Mudanças acionárias movimentam milhões

Realização da Audiência Pública foi aprovada pela Comissão para Assuntos Municipais | Tânia Meinerz

Naira Hofmeister
Cinco anos após a licitação do Cais Mauá e sem que a aguardada revitalização tenha saído do papel, o negócio já movimentou milhões de reais.
Isso acontece principalmente através de sucessivos aumentos de capital social do consórcio, da captação financeira e da venda de cotas de ações.
Neste período, a detentora da concessão do antigo porto da Capital, a Cais Mauá do Brasil. S.A., viu seu capital social passar de R$ 1 mil – conforme a ata da assembleia de constituição da sociedade anônima, em dezembro de 2010 – para R$ 13,8 milhões, segundo dados atualizados da Receita Federal.
Leia mais:
DOSSIÊ CAIS MAUÁ – Revitalização desafia governos há três décadas
DOSSIÊ CAIS MAUÁ – Licitação teve um único concorrente
A valorização da sociedade anônima, criada sob o modelo de “propósito específico”, ou seja, exclusivamente para a execução do empreendimento, se deu em meio a mudanças na composição de acionistas.
Hoje, apenas duas das cinco empresas que integravam o consórcio vencedor da concorrência pública de 2010 permanecem no negócio.
Quando foi criada, a Cais Mauá do Brasil tinha seus R$ 1 mil de capital social divididos entre uma empresa brasileira e quatro espanholas:
– Contern (BRA): 10%
– Iberosport Asesores de Inversiones (Iberosport – ESP): 10%
– Gestio I Serveis Trade Center (GIS – ESP): 40%
– Strategy Planning Implementation Manegement (Spim – ESP): 26%
– Solo Real State (Solo – ESP): 14%
Destas, apenas a Contern e a Solo seguem no negócio. A primeira mantém a participação de 10% inalterada e a Solo deixou de ser acionista independente para compor uma holding, a GSS, que hoje detém 51% das cotas da Cais Mauá do Brasil.
Além da Contern e da GSS, o terceiro e último sócio, com 39% das ações, é um fundo de investimento chamado Fundo de Investimento em Participações Porto Cais Mauá (FIP).
Essa mudança não ocorreu de uma só vez. Embora o Governo do Estado reconheça a comunicação formal de duas alterações societárias – obrigação que consta do contrato e é um dos apontamentos de irregularidades feitos pelo Tribunal de Contas do Estado – a transformação da Cais Mauá do Brasil S.A. foi sendo operada vagarosamente ao longo do período.
Se deu não apenas com a entrada e saída de novos sócios mas também com a mudança no controle da empresa através da passagem de ações de um componente para o outro.
GSS é uma holding criada em novembro de 2011 para unificar a participação de três espanholas (GIS, Spim e Solo) cujas iniciais deram nome à nova empresa.
Porém, ela própria alterou sua composição ao longo do período, de tal forma que o quadro de atual de sócios registrado na Receita Federal é composto pela Solo (a única remanescente), Bluelog S.A. e por um cidadão espanhol chamado Jose Munne Costa.
Fundos de investimento capitalizaram o negócio
O maior aumento de capital social da Cais Mauá do Brasil S.A. se concentrou em um período de um ano: entre outubro de 2012 – quando passou dos R$ 1 mil para R$ 2,2 milhões – até novembro de 2013, quando alcançou R$ 11,5 milhões.
Coincide com o ingresso no negócio de uma gestora de ativos do Rio de Janeiro, a NSG Capital. Aconteceu no segundo semestre de 2012, após a homologação do acordo entre o Governo do Estado e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), que pôs fim a um litígio judicial e permitiu o desenrolar do contrato normalmente.
A chegada da NSG se deu em um momento em que havia descrédito sobre o futuro do empreendimento; circulavam informações sobre a descapitalização dos espanhóis, fruto da grave crise econômica que se abateu sobre o país a partir de 2008.
Sobre a nova sócia, um dos então diretores do consórcio, o espanhol Francisco Javier Arán, declarou ao jornal Zero Hora: “Estamos envolvidos nesse projeto há cinco anos. Cinco longos anos em que enfrentamos dificuldades. Estávamos um pouco sozinhos, mas agora temos um parceiro forte”.
Na verdade, a NSG nunca foi sócia efetiva do Cais Mauá, mas participa do consórcio através de fundos criados para capitalizar o negócio: primeiro o Fundo de Investimento Imobiliário RSB1, depois com o Fundo de Investimentos em Participações Porto Cais Mauá (FIP).
Em dezembro de 2014, a NSG trocou de nome, passando a chamar-se ICLA Trust, mas mantendo o controle sobre a participação societária dos fundos na Cais Mauá do Brasil S.A.
É pouco antes da formalização do ingresso da NSG que ocorre o primeiro salto no valor do capital social da Cais Mauá do Brasil S.A., que passa de R$ 1 mil para R$ 2,2 milhões.
O aumento está registrado na ata da assembleia geral extraordinária da empresa, ocorrida em 18 de outubro de 2012, assinada pelos dois únicos sócios daquele momento: Contern e GSS.
Duas semanas depois, entretanto, em 1º de novembro, a Cais Mauá do Brasil S.A. informava através de carta para a Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH) que havia um novo integrante em seu quadro acionário: o Fundo de Investimento Imobiliário RSB1, “representado por seu gestor NSG Capital”, que controlava 2,22% da companhia.
A gestora de ativos carioca aumentou rapidamente seu percentual de participação, de modo que em 40 dias foi oficialmente anunciada como nova sócia do negócio “detendo 39% das ações do grupo” segundo noticiou o Governo do Estado.
A injeção de recursos seguiu em escalada. No final de janeiro de 2013, o capital social da Cais Mauá do Brasil S.A. foi elevado a R$ 10 milhões e nos últimos dias do ano, novo aporte financeiro registrou o valor de R$ 11,5 milhões.
Desde então, houve pelo menos um novo acréscimo, até atingir os R$ 13,8 milhões atuais.

Arte: Andres Vince
Arte: Andres Vince

Participação de investidores  deverá crescer
O curioso é que a participação efetivamente registrada dos fundos na Cais Mauá do Brasil S.A. em alguns momentos é menor do que a informada pelo Estado.
Por exemplo, em que pese o anúncio de inclusão da então nova acionista no grupo, em 11 de novembro de 2012, informar que a NSG detinha 39% das ações do empreendimento, em 10 de junho de 2013 o TCE registra que o Fundo RSB1 possui ainda apenas 3,5% das cotas.
O FIP só passou a ter uma participação importante no negócio em novembro de 2013, quando passa a constar nas atas de subscrição de capital como detentor de 35,5% das ações.
Complementavam a cota da NSG 3,5% do fundo RSB1, que estava sendo incorporado pelo FIP, conforme informa a Receita Federal.
Neste período, os aportes financeiros para complementação do capital social foram majoritariamente feitos através da GSS Holding.
Mas como explicar que, estando em dificuldades como admitia ao Jornal do Comércio o diretor Francisco Javier Aran – “a crise na Europa frustrou a garantia de aportes por potenciais investidores entre ingleses e espanhóis” – a empresa pudesse subscrever valores tão elevados?
Uma possibilidade é um financiamento indireto visando uma remuneração futura: ou seja, um adiantamento para compra de ações que ocorreria posteriormente.
O mais recente demonstrativo financeiro do FIP – de 30 de junho de 2015 – registra que nos 18 meses anteriores foram feitas nove operações de “adiantamento para futuro aumento de capital” que totalizam R$ 18,8 milhões.
Nas demonstrações contábeis do fundo disponíveis no site da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o investimento na Cais Mauá do Brasil S.A. aparece avaliado em R$ 58,6 milhões.
E há ainda o registro de uma opção de compra preferencial de ações na companhia no montante de R$ 61,8 milhões.
A intenção de ampliar a fatia na empresa fica explícita nas notas explicativas “Opções são instrumentos financeiros que se caracterizam como título patrimonial, exclusivamente para aumento da participação societária na Cais Mauá do Brasil S.A.”.
Ativos são insuficientes para bancar investimentos

Embora a Cais Mauá do Brasil S.A. seja composta por três sócios, os empreendedores sempre deixaram claro que o investimento para a construção do complexo turístico à beira do Guaíba seria feita com recursos captados pelos fundos.
À SPH, em junho de 2013, o consórcio “comunicou que um dos acionistas era o FIP, faria dois aportes de recursos na empresa: i) através da aquisição de participação societária da GSS, via mercado secundário, e ii) através de aportes financeiros na empresa Cais Mauá S.A, capitalizando-a”.
Ambas promessas se concretizaram. Entretanto, por maior que tenha sido o rendimento do fundo FIP, ele não seria, hoje, suficiente para alcançar o aporte mínimo exigido pelo contrato de arrendamento (R$ 350 milhões).
O mais recente relatório aos investidores do fundo FIP, datado de 29 de janeiro de 2016, revela um patrimônio líquido de R$ 161,7 milhões.
Ou seja, não chega a 50% do valor mínimo pactuado entre o Estado e o empreendedor.
A considerar o estudo da Faculdade de Administração da PUC-RS feito em 2015, que sugere que o investimento necessário para colocar em pé o empreendimento já estaria em R$ 675 milhões, o fundo ainda não subsidiaria nem 25% do necessário.
Usualmente, o valor empregado para calcular o valor do empreendimento gira entre R$ 400 e R$ 500 milhões – este último dado era a meta de captação do FIP quando foi lançado.
Aí reside a importância do debate travado entre o Governo do Estado e o Tribunal de Contas sobre a obrigatoriedade da apresentação de “carta de estruturação financeira” pelo consórcio.
Esse documento garantiria o investimento através de um contrato com instituição financeira com patrimônio líquido de R$ 400 milhões “ou arranjo equivalente”, segundo o relatório do TCE.
Trocando em miúdos, o órgão de controle quer que fique comprovada a disponibilidade do recurso a ser aplicado na obra.
O empreendedor nunca cumpriu o que está no contrato, porém entregou documentos “com a intenção de atender à cláusula”, uma delas taxada pelo TCE de “carta de intenções” porque fazia um exercício hipotético sobre o funcionamento do negócio.
Na segunda tentativa, o consórcio bateu na trave. Remeteu à comissão de fiscalização da SPH os regulamentos dos fundos, demonstrando que tinha uma estratégia de investimento com recursos próprios, captados no mercado.
Os auditores do TCE se convenceram que aquela era “uma estruturação financeira que pode assim ser denominada”, entretanto, “uma vez que os aportes dependem da captação de recursos no mercado por meio de fundos não há qualquer garantia de sucesso”.
Naquela oportunidade, o TCE já havia constatado que o volume de recursos captados pelos dois fundos, que na época coexistiam, era de R$ 180 milhões.
O Governo do Estado, entretanto, sustenta que a cláusula é facultativa porque determina a apresentação da carta “quando for firmado, pela arrendatária, contrato de financiamento”.
Assim, a garantia do investimento, na visão do Estado, é dada através dos cálculos de patrimônio líquido, solvência e liquidez de cada um dos participantes do consórcio, o que a CAGE atesta estarem de acordo com o exigido no edital mesmo após as mudanças acionárias.
Espanhóis estariam deixando o empreendimento
JÁ obteve documentos confidenciais que revelam vendas de ações | Tânia Meinerz
JÁ obteve documentos confidenciais que revelam vendas de ações | Tânia Meinerz

O Jornal JÁ teve acesso a um documento confidencial assinado em 20 de dezembro de 2013, no qual os sócios da GSS Holding passam o controle acionário a outra empresa. Ou seja, os espanhóis estariam deixando o negócio.
A negociação totaliza R$ 25,5 milhões, que seriam pagos em quatro parcelas entre dezembro de 2014 e dezembro de 2015. O contrato assinado não deixa dúvidas sobre o objeto do negócio:
“Motiva a presente promessa de compra e venda a existência, dentre os ativos da sociedade, as ações correspondentes a 51% do capital social da companhia denominada Cais Mauá do Brasil S.A., sociedade anônima com sede na cidade de Porto Alegre, Estado do Rio Grande do Sul, na Avenida Mauá nº 1.050/4º andar”.
O comprador é também uma “sociedade de propósito específico” chamada Cine Empreendimentos Imobiliários aberta em 2012 e sediada no bairro Bela Vista, em Porto Alegre.
Uma conta de cinco milhões a pagar
UFRGS chegou a fazer estudos arquitetônicos para se instalar no Cais | Reprodução
UFRGS chegou a fazer estudos arquitetônicos para se instalar no Cais | Reprodução

Não foi possível comprovar se a negociação se efetivou entre os espanhóis e a Cine Empreendimentos, porém em dezembro de 2014 o juiz Eduardo Kothe Werlang determinou o arresto das cotas societárias da GSS na Cais Mauá do Brasil S.A. em razão do contrato entre as partes.
É que a GSS precisava pagar um débito de R$ 5,8 milhões a um antigo parceiro da revitalização do cais do porto, coisa que não fez.
O credor dos espanhóis é um nome fundamental no empreendimento, que idealizou, estruturou e chegou a gerenciar até a chegada da NSG: Maurênio Stortti.
Stortti é um bem-sucedido empresário com atuação em distintos ramos – da petroquímica à hotelaria ou agribusiness.
O escritório do grupo que comanda ocupa mais de um andar de um prédio comercial no bairro Mont’ Serrat, onde exibe reportagens de jornais sobre seus negócios enquadradas e penduradas nas paredes.
A relação de Stortti com a revitalização do Cais Mauá data de 2007, quando ele recebeu uma ligação de Edemar Tutikian – então coordenador da Comissão Técnica de Avaliação e Seleção das Propostas de Manifestação de Interesse nomeada pela governadora à época Yeda Crusius (PSDB, 2007-2010).
Tutikian sabia da larga experiência do empresário na construção de bem-sucedidos planos de negócios para empreitadas ao estilo PPP – Parceria Público Privada – que era o formato que mais seduzia o Estado até aquele momento e decidiu convidá-lo para participar da concorrência.
Foi Stortti quem trouxe os espanhóis para o negócio, ainda nessa primeira fase do projeto, através de um amigo catalão, Luis Felipe Manchón Contreras.
Contreras que era sócio da GIS e administrador do World Trade Center Barcelona (WTCB) – um complexo empresarial de 130 mil m² à beira do Mediterrâneo, construído sobre um braço do revitalizado Port Vell, que avança mar adentro a partir da confluência de três conhecidíssimas avenidas da capital catalã: Avenida Paralell e La Rambla, o passeio mais famoso entre turistas e locais.
Stortti organizou o grupo que venceria a concorrência de modelagem do negócio com outros espanhóis indicados por Contreras – incluindo o arquiteto Fermín Vazquez, que entre outras obras em seu país foi um dos responsáveis pela ampliação do Museu Nacional Reina Sofía, onde está exposta Guernica, de Pablo Picasso.
Do plantel nacional de experts, Stortti trouxe a Camargo Corrêa, que até hoje é um dos principais parceiros da M.Stortti na área de infraestrutura e construção civil.
Foram os construtores brasileiros que sugeriram o nome do urbanista Jaime Lerner para fechar a nominata.
Mix previa bares e restaurantes conhecidos
Marcas tradicionais fecharam acordos para operar nos armazéns | Reprodução
Marcas tradicionais fecharam acordos para operar nos armazéns | Reprodução

Vencida a primeira etapa, parte do grupo concorreu à licitação, organizados sob o consórcio Cais Mauá do Brasil S.A.
Stortti não estava entre eles, porém, em junho de 2011, quando o litígio entre a Antaq e o Estado do Rio Grande do Sul ainda não estava solucionado, ele assinou um contrato de terceirização da gestão e vendas do Cais Mauá.
Esteve perto de fechar negócio para instalar a Faculdade de Administração da UFRGS na área próxima ao prédio do antigo frigorífico, e fez um completo plano de negócios em conjunto com a Ambev para ocupação de parte dos armazéns com operações de gastronomia conhecidas dos gaúchos.
Eram dadas como certas as participações do Bar do Beto, Churrascaria Barranco, Bazkaria, Z Café, Tirol e Peppo Cuccina, por exemplo.
Havia plantas baixas com as adaptações de cada espaço, projeções em 3D e contratos de confidencialidade com os interessados.
Stortti também amarrou um diversificado mix, que contava com revenda de automóveis (Sulbra), laboratórios para exames clínicos (Weinmann), rede de farmácias (Panvel) e atrações culturais como a Livraria Cultura e o Museu do Extremo Sul.
Ainda na área de entretenimento, fechou com os produtores do Planeta Atlântida a utilização do antigo frigorífico como um grande espaço para festas e eventos.
Só que esses negócios todos foram bloqueados – segundo alega Stortti em sua demanda judicial – com a entrada da NSG no grupo que, “ao que tudo indica, impôs que as atividades de gestão dos operadores, que são a alma do negócio, passassem então a ser pela ré (NSG) exclusivamente”, como explica uma das peças produzidas por seus advogados.
Não se sabe se os atuais sócios da Cais Mauá S.A. levaram adiante algum dos pré-contratos firmados por Stortti ou se substituíram os interessados por outras empresas de sua preferência.
A demanda judicial ainda está correndo e foi através dela que o juiz determinou o arresto de cotas da GSS no empreendimento.

Deixe uma resposta