra permitirá que as multinacionais explorem os campos do pré-sal sem o essencial controle da Petrobras, que deixará de ser obrigatoriamente operadora. Como ministro de Relações Exteriores do governo Temer, Serra não esconde sua intenção de tirar o filé da Petrobras.
O projeto é antinacional e entreguista porque retira da Petrobras o conhecimento geológico do nosso subsolo marinho, aliena a decisão sobre as tecnologias adotadas, tirando a preferência para equipamentos produzidos no Brasil e terceirzando a decisão sobre o ritmo adequado de exploração das jazidas.
O deputado paulista Carlos Zarattini acaba de publicar artigo no site do GGN argumentando que, ao contrário do que alega Serra, não há motivo para ter pressa na exploração do pré-sal porque, depois que descobriu as jazidas, a Petrobras desenvolveu a tecnologia de exploração em águas profundas e conseguiu reduzir os custos de produção a menos de US$ 10 por barril. Uma façanha que causa inveja e aguça a cobiça internacional.
Seria um crime contra a soberania nacional entregar o pré-sal agora que a Petrobras começou a sair do sufoco financeiro do endividamento. Na real, o esforço da empresa é um exemplo para o Brasil, que entrega aos credores da dívida pública uma montanha de recursos que deveriam ser transformados em investimentos em infraestrutura.
Ao fim e ao cabo do gigantesco processo de endividamento do Brasil, quem mais investe no país é a Petrobras. Até 2021 ela vai investir US$ 70 bilhões em recursos próprios e conta atrair parceiros/sócios que invistam mais US$ 40 bilhões.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“De certa maneira, a rede de companhias multinacionais representa em forma embrionária o sistema nervoso central de uma ordem econômica global emergente.”
Giovanni Agnelli, presidente da Fiat, em depoimento na ONU em 1975, época em que os grandes chefes do capitalismo mundial elaboravam o Consenso de Washington/Trilateral
Na lanterna dos afogados
A roubalheira contida e a privataria liberada
A palavra “roubalheira” sempre esteve na boca do povo como alusão genérica a algo corriqueiro nas altas esferas do Poder, mas nunca como agora ela se tornou tão verazmente aplicável a um número expressivo de administradores públicos, empresários, executivos de estatais e parlamentares. Em seu penúltimo artigo, o comentarista político Elio Gaspari apresentou o mais recente balanço da Operação Lava Jato: 57 pessoas condenadas a 680 anos de prisão. Todas elas muito bem situadas nos altos escalões dos poderes econômico e político.
Por obra da Operação Lava Jato, iniciada em março de 2014 pelo Ministério Público Federal e a Polícia Federal, desvendou-se finalmente o esquema de corrupção que sustentava os partidos políticos e suas práticas eleitorais. Tornou-se enfim explícito o que antes se mantinha escondido sob apelidos diversos: “maracutaia”, “panamá”, “quiprocó”, “mamata” e, claro, “roubalheira”. O aspecto mais tragicômico dessa história é que o partido mais afetado pelas investigações é o PT, a sigla mais bem sucedida eleitoralmente na esfera federal no século XX. Como cabeça dos quatro últimos governos nacionais, o petismo transfigurou-se no principal culpado da roubalheira descoberta na Petrobras, a maior empresa nacional, fundada em 1953. Ainda que nenhum partido reste incólume após tamanha devassa, já está eleito o bode expiatório da temporada.
Com as evidências colhidas, mais as delações de empresários e executivos, a Justiça ficou com a faca e o queijo na mão para dar um novo conteúdo às relações entre empresas e partidos. Só lhe falta iniciativa, pois o Judiciário só opera se for acionado. Todas as investigações, processos e sentenças se concentraram até agora numa única vara do Paraná, sob o martelo do juiz Sergio Moro, a celebridade nacional do momento, tal como aconteceu com o ministro Joaquim Barbosa no final do processo do Mensalão no Supremo Tribunal Federal, que condenou à cadeia membros da cúpula do PT e de alguns partidos aliados.
Embora tenha se tornado um ícone da moralidade, Moro não é uma unanimidade. Ele tem sido criticado por: 1) procurar incriminar sobretudo o PT; 2) abusar do instituto da prisão preventiva para obter confissões dos acusados; 3) aceitar com gosto paparicações de grandes corporações da mídia e outras organizações sociais; 4) não ligar para as consequências da paralisação de contratos e obras no âmbito da Petrobras, com o que estaria favorecendo a fragilização de empresas nacionais e abrindo caminho para a desnacionalização de ativos estatais e privados. Dessa maneira, a Lava Jato seria uma nova edição da privataria tucana, agora pela via judicial (o termo privataria foi difundido por Elio Gaspari, que viu na privatização de estatais nos anos 1990 a prática da pirataria).
Hora de perguntar: quem vai herdar o país que sobrar da Lava Jato? Não há partido que possa se sobressair nessa parada. Nenhumas das 32 siglas vigentes no universo partidário brasileiro tem cacife ou envergadura para reconstruir o edifício da austeridade administrativa. A esta altura do processo, não se sabe sequer quantos partidos restarão depois que a Lava Jato chegar ao fim. A primeira prova será em outubro próximo. A menos de dois meses da corrida às urnas para eleger prefeitos e vereadores, não se ouvem os clarins da campanha eleitoral. Durma-se com um silêncio desses. Falta dinheiro para acionar as gambiarras eleitorais. A prova seguinte para a sobrevivência dos partidos será em 2018 com as eleições para presidente, governador e parlamentares.
Hora de perguntar novamente: que país resultará da limpeza em andamento por iniciativa do MPF com apoio da PF e o respaldo (algo constrangido) do STF?
Ainda é cedo para uma resposta ou até mesmo para um prognóstico calcado na esperança em algo melhor ou, pelo contrário, baseado na observação da realidade de maio para cá, quando o vice-presidente Michel Temer substituiu a presidenta Dilma, mas a mudança em curso sinaliza um retrocesso à época do presidente José Sarney (1985-1990), cujo governo foi marcado pelo fisiologismo e a mediocridade. Afinal, do PMDB não se pode esperar ousadia alguma, pois está na cara que o maior partido brasileiro está atolado em roubalheiras imemoriais.
Recuerdos implacáveis
GERALDO HASSE
As reuniões eram nas segundas-feiras à noite na Rua Augusta, 555, sobreloja, endereço do escritório paulista da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
Íamos por adesão ideológica, simpatia política e interesse jornalístico. Tínhamos consciência de que ali estava desabrochando algo novo.
Tínhamos participado da greve dos jornalistas de maio de 1979, que redundou em 200 demissões na imprensa paulistana.
Na Abril, progressista, ninguém foi mandado embora, nem mesmo um dos expoentes da greve, Rui Falcão, editor-chefe da Exame. Ex-preso político, ele era uma das referências dos jornalistas situados à esquerda do espectro político.
Era nítido que o governo autoritário não tinha futuro. Os sindicatos agitavam as massas, a imprensa nanica levantava bandeiras contra a opressão.
No ABC paulista, reduto da indústria automobilística, o ferramenteiro Lula empolgava a classe metalúrgica com reivindicações salariais e exigências de novos direitos trabalhistas.
E havia outros dirigentes sindicais confiáveis. Jair Meneguelli. AudálioDantas. Luiz Gushikem e Olivio Dutra. Religiosos como Frei Betto. Professores como Laurindo Leal Filho e Fernando Henrique Cardoso, que nem haviam saído do Brasil, como tantos outros.
Com a anistia de agosto de 1979, os exilados estavam voltando. Toda semana descia um figurão no Galeão. Miguel Arraes. Darci Ribeiro. Fernando Gabeira. Apenas Leonel Brizola fez questão de chegar por São Borja, “costeando o alambrado”, para não acordar os fantasmas de 1961, 64, 68.
Alguns desses recém-chegados, sem emprego e sem saber direito a que categoria profissional pertenciam depois de uma década fora do país, pousavam na Rua Augusta 555, que se tornou um point de agregação de personas em busca de uma reconciliação com seu passado e seu futuro.
Éramos em média uns 40/50 por segunda-feira. Quando os frequentadores habituais eram avisados da presença de alguma figura extraordinária, vinda das catacumbas da luta política, das prisões ou do exterior, o quorum da sessão aumentava.
A maioria era de gente da imprensa. Formávamos o núcleo de jornalistas pró-fundação do Partido dos Trabalhadores, aberto naturalmente aos que não pertenciam a outro núcleo profissional ou de bairro.
Além do discreto Rui Falcão, que perderia para Emir Nogueira a eleição para presidente do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, lembro da presença assídua de José Dirceu, da aparição eventual de Bete Mendes e de uma ou outra vez em que baixou na ABI o ex-líder estudantil Luiz Travassos, cuja base original era o Rio de Janeiro.
Também andou por ali José Ibrahim, que havia liderado uma greve em Osasco nos anos 60. Líderes estudantis ou sindicais que estiveram na cadeia ou voltaram do exílio, eles falavam sobre o que disseram ou escreveram Lenin, Marx, Guevara e outros ícones da esquerda.
Era uma discussão para iniciados. Eles acreditavam que se poderia aplicar ao Brasil de 1980 algumas lições da Rússia de 1911 ou 1917. A maioria dos presentes ficava esperando até que o debate refluísse para a situação brasileira, muito confusa e heterogênea, a presidência da República nas mãos de João Figueredo, um general sem traquejo político que aceitou o posto de má vontade, por apego à disciplina.
Ele havia liberado a imprensa, a música e o teatro da censura. Era um avanço, mas nos bastidores da ditadura decadente agiam grupos de extrema-direita que lutavam para não largar as tetas do Poder.
Baixando a voz, também se falava da Repressão, na qual pontificavam figuras como o delegado Sergio Fleury e militares como o general Milton Caveirinha, ambos sinistros e temidos.
Todo mundo desconfiava que nas reuniões da Augusta havia agentes a serviço do regime, como havia informantes nas redações, nos sindicatos, nas gravadoras e nos estúdios de TV. E assim rolaram várias semanas até que o partido foi fundado em 10 de fevereiro de 1980 e cada um tomou seu rumo.
A orientação era para inscrever-se no diretório do seu bairro, mas deixei o tempo correr porque estava disposto a cair fora de São Paulo. Como jornalista, enfim, não me senti à vontade diante da hipótese de filiar-me a um partido.
Militância era uma palavra complicada. Poderia ser um petista sem vínculo, como um torcedor sem carteirinha de sócio do clube. Mas desde a primeira eleição (1982) votei nos candidatos do PT. Somente em 89 balancei entre Brizola e Lula.
Ou, seja, passei a metade da vida enchendo a bola desse partido trabalhista marginal e discriminado por sua origem híbrida, fruto de uma aliança de sindicalistas, religiosos, intelectuais, exilados e trabalhadores em geral.
Passado tanto tempo, tento compreender o que aconteceu. Como explicar que tantos anos depois de sua fundação o partido esteja se esfacelando sob a presidência de Rui Falcão, o jornalista-grevista-referência de 1979? Por que o diabólico Lula está sendo alvo de uma implacável perseguição que tenta enquadrá-lo sob diversas acusações?
Por que o satânico Dr. Dirceu mofa na cadeia, tricondenado e biinvestigado? Como é que Dilma Rousseff não está lá onde devia estar por escolha de 54 milhões de brasileiros? Algo importante se perdeu no caminho de 1980 até aqui. Esse algo precisa ser resgatado.