José Antônio Severo
A jornalista mineira Miriam Leitão, comentarista da Rede Globo, colunista de O Globo e ativa conferencista em eventos empresariais pelo país, é a personagem principal, ao lado de seu ex-marido Marcelo Netto, do livro “Em nome dos Pais”, em que o autor, Matheus Leitão, relata a prisão e tortura dos dois pelos serviços secretos do Exército, no Espírito Santo, em 1972.
No livro, o autor, que é filho do casal, recapitula os horrores de sua mãe seviciada pelos militares e insultada aos gritos de “terrorista” enquanto era despida, humilhada, agredida e jogada numa cela imunda e escura com uma cobra jiboia de cinco metros; curiosamente, há dias narrou Miriam, ao ser admoestada dentro de um avião de passageiros por um grupo de militantes políticos fardados, que a ameaçavam aos gritos de “terrorista”. Ela diz que se lembrou dos dias de chumbo da ditadura.
O livro é uma obra literária que revela uma escola de texto de uma geração de jornalistas de meia idade que está chegando ao comando das redações. Também mostra ao leitor as minúcias do trabalho de um repórter clássico, o que hoje no jargão da imprensa se chama de “jornalismo investigativo”.
O leitor acompanha passo a passo a determinação, o rigor e, também, muito importante, vai com o autor gastando sola de sapatos atrás da notícia. Respira velhos dossiês embolorados no fundo dos arquivos, sobe morros e procura sobreviventes; usa os recursos da tecnologia (gravadores e câmeras), sempre para se resguardar.
Matheus sempre informa a seus interlocutores que é repórter e diz o que está fazendo. Mais ainda: ele se vale de forma muito efetiva da Lei de Acesso à Informação. Tempos modernos de um mesmo país.
A narrativa é muito interessante. A começar pelo nome do autor, Matheus, que era o codinome de seu pai na clandestinidade. A ditadura é um pano de fundo. Quase não se vê em seu lado essencial: um regime que tinha no comando político velhos generais da ativa de quatro estrelas (com mais de 60 anos) e a máquina administrativa aparelhada por um enxame de oficiais da reserva; do outro lado, a fina flor da juventude brasileira.
No teatro de operações um grupo minúsculo de estudantes universitários idealistas (a célula retratada, do PCdoB capixaba, contava com 30 militantes) contra também jovens oficiais do Exército, tenentes e capitães, num combate desigual travado nos porões imundos de quartéis de Vitória e do Rio de Janeiro.
Há cenas pungentes, como o pai do autor, Marcelo, trancafiado numa solitária da Vila Militar, jogando xadrez de memória, sem tabuleiro, movendo as peças por sinais precários, como nas novelas de Alexandre Dumas, com seu companheiro de suplício, o jornalista Jorge Luiz de Souza, num cubículo ao lado, também brutalmente torturado na fase de interrogatórios.
O país andou muito ou muito pouco até chegar ao mundo de Matheus Leitão: Os velhos generais, coronéis e tenentes coronéis de 1964 morreram e foram deixando um vazio ocupado por seus adversários do MDB autêntico de Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Pedro Simon, Marcos Freire e tantos outros.
Estes também se foram, ou se aposentaram, deixando o quadro político para a geração seguinte que chegou ao poder com os tucanos de Fernando Henrique, numa transição para os jovens da guerrilha, que assumem a Presidência com Dilma Rousseff, uma menina dos tempos recuperados no livro e que governava a República enquanto o autor vasculha arquivos e percorre os caminhos dos oprimidos e opressores.
Mal ficaram os operadores da Guerra Suja: a maior parte morreu sem glória, muitos atormentados e frustrados, pois seus chefes boicotaram suas carreiras. Hoje, seus filhos ouvem atônitos as perguntas de Matheus e, até mesmo, expressam simpatia pela luta dos inimigos de seus pais. É um ponto alto do livro os encontros dessa segunda geração, os filhos de torturados e torturadores.
Mesmo sem descartar a emoção inerente à sua posição, Matheus apresenta uma matéria objetiva, muito útil para as novas gerações entenderem o lado humano daqueles tempos terríveis, sem os clichês (estenótipos) recorrentes. Leitura fácil de um texto feito com talento e correção. “Em Nome dos Pais” está, justificadamente, se convertendo em best seller. Um livro fundamental.
Em Nome dos Pais, 448 páginas, Editora Intrínseca, R$ 49