Um documento sobre a formação do Rio Grande do Sul

Selo Diario de SaiEm centenas de páginas manuscritas o naturalista e botanista francês Auguste de Saint-Hilaire, registrou o dia a dia de sua viagem de um ano pelo Rio Grande do Sul a partir de junho de 1820.

Seu diário tornou-se um documento único – o olhar de um europeu culto sobre as condições de vida no Rio Grande do Sul há 200 anos,  quando era ainda um território de campos abertos, escassamente povoados.

Encerrava-se o ciclo das Guerras Cisplatinas, disseminavam-se as estâncias, estabilizavam-se as primeiras povoações nas regiões fronteiriças, uma economia começava a ganhar contornos, além da subsistência.

Embora continue a provocar controvérsias por passagens preconceituosas e outras francamente racistas, inerentes à época, não há como desconhecer a importância da Viagem ao Rio Grande do Sul,  como fonte imprescindível para o conhecimento da sociedade gaúcha.

As anotações de Saint Hilaire são decisivas para que se entenda essa realidade seminal. Nela estão as origens da sociedade riograndense.

No dia 6 de junho, quando há exatos 200 anos Saint Hilaire iniciou seu diário em território do Rio Grande do Sul, o jornal JÁ começou a publicar uma série que vai até junho de 2021.

Serão reportagens, entrevistas, artigos, debates em torno desse monumento histórico que é a Viagem ao Rio Grande do Sul, de August Saint Hilaire.

“Gaúchos e gaudérios eram os  que não tinham trabalho fixo”

Nessa entrevista a Francisco Ribeiro, o historiador Moacyr Flores (via email, em respeito ao isolamento imposto pela covid-19), aborda principalmente as afirmações de Saint Hilaire que hoje soam preconceituosas e abertamente racistas:

JÁ – Qual a importância, para a história do Rio Grande do Sul, do testemunho, em forma de diário, de Saint-Hilaire?

MF –  É um dos poucos documentos que permite a reconstituição social, política e econômica do Rio Grande do Sul, no início do século XIX.

A primeira coisa que chama atenção é a indigência dos moradores do litoral. Qual a razão?

MF – O litoral estava distante, sem portos para comunicação marítima. O único porto era o de Rio Grande, com uma barra perigosa, que permitia entrada de embarcações de novembro a março, por causa dos ventos, bancos de areia e corrente marítima vindas das ilhas Malvinas.

JÁ – A contradição entre a indigência das habitações e o trajar das mulheres, melhor, segundo Saint-Hilaire, do que as camponesas francesas.

MF – Não há contradição. Na França os nobres e sacerdotes eram os donos da terra, não trabalhavam nem pagavam impostos. Os comerciantes viviam bem numa sociedade mercantilista, embora pagassem impostos. Os camponeses não eram donos da terra, pagavam altos impostos. A miséria estava no campo. No Brasil formou-se uma economia de consumo, em troca da exploração da cana de açúcar, algodão, pedras preciosas. O morador da área rural era geralmente dono da terra.

JÁ – Nota-se, nos relatos de Saint-Hilaire, um imenso desprezo pelos índios, sobretudo pelas índias. Fala que elas não têm pudor. Também acusa de causarem muitos males aos brancos que, ao que parece, segundo ele conta, ficavam enfeitiçados por elas.

MF – A moral dos índios era diferente da moral dos europeus cristãos. O padre Ruiz de Montoya, no seu livro Conquista Espiritual, narra que, para atrair e fixar os guaranis numa missão, devia-se silenciar sobre os pecados provocados pela sexualidade, e não impor casamento monogâmico.

JÁ – Contudo, ele não deixa de acentuar a decadência moral e material dos guaranis devido a destruição das missões jesuíticas.

MF – Porque os índios ficaram sem o controle da moral pelos jesuítas, voltando aos valores ancestrais.

JÁ – Ele sempre insiste na ideia de que um dos problemas dos índios é que eles não possuem a “noção de futuro”. No que ele se apoia?

MF – No conhecimento geral. Na mentalidade indígena o passado deixou de existir, vivia-se o presente e o futuro ainda não existia.

JÁ – Ele não é preconceituoso somente em relação aos índios. Faz críticas duras a todos os grupos étnicos e sociais que viviam no Rio Grande do Sul naquele período. Trata-se do olhar de um nobre europeu, civilizado, diante de um contexto primitivo, que alterna civilização e barbárie?

MF – Até hoje o nacionalismo dos europeus é preconceituoso a quem não é de sua nacionalidade e cultura.

JÁ – Para Saint-Hilaire, gaúcho e bandido são sinônimos. Preconceito que, na época, era comum a rio-grandenses e platinos, não é?

MF – Saint-Hilaire apenas confirma a existência desses indivíduos marginais à sociedade da época. Os gaudérios ou gaúchos formavam um grupo social à parte, que não possuíam trabalho fixo.

JÁ – Ele faz muitas considerações sobre Porto Alegre. Acha-a bonita, porém mais suja que o Rio de Janeiro. Também que não há aquecimento, lareiras, nas casas…

MF – Todas as cidades eram sujas. Jogava-se todo o tipo de lixo no meio da rua, que só era limpa pelas chuvas fortes. Os camponeses na Europa tinham o estábulo numa divisão da casa, pois os excrementos e calor dos animais serviam para aquecer no inverno.

JÁ-  O Rio Grande do Sul, na época em que Saint-Hilaire esteve por aqui, era uma imensa praça de guerra, um acampamento militar, principalmente depois da anexação da Banda Oriental, sob o nome de província Cisplatina.

MF – O território do Rio Grande do Sul pertencia à Espanha pelo tratado de Tordesilhas. Os portugueses colonizaram o Brasil até Cananeia deixando o Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul atuais para os espanhóis. Só a partir de 1680, com a fundação da Colônia do Sacramento, é que a política portuguesa conquistou este território.

JÁ – Pelos relatos de Saint-Hilaire, chama a atenção o enorme contingente de soldados indígenas, havendo regimentos compostos só com esta etnia.

MF – O índio era guerreiro. Ao ser absorvido pela civilização, sentou praça no exército espanhol e português. Também trabalhou como peão, tropeiro, capataz.

JÁ – Ele fala muito sobre um general índio, Siti, e seu bando de gaúchos. Qual a relevância deste personagem?

MF – Os gaúchos surgiram junto aos toldos dos índios charruas, adotando seus costumes. E cada bando obedecia a um chefe.

JÁ – Nos meses que passou no Rio Grande do Sul, Saint-Hilaire constatou que a capitania era uma das mais ricas do Brasil. Também relatou uma série de descontentamentos, principalmente em relação aos impostos, que deflagrariam a Revolução Farroupilha.

MF – O Rio Grande do Sul exportava seus produtos de navio pelo porto de Rio Grande para o Rio de Janeiro. Também por tropas de mulas seguindo para os Campos de Curitiba, Sorocaba, e daí para o Rio de Janeiro ou Juiz de Fora. Um terço do imposto era pago na origem, isto no Rio Grande do Sul, e um terço em Sorocaba, e o terço final no Rio de Janeiro ou Juiz de Fora. Os rio-grandenses do partido farroupilha queriam que todo o imposto fosse pago na origem do produto.

JÁ – Fora o caráter científico, o que diferencia Saint-Hilaire dos demais viajantes como, por exemplo, Nicholas Dreys ou Arsene Isabelle, que percorreram o Rio Grande do Sul nas primeiras décadas do século XIX?

MF – A maioria desses viajantes era financiada por grandes comerciantes europeus. Eram concorrentes. Atrás do caráter científico também tinha o objetivo de descobrir novos produtos que poderiam ser comercializados. Tinham o compromisso com seus financistas de apresentar resultados de como melhorar e ganhar mais com as descobertas que faziam. Enfim, de explorar nosso mercado de consumo.

JÁ – Embora aristocrata, Saint-Hilaire foi contemporâneo das mudanças culturais e políticas que assolaram a França e se espelharam pelo mundo. Ele tem uma relação estranha com o índio, botocudo, Firmiano, ou com outros, que pretende levar para França. O romantismo de Rosseau, do “bom selvagem,” passou longe dele?

MF – Os românticos como Gonçalves Dias e José de Alencar é que ressuscitaram o bom selvagem do Rousseau. Atualmente ainda existem os que exploram politicamente os índios como coitadinhos. Acham que devem receber toda a proteção e mordomias da sociedade dos que trabalham e produzem. Os portugueses e brasileiros que conquistaram o país sempre mantiveram a imagem do canibal, refratário ao trabalho.

JÁ – O diário sobre a viagem ao Rio Grande do Sul foi publicado postumamente. em 1887. Ou seja, entre a viagem e a sua morte, ele teve mais de 30 anos para rever, acrescentar, cortar, ou alterar. Parece, não abdicou de nenhum dos seus preconceitos?

MF – Não eram preconceitos na época em que ele escreveu seu diário de viagem. Era um olhar europeu a outra cultura.

JÁ – Os poetas Manoel Bandeira e Carlos Drumond de Andrade enaltecem Saint-Hilaire, o chamam de amigo. Os rio-grandenses teriam motivos para fazer o mesmo?

MF – Os dois poetas têm suas razões que a razão de um historiador desconhece.

Saint-Hilaire, por sua arrogância francesa, não foi convidado para as casas dos porto- alegrenses, que viram com desconfiança apenas mais um forasteiro.

JÁ – Ele descreve uma cena, numa estância, na qual um escravo, entre 10 e 12 anos, é muito maltratado. Afirma nunca ter visto criança mais triste. Trata-se de um dos relatos mais pungentes da história da escravidão no Rio Grande do Sul.

MF – Todas as crianças eram maltratadas, mas creio que a história desse moleque seja um caso único.

JÁ – Histórias de crianças judiadas pelos patrões, que remete a lenda do Negrinho do Pastoreio?

MF – A lenda do Negrinho do Pastoreio é criada durante o romantismo, já no fim do século XIX, durante a Campanha Abolicionista. Apolinário Porto Alegre deixou escrita esta lenda com o nome de Crioulo do Pastoreio. José de Alencar escreve a peça Demônio familiar, na qual o moleque é considerado como um demônio, que não é responsável por seus atos por não ter liberdade. Apolinário Porto Alegre também escreveu uma comédia, onde o negrinho é o demônio familiar. Só havia uma solução para terminar com as diabruras: dar liberdade, pois, então seria responsável por seus atos.

JÁ – Por outro lado, ele diz que os negros do Rio Grande do Sul eram os mais felizes das províncias brasileiras: comiam muita carne e não andavam a pé. Viviam a cavalgar, o que era mais um prazer do que uma fatiga. Procede?

MF – Os escravos das grandes plantações de cana-de-açúcar e de café estavam divididos em lotes. Cada lote era cuidado e disciplinado por um feitor. Os escravos domésticos gozavam de melhor viver, pois não possuíam feitor, estavam sob as ordens da mãe preta, que criou os filhos dos donos.

Os escravos das fazendas de criação no Rio Grande do Sul, que trabalhavam como peões, tinham cavalos e cuidavam de um pasto chamado de posto, morando no seu rancho, não tinham feitor. O Capataz de Domingos José de Almeida era escravo e conduzia a tropa de gado de Pelotas para a charqueada na Barra do Ribeiro, recebendo pagamento. Durante a fase do tropeirismo também havia capatazes escravos, que levavam mercadorias ou mulas para vender em Sorocaba: pagava imposto e comprava principalmente sal, ferramentas, e mantimentos retornando à fazenda de seu senhor.

O pior trabalho era na charqueada, onde se trabalhava com determinada produção, vigiado por feitor negro. Como se trabalhava durante a safra, de novembro a março, a maior parte dos escravos era alugada, pois o charqueador não iria sustentar escravos no período de março a novembro, quando cessava ou diminuía o abate de gado. Os rio-grandenses compravam escravos no mercado de Escravos, de ciganos na rua do Valongo, Rio de Janeiro. Davam preferência as crianças, pois custavam mais barato.

 

 

A viagem de Saint Hilaire: Um olhar crítico sobre o Rio Grande do Sul

Selo Diario de SaiFrancisco Ribeiro

Na manhã do dia cinco de junho de 1820 o botânico e naturalista  francês Auguste de Saint-Hilaire cruzou o rio Mampituba (“o pai do frio”) e entrou na capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul.

Viajando numa carroça pelo litoral atravessou a fronteira e chegou a Montevidéu, de onde retornou completando um ano de viagem durante o qual  escreveu o melhor relato sobre a situação do Rio Grande do Sul naquele período.

Sob forma de diário, mas sem o tom intimista que caracteriza o gênero, Saint-Hilaire recolheu material que ultrapassava sua expertise como botânico.

Escreveu sobre usos e costumes, gentes, clima, acidentes geográficos, situação política e econômica, num momento em que a ocupação do território era incipiente, a população não ia além de 80 mil habitantes, dispersa em pequenos povoados.

Também teve um olhar crítico sobre a administração da capitania  sob o império portugues.

Castelo de La Turpiniére, onde nasceu Saint Hilaire

Auguste François César Prouvençal de Saint-Hilaire nasceu em 1779, em Orleães, França. Nobre, cresceu no Chateau de la Turpiniere, ao qual voltou para morrer em 1853.

Teve uma infância no Ancien Regime. Era adolescente na época do Terror (1793-1794), quando rolaram as cabeças dos antigos monarcas e, na sequência, dos principais líderes da Revolução Francesa, Danton e Robespierre.

Presenciou a ascensão e a queda de Napoleão I,  e a restauração dos Bourbons em 1815. Em meio a tudo isso estudou história natural, tornando-se botanista.  Algo vertiginoso.

Já era um homem maduro, próximo dos 40, quando chegou, em 1816, no Rio de Janeiro, na companhia do Duque de Luxemburgo, designado como embaixador na corte de D. João VI.

As relações entre França e Portugal caminhavam para a normalização, mas, por longo tempo, cairia sobre qualquer francês a desconfiança de ser um espião.

O que não impediu a Saint-Hilaire de obter as cartas de recomendação necessárias a peregrinar pelo Brasil como visitante oficial, recebendo por onde passasse a ajuda – transporte, comida, hospedagem – que precisasse.

Saint Hilaire fazia parte da nova leva de exploradores, os naturalistas, cujas observações, de cunho científico, passavam a concorrer com os relatos, muitas vezes de tom picarescos, dos primeiros aventureiros que, como Hans Staden, escreveram sobre o Brasil.

Saint- Hilaire, como Carl Friedrich Von Martius (naturalista, que percorreu o parte do Brasil no mesmo período que ele), ou John Mawe (minerador, viajou pelo Brasil entre 1807 e 1811), ou, posteriormente, Georg Heinrich von Langsdorff,  são, prioritariamente, cientistas.

E, como seus pares, Saint-Hilaire não se contentará em apenas coletar material para análises e futuras coleções de plantas e animais destinados aos museus naturais da Europa.

Do castelo ao pampa

Quando Saint-Hilaire cruzou o Mampituba, trazia consigo a experiência de quase quatro anos de viagens pelo interior do Brasil – Rio, Minas, Goiás, São Paulo, etc –, viajando a pé, de barco, de carroça ou no lombo de um cavalo.

Fez um trabalho científico minucioso, principalmente no que tange a herborização. Ao término de sua viagem obteve uma estupenda coleção e catalogação de sete mil espécies de plantas. Acervo que seria  entregue ao Museu de História Natural de Paris.

Quando chegou ao Rio Grande do Sul, Saint-Hilaire  também trazia as fadigas acumuladas pelas penosas viagens e o descontentamento com aqueles que o serviam: José Mariano, um tropeiro mestiço alugado em Ubá; Manoel, um negro-forro alugado em São Paulo, encarregado do trato, carga e descarga dos animais; e Firmiano, um índio botocudo, encarregado do transporte e do preparo das provisões.

Enfim, ao cruzar o Mampituba, Sain-Hilaire, como sugere, explicitamente, as anotações do seu diário, não está no seu melhor astral. Escreve:

“Esta viagem vai se tornando cada vez mais penosa, contribuindo para o esgotamento de minhas forças e de meu ânimo. A imagem de minha mãe apresenta-se sem cessar em meu espírito, e, sempre me encontro sem ter com que me distrair vejo-me cercado de pessoas descontentes”. (SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul.Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1974).

Estes períodos de chagrin (desgosto), como ele diria, volta e meia aparecem em seus relatos. Mas nada que o impeça de trabalhar, herborizar, como gosta de salientar.  Assim, ao passear pelos montes, Torres, admira cactáceas, um grande Eryngium, e entre bromelácias e arbustos, constata pela primeira vez na costa sul  a mirtácea chamada pitanga.

Mas, se prevalece sempre o lado botânico, naturalista, Saint-Hilaire também registra que em meio a magnífica e, então, desolada paisagem do litoral Norte – mar a leste, lagoas, serra geral, cordilheira, a oeste – vivem camponeses muito pobres, que moram em míseras cabanas, choupanas e palhoças.

Habitações onde o frio, a chuva e o vento entravam por todos os lados. Algumas beiravam a tal indigência que ele recusa a hospitalidade, seja para pernoitar (“mandar fazer o seu leito”), seja para partilhar a sopa que uma família consome sob uma esteira estendida no chão de terra.

Mas, por outro lado, constata que não falta comida. Há culturas de milho, trigo, feijão, algum algodão, e alguma cana-de-açúcar para fabricar aguardente. Não eram de ferro.

Também analisa que, devido à falta de recursos dos camponeses do litoral, o rebanho é em número inferior ao tamanho das pastagens.

Apesar dessas primeiras impressões, Saint-Hilaire logo constatará que a Capitania do Rio Grande do Sul é uma das mais ricas do Brasil. E seu astral melhora ao atingir os Campos de Viamão e, logo depois, chegar a Porto Alegre, que já era capital, mais ainda não tinha ganho o foro de cidade, que só viria a ocorrer em 1822.

Saint-Hilaire permaneceu mais de um mês em Porto Alegre e, se por um lado, a considera mais suja que o Rio de Janeiro, por outro, não deixa de ressaltar as suas belezas. Escreve:

“Os terrenos planos e cultivados que vi, logo ao chegar a Porto Alegre, ficam apertados entre o caminho novo (atual Voluntários da Pátria) e a colina na extremidade da qual se acha a cidade. Raros são os passeios tão encantadores como o do Caminho Novo, o qual lembra tudo quanto existe de mais agradável na Europa”. (SAINT-HILAIRE,  1974).

Foi o primeiro, dada confluência dos rios – Caí, Gravataí, Jacuí, Sinos – a denominar o Guaíba como lago.

Percebe também que acidade está cheia de construções novas, que tem um porto e um comércio efervescentes. Também nota que, apesar do frio, as casas não possuem aquecimento, lareiras.

Isso faz com que as pessoas, dentro de casa, mesmo vestindo pesados capotes, que tolhem seus movimentos, continuem a tremer de frio.

Como curiosidade, no seu diário, em quatro de julho de 1820, escreve que: […]”Há geada quase todas as noites e o Conde (Conde da Figueira, governador, na época) mandou juntar muito gelo para fazer sorvete”. (SAINT-HILAIRE, 1974).

Também é a partir de Porto Alegre que Saint-Hilaire começará a entender realmente a complexidade dos interesses políticos, econômicos e militares que envolvem a capitania.

Mapeia regiões e recolhe dados sobre a flora, a fauna, exportações e importações, contingentes militares. Primeiro, em sua jornada rumo a Montevidéu. Depois, em seu retorno, já em 1821, ao Rio Grande do Sul, percorrendo as Missões, voltando a Porto Alegre.

Neste percurso, próximo ao arroio Guaratapuitã (cercanias de Uruguaiana), em primeiro de fevereiro de 1821, ocorreu a incrível experiência de Saint-Hilaire ao consumir o mel da lechiguana.

Eis como é que ele conta a “viagem”: […] “avalio não ter tomado quantidade a duas colheradas. Senti logo uma dor no estômago, mais incômoda que forte e deitei-me em baixo da carruagem, com a cabeça apoiada sobre uma pasta do herbário, caindo em uma espécie de sonolência, durante a qual senti-me transportado aos espaços celestiais, ouvindo uma voz que gritava: “Ele não se perderá, há um anjo que o protege.” Nesse instante minha irmã veio buscar-me pela mão. Achava-se vestida de branco, com uma faixa ao redor do corpo e sua fisionomia trazia aparência de inexpressável calma e serenidade. Tomou-me pela mão, sem me olhar e sem proferir uma só palavra, e conduziu-me perante o tribunal de Deus. Lembrei-me das últimas palavras da parábola do Bom Pastor e acordei”. (SAINT-HILAIRE, 1974).

Seguiram-se vômitos, sustos, e chás para cortar o efeito.. Conforme informa, entre o consumo do mel, 10 da manhã, e a volta da “sobriedade”, ao pôr do sol, Saint-Hilaire viveu, avant la lettre, aquilo que se chamaria de bad trip.

Ou seja, não dá pra configurar um Saint-Hilaire “viajandão” pelo pampa, pois, no fundo, levou a experiência como uma espécie de envenenamento, com sequelas, e da qual custaria a se restabelecer.

De resto, muitas anotações interessantes nesses percursos da volta ao Rio Grande do Sul.

A fertilidade dos solos, capazes de produzir cereais em abundância, e frutas de clima temperado. E as pastagens que, mesmo inferiores às uruguaias, garantem uma carne de excelente qualidade e um “magnífico leite”.

Sua curiosidade em relação à economia da capitania faz com que, em Rio Grande, obtenha informações e liste as importações e as exportações dos anos logo anteriores aos de sua chegada, de 1816 a 1819.

Elas dão um bom quadro do movimento comercial da época. A capitania exportou: carne seca, sebo, graxa, crinas, barris de carne salgada, couros de bois, couros de égua, trigo.

E importou: sal, farinha de mandioca, arroz, açúcar, marmelada, doces e chocolates, café, chá, vinhos, aguardente, presunto, bacalhau, manteiga, queijos, fumo, tecidos, móveis e, claro, escravos.

Mas, se por um lado, e para a época, trata-se de uma economia pujante, por outro, sofre, segundo Saint-Hilaire, as mazelas de um governo incapaz de defender os interesses da capitania no que tange a cobrança de impostos, considerados excessivos, e os abusos de requisições, como animais, para as tropas.

Também ouve e registra queixas sobre a falta de infra-estrutura, estradas intransitáveis, e, principalmente, pontes: “Venho de terminar uma viagem de quase 600 léguas, em região sulcada de rios e é notável não ter encontrado uma só ponte. Em toda parte só encontro pirogas, e essas quase sempre em péssimo estado.” ( SAINT-HILAIRE, 1974).

O governo era incapaz, inclusive, de oferecer segurança e, daí, conforme testemunhos dados a Saint-Hilaire, o abandono de muitas estâncias pela desistência de alguns proprietários em reconstruir, pela terceira vez, benfeitorias destruídas por tropas regulares, espanhóis ou portuguesas, milícias, mercenários, índios, ou bando de gaúchos.

Todos, invariavelmente, nestas ações, “requisicionavam” o gado, cavalos e tudo que pudessem levar.

Enfim, as anotações de Saint Hilaire sobre todas as mazelas que envolvem a administração da capitania. E a relação da mesma com o poder central – mesmo depois de efetuada a independência do Brasil, em 1822, dão elementos para vislumbrar a gênese do descontentamento que fará eclodir, em 1835, a Revolução Farroupilha.

Entre a civilização e a barbárie

O Rio Grande do Sul que Saint-Hilaire conheceu era um espaço geográfico sujeito a guerra de fronteiras ainda não definidas.

Uma disputa  por terras que desde o século XVII conduzia ao engalfinhamento portugueses e espanhóis. E o conflito aumentou quando, depois de uma intervenção contra Artigas, comandada pelo general Lecor, em 1817, o governo português anexou a Banda Oriental, sob o nome de província Cisplatina, ao Brasil.

Assim, o Rio Grande do Sul no qual chegou Saint-Hilaire era uma praça de guerra, um grande acampamento militar em meio ao qual tentavam sobreviver – cada um de acordo com a condição a que estava sujeito – brancos, índios, negros e mestiços.

O que não era fácil apesar da abundância de carne e montaria.  O Rio Grande do Sul também já era habitado por “bárbaros” gaúchos, termo que na época designava seres marginais, associados a crimes, pilhagens. Muito longe da aura aventureira que lhes daria José Hernandez com o seu Martin Fierro.

O gaúcho de Saint-Hilaire não é um monarca das coxilhas, mas um bandido, ou, o mais simpático que consegue chegar, “um bandoleiro de melodrama”.

Preconceito que poderia ser estendido a maioria dos rio-grandenses e platinos que, numa escala social, colocavam o gaúcho abaixo do escravo que, pelo menos, tinha cotação de mercado, era um “bem”.

Já o gaudério tinha serventia, ocasionalmente, como peão, principalmente em épocas de rodeio, ou soldado provisório nas guerras de fronteira. Mais comumente, era tido como ladrão, conforme exemplifica este testemunho colhido por Saint-Hilaire: […] “Os animais de Itaruquem (estância) desapareceram quando os gaúchos entraram em São Nicolau”. (SAINT-HILAIRE, 1974).

Entretanto, a prática de roubo de gado ou, eufemisticamente, “requisições”, era comum entre tropas (invasoras, rebeldes, ou legalistas), ou milícias que em troca, ofereciam vales que dificilmente eram pagos.

Na verdade, nenhum grupo social ou étnico fica imune ao julgamento e preconceitos de Saint Hilaire, embora, muitas vezes, se contradiga.

Os primeiros, logo na chegada, a colocar sob sua mira são índios,  em Torres, num agrupamento de índios, prisioneiros, tomados a Artigas, e que seriam empregados na construção de um forte.

Eles eram:[…] “todos baixos, têm o peito de largura exagerada, os cabelos negros e lisos, o pescoço curto e uma fisionomia verdadeiramente ignóbil” (SAINT-HILAIRE, 1974).

Entretanto, logo em seguida, escreve que o alferes encarregado deles fez um “elogio de sua docilidade” (SAINT-HILAIRE, 1974). Meses depois, diante de um índio guaicuru percebe: […] “algo de nobre em sua fisionomia” (SAINT-HILAIRE, 1974).

Este desprezo em relação aos índios será recorrente em todo o livro. Mas, nada se compara ao julgamento que faz das índias. Para ele, são “feias, sem pudor, sem brio”, oferecendo-se aos homens que o acompanhavam.

Também, acrescenta, transmitem doenças venéreas. E, sobretudo, ociosas; […] “Não as vi fazer nada além de andar a toa e dormir” (SAINT-HILAIRE, 1974). E ele registra um dos dizeres da época: “As índias diziam que se entregavam aos homens de sua raça por dever, aos brancos por interesse e aos pretos por prazer” (SAINT-HILAIRE, 1974).

Saint Hilaire atribui a degeneração moral e material dos índios guaranis a destruição das missões: […]”Depois da saída dos Jesuítas os índios das Missões ficaram entregues aos soldados e homens corrompidos, vivendo atualmente de pilhagem, no meio das desordens da guerra, não sendo de admirar se suas mulheres não mais conheçam o pudor” (SAINT-HILAIRE, 1974)

Saint-Hilaire também se  apega a ideia de que o principal problema dos índios, e nisso, segundo ele, inferiores aos negros, é sua falta de “noção de futuro”, apegando-se unicamente ao presente.

Vê-os como crianças, seduzidos por doces, como a garapa da cana fornecida pelos padres. Assim como a música, agora também utilizadas pelo militares para engajá-los nas tropas. E nisso, chama a atenção, no período, o enorme contingente de soldados índios envolvidos em combates nos dois lados da fronteira.

Contudo, em relação às índias, não se trata propriamente de misoginia. Ele é mais simpático em relação ao mulherio local, portuguesas, ou de origem, que, se não chegam a ter o charme das francesas, não se escondem, como em outras províncias do interior do Brasil, diante dos homens.

É interessante a descrição que faz de um grupo de senhoras num baile, em Rio Grande:[…] “Têm os olhos e os cabelos negros, e em geral belo porte e boa cor, porém, destituídas de graça, de atrativos dados pela educação, que as mulheres deste País não recebem”. (SAINT-HILAIRE, 1974).

Vale ressaltar o acento que dá sobre a falta de educação para meninas.

Tem um trato diferenciado em relação aos negros. Primeiro, como seres de segunda ordem. São comuns as expressões como: casa para negros, roupas para negros, um negro me trouxe isto ou aquilo.

Depois, valoriza-os em relação aos negros de outras províncias: […] “não há, creio, em todo o Brasil, lugar onde os escravos sejam mais felizes que nesta capitania […] os senhores tratam-nos com menos desprezo […] o escravo come carne a vontade, não é mal vestido, não anda a pé e sua principal  ocupação consiste em galopar pelos campos, cousa mais sadia que fatigante” (SAINT-HILAIRE, 1974).

Também valoriza os negros como grupo étnico: […] “quase todos os escravos do Barão (José Egídio, barão de Santo Ângelo) são negros-minas, tribo bem superior a todas as outras, por sua inteligência, fidelidade e amor ao trabalho”. (SAINT-HILAIRE, 1974).

Mas percebe a verdadeira relação, simples mercadoria, noutra situação, trágica, testemunha, ao ser içado do rio o corpo, cadáver, de um negro que se afogara, e ver o patrão gritor: [..] “Ah, meu dinheiro! Meu dinheiro! Que me custa tanto a ganhar”. (SAINT-HILAIRE, 1974).

Contudo, foi numa estância nas charqueadas que Saint-Hilaire testemunhou uma das cenas mais tristes da escravidão no Brasil:

“Há sempre na sala um pequeno negro de 10 a 12 anos, cuja função é ir chamar os outros escravos, servir água e prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz que esta criança. Nunca se assenta, jamais sorri, em tempo algum brinca! Passa a vida tristemente encostado à parede e é frequentemente maltratado pelos filhos do dono. A noite chega-lhe o sono, e, quando não há ninguém na sala, cai de joelhos para poder dormir. Não é esta a casa a única que usa esse impiedoso sistema: ele é frequente em outras” (SAINT-HILAIRE, 1974).

Se tem compaixão por um escravo e, também, apesar do desprezo, da sorte dos índios, Saint-Hilaire não deixa de ter um senso de meritocracia.

Assim, se louva o português, ou de origem lusa, ou europeu em geral, que, mesmo de baixa extração, enriquece pela iniciativa e senso de economia, faz o mesmo com índios, negros e mulatos que, apesar de todas as adversidades, souberam, através de esforço próprio, alçar-se muito além de sua condição humilde, seja ocupando cargos de oficiais militares, seja na aquisição de propriedades.

Sinal que, apesar de membro da aristocracia do Ancien Regime, não ficou imune a revolução burguesa que se operava.

Mas, talvez devido a falta de noção de pompa e circunstância, não poupa a elite local: […] “Os habitantes desta Capitania são ricos e não ambicionam senão o aumento dessa riqueza. Tal fortuna, entretanto, pouco contribui para o conforto de suas existências; nutrem-se mal e não conhecem diversões. Os momentos de lazer são dedicados ao jogo ou as intriguinhas de aldeia. Na maior parte são ignorantes e sem educação; como não recebem nenhuma instrução moral e honra agem sempre de má fé em seus negócios”. (SAINT-HILAIRE, 1974).

Como pode reparar, a pompa, elite ou não, dos rio-grandenses, estava na prataria que adornavam peças de montaria, arreios, esporas, etc.

Legado

Aristocrata, Saint-Hilaire era seguidor de uma ideologia que preconizava uma hierarquia de raças, que seria utilizada ao longo do século XIX na política colonial européia, legitimando, em nome de uma “missão civilizatória”, a ocupação de terras na África, na Ásia, em detrimento das populações autóctones, assim como ocorreu na América.

Seu livro, hoje, devido as considerações preconceituosas – sobre índios, negros, mestiços, americanos em geral – pode ser considerado como racista.

Também seria taxado de machista pelas considerações que faz sobre as mulheres e até misógino, caso das índias. Enfim, um diário cheio de declarações politicamente incorretas, destinado ao índex dos bem pensantes, e o autor no rol dos não frequentáveis.

Também se deve considerar que o diário sobre a viagem ao Rio Grande do Sul foi publicado postumamente. Ou seja, ele teve mais de 30 anos para rever, acrescentar, cortar, ou alterar seus escritos. Parece que não fez nada disso. Ou seja, não abdicou de nenhum dos seus preconceitos.

Porém, restringido aos valores e preconceitos do seu tempo, e na forma como descreveu a sua viagem, misturando observações de cunho científico a confissões de ordem pessoal, Viagem ao Rio Grande do Sul, fora os diversos aportes históricos de dados sociais, culturais e econômicos já citados, mostra um universo em transição, de fronteiras não delineadas, de conflitos de interesses, onde se digladiam brancos, portugueses, ou de origem, espanhóis, ou de origem, índios, negros, e mestiços, representados pelos “bárbaros” gaúchos, lutando por espaços ou liberdade.

Um farto material para pesquisas de caráter histórico e científico, e também para ficcionistas diante de um contexto onde, se havia muita miséria, também havia muita aventura, e homens que se nutriam somente de carne, muitas vezes sem sal. Saint-Hilaire, como previra, talvez tenha sentido muita saudade (nostalgie) desses “desertos”, como eram denominadas as regiões onde não havia cristãos.