Licitação teve um único concorrente

Estruturas portuárias tombadas convivem com praças, edifícios antigos e museus | Tânia Meinerz

Naira Hofmeister
O Cais Mauá é um lugar singular em Porto Alegre, cujas características atrairiam facilmente investidores. São 3.240 metros de extensão à beira do Guaíba, uma paisagem deslumbrante com o famoso pôr-do-sol da cidade e em pleno Centro Histórico, onde ainda sobrevivem casarões antigos, cinemas, os melhores teatros e museus.
Seu perfil visto do rio é um emblema da cidade, com a chaminé da Usina do Gasômetro e as torres da Igreja das Dores a se destacarem em meio à repetição geométrica dos telhados dos armazéns, tombados pelo patrimônio histórico.
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Tem mais: para o Centro Histórico de Porto Alegre convergem diariamente 840 linhas de ônibus, 52 de lotação (é até um exagero, segundo a própria Prefeitura que estuda meios de reduzir esse fluxo), e ainda o Trensurb que percorre seis municípios em viagens regulares em menos de uma hora.
Há ciclovias para cinco bairros vizinhos e novos viadutos feitos para a Copa do Mundo.
Para a construção civil é um prato cheio porque a lei aprovada na Câmara Municipal em 2009 permite edifícios com 100 metros, o dobro da altura máxima em vigor na cidade – e justo em um bairro com escassez de terrenos.
A expectativa do poder público antes do lançamento do edital era que a revitalização seria capaz de fazer Porto Alegre abocanhar uma quarta parte do mercado de turismo de negócios nacional.
Mas apesar dos atrativos, apenas um concorrente apareceu no dia marcado para a entrega de envelopes da licitação. Estando devidamente habilitado, venceu o certame sem disputá-lo com mais ninguém.
Cláusulas descumpridas afastaram interessados
Houve pelo menos um segundo grupo de arquitetos interessado em participar do certame, radicado em Miami, nos Estados Unidos, mas comandado por uma engenheira civil que viveu durante anos na Capital, Adriana Schönhofen Garcia.
A possibilidade de negócio empolgou um dos nomes mais reconhecidos da arquitetura norte-americana, Bernard Zyscovisch, que se aliou à brasileira e conquistou ainda o apoio de empresas da construção civil e de gerenciamento de imóveis. Entretanto, o grupo desistiu na última hora porque não conseguiria cumprir todas as exigências do contrato.
Algumas dessas regras que assustaram os norte-americanos foram postas sob suspeita também pelo ex-prefeito de Porto Alegre e então deputado estadual Raul Pont (PT), que achou que a licitação estaria direcionada e protocolou um pedido de investigação no Ministério Público de Contas (MPC).
Os dois fatos se encontram em 2013, quando o Tribunal de Contas do Estado (TCE) concluiu o relatório de uma inspeção especial. Era uma consequência do pedido de Raul Pont que, se não havia tido sucesso na interrupção do processo licitatório, foi decisivo para que os órgãos de controle determinassem o acompanhamento constante do negócio.
No relatório, os auditores do TCE apontavam irregularidades e o não cumprimento de cláusulas importantes do acordo – algumas, inclusive, que pesaram na decisão da equipe de Adriana de desistir da competição, caso da necessidade de comprovar liquidez de R$ 400 milhões e a apresentação do projeto executivo da obra em até 120 dias.
Como o prazo para a entrega de tais documentos já havia se esgotado, a avaliação do TCE era de que o Estado poderia romper o contrato unilateralmente. A interpretação se secundava em pareceres semelhantes provenientes da Contadoria e Auditoria Geral do Estado (Cage) e da comissão de fiscalização da própria Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH).
O governo da época, comandado por Tarso Genro (PT, 2011-2014), não acatou a determinação, decisão que foi reiterada recentemente pela gestão de José Ivo Sartori (PMDB), após um exame do contrato e das denúncias que durou nove meses.
“Encontramos muitas falhas de comunicação e interpretações equivocadas, mas revisando os procedimentos e procurando respostas técnicas, concluímos que não há irregularidades”, pondera o diretor-geral da Secretaria dos Transportes, Vanderlan Frank Carvalho, que coordenou o Grupo de Trabalho responsável pela avaliação.
A questão, entretanto, ainda não está encerrada e segue tramitando no TCE, que, em 2015, acolheu sugestão do MPC e determinou à SPH a abertura de um processo administrativo para avaliar a possibilidade de romper o contrato com a empresa.
Vencedores participaram de desenvolvimento do edital

Desde Yeda, revitalização já atravessou outros três governos | Ivan Adrade/Piratini
Desde Yeda, tentativa de revitalização já atravessou três governos | Ivan Adrade/Piratini

Embora em um primeiro momento o TCE tenha concluído que não havia razões para suspeitar do direcionamento do edital, já que as exigências técnicas procuravam proteger o Estado de propostas aventureiras, o fato é que o vencedor da licitação – e único concorrente – foi um grupo integrado por empresas que haviam participado também dos estudos que criaram as diretrizes para o concurso, iniciados em 2007.
“Foi no mínimo injusto”, condena a engenheira Adriana.
“Os vencedores não apenas tiveram mais tempo para detalhar o projeto executivo, como puderam sair em busca de parceiros com toda essa antecedência”, aponta.
Quando a governadora Yeda Crusius (PSDB, 2007-2010) convocou a iniciativa privada a entregar “Propostas de Manifestação de Interesse” pela obra de revitalização do Cais Mauá, em julho de 2007, três equipes entraram na disputa.
Um ano depois, o governo anunciava os integrantes do grupo escolhido para desenvolver estudos que subsidiariam o edital de licitação, entre os quais estavam duas firmas espanholas: Gestio Serveis Trade Center (GIS) e Strategy Planning Implementation Manegenent (Spim), que depois apareceriam na composição do consórcio Cais Mauá do Brasil S.A em 2010. Também já é dessa época a participação dos arquitetos Jaime Lerner e Fermín Vázquez, que seguiram trabalhando para o grupo após a realização da licitação, em 2010.
Para os integrantes do coletivo Cais Mauá de Todos, que se contrapõe ao modelo de revitalização proposto (baseado na exploração comercial e imobiliária da área), a participação das mesmas empresas que formularam as bases do edital na própria licitação é uma irregularidade.
De fato, a Lei de Licitações veda a participação do “autor do projeto, básico ou executivo, pessoa física ou jurídica” na licitação, porém, em 2007 o Governo do Estado parecia contar com essa possibilidade: “As despesas realizadas pelo autor ou responsável pela proposta serão ressarcidas pelo vencedor de posterior licitação, desde que os estudos sejam efetivamente nela utilizados e o autor ou responsável não participe ou, caso participe, não se sagre vencedor do certame”, determinava o decreto que criou a Comissão Técnica de Avaliação do Projeto de Revitalização do Cais Mauá.
Mas contra o prognóstico da engenheira Adriana, e apesar da cobrança reiterada da SPH, Tribunal de Contas e Cage, até hoje o empreendedor não apresentou o detalhamento da obra conforme exigido no edital. Sequer a Secretaria de Urbanismo de Porto Alegre conhece com profundidade o que está previsto e cobra, por exemplo, um “3D” do shopping, para avaliar sua estética e o impacto na paisagem do entorno.
O Governo do Estado, por sua vez, não culpa o empreendedor pela ausência das plantas detalhadas porque entende que houve uma “confusão” na hora de redigir o texto. “Possivelmente onde deveriam ter escrito projetos básicos, escreveram projetos executivos”, alega o diretor-geral da Secretaria dos Transportes, Vanderlan Frank Carvalho.
Uma hipótese para tal equívoco é a utilização dos textos que normatizaram o concurso arquitetônico dos anos 90 como base para o edital mais recente, porque há 20 anos se exigiu dos vencedores a entrega do projeto executivo em até 120 dias do contrato firmado.
Uma vírgula aparece no contrato
Assim como no caso da apresentação dos projetos executivos, o Governo do Estado tem uma visão diferente da expressa pelo Tribunal de Contas do Estado sobre as garantias do investimento de R$ 400 milhões.
Para os órgãos de controle, o consórcio Cais Mauá do Brasil S.A descumpre o acordo ao não apresentar documentos que comprovem a estruturação financeira do grupo e a capacidade de bancar a obra de revitalização.
Já o GT da Secretaria de Transportes entende que este é mais um caso de problema de redação e confere à cláusula um caráter facultativo, entendimento oposto ao do TCE.
O texto no contrato diz o seguinte: “Quando pactuado, pela arrendatária, financiamento para construção, implantação, manutenção, conservação, melhoria, gestão, exploração e operação do Complexo Cais Mauá, a arrendatária deverá apresentar ao arrendante, no prazo máximo de até 180 dias após a celebração do contrato de arrendamento, os contratos firmados com instituições financeiras com patrimônio líquido mínimo de R$ 400 milhões”.
É esse “quando pactuado, pela arrendatária” que dá margem, segundo Carvalho, a entender que o financiamento via instituição financeira é uma opção dada ao empreendedor, não uma obrigação. “E eles pretendem fazer a obra com recursos próprios”, completa o diretor da pasta de Transportes.
O secretário de Urbanismo de Porto Alegre, Valter Nagelstein, que participou da idealização da licitação quando era vereador, lembra que a cláusula originalmente formulada era diferente: “a pré-condição era que o vencedor caucionasse em uma conta R$ 500 milhões. Essa era a garantia de que quem vencesse teria bala na agulha para tocar o projeto”, revela.
A flexibilização da garantia não parece ter sido suficiente para os formuladores do contrato, pois a redação da norma foi sutilmente modificada nesse documento. O original, publicado no edital, dizia assim: “Quando pactuado financiamento para construção, implantação, manutenção, conservação, melhoria, gestão, exploração e operação do Complexo Cais Mauá, a arrendatária deverá apresentar ao arrendante, no prazo máximo de até 180 dias após a celebração do contrato de arrendamento, os contratos firmados com instituições financeiras com patrimônio líquido mínimo de R$ 400 milhões”.
“Alguém pousou uma vírgula nesse edital” e alterou a condição das garantias, sugere Nagelstein.
Secretário enfrenta pressões para agilizar licenças
Brinde entre Tutikian (e) e Nagelstein (c) celebrou aprovação índices | CMPA
Brinde entre Tutikian (e) e Nagelstein (c) celebrou aprovação dos índices construtivos | CMPA

Nagelstein é um antigo entusiasta da revitalização do Cais Mauá. “Na gestão de Germano Rigotto (PMDB 2003-2006), eu era diretor da antiga Caixa RS (atual Badesul), junto com o (Edemar) Tutikian, a quem o governador encarregou de fazer um inventário de todas as questões do porto”, recorda.
Defendeu o projeto durante seu mandato como vereador e, em 2009, participou da aprovação da lei que alteraria os índices construtivos do terreno, permitindo espigões de 100 metros de altura e shopping.
Uma fotografia registra o momento em que prepara um brinde com espumante para celebrar a aprovação da lei junto com Tutikian, que hoje é seu colega de secretariado, comandando o Gabinete de Desenvolvimento e Assuntos Especiais (Gades).
A relação dos dois, entretanto, azedou depois que Nagelstein fez cobranças sobre o teor do projeto, pedindo alterações ou explicações que há tempos são pauta do movimento comunitário que critica a revitalização.
“A revitalização do Cais Mauá tem que servir ao Centro Histórico como um todo. Não tem sentido fazermos uma obra deste porte se as áreas da rodoviária, da Voluntários da Pátria, continuarem degradadas”, alega.
É que a Secretaria do Urbanismo (Smurb) está sob forte pressão para entregar o licenciamento urbanístico do empreendimento o quanto antes. A tramitação das licenças já soma três anos, mas até agora só foi vencida a etapa ambiental. “Ninguém quer mais do que eu que esse projeto saia. Estamos esperando há seis anos e agora temos que fazer a toque de caixa, dispensando obrigações que são de lei e sobre as quais depois terei que responder?”, compara, para logo concluir: “Em última análise, o monopólio da licença é nosso”.
Tensionamento expõe distorções na tramitação
Por trás das críticas de Nagelstein se entrevê uma inusitada situação segundo a qual, sendo a Secretaria do Urbanismo responsável pelo planejamento da cidade (este, aliás, era o nome da pasta até poucos anos atrás), está relegada a segundo plano do debate.
Um exemplo é a definição de que a contrapartida viária à revitalização será o prolongamento da rua Ramiro Barcelos entre a Voluntários da Pátria e o Cais Mauá. “Não há no projeto qualquer conexão com a área da rodoviária, com o Quarto Distrito. E aí vem a EPTC e pede uma obra lá na Ramiro?”, ironiza.
Nagelstein se ressente do mero papel coadjuvante que foi designado para sua pasta, que sequer consegue se reunir com os arquitetos do empreendimento para debater pontos como este. “Estamos forçando para que a interlocução seja direta. Não precisamos da mediação de outra secretaria”, defende.
É uma referência a Edemar Tutikian, o homem forte do projeto que conduz o debate sobre a revitalização desde os anos 2000. Primeiro no Estado, como diretor da Caixa RS no governo Germano Rigotto ou coordenador da Comissão de Revitalização na gestão Yeda. Com a eleição de Tarso Genro, passou a coordenar o trabalho através da prefeitura.
Toda a articulação do projeto passa por Tutikian que, mesmo trabalhando na esfera municipal não se furta a responder questionamentos – inclusive oficiais – feitos à órgãos do Estado, por exemplo.
Distorção semelhante foi protagonizada pela Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH) e a Casa Civil durante o governo Tarso Genro.
O Tribunal de Contas do Estado (TCE) documentou que mesmo sendo a primeira a responsável oficialmente pela fiscalização do contrato e interlocução com o empreendedor, houve uma determinação de que a Casa Civil se ocupasse do tema, o que prejudicou “o andamento da execução do contrato”, nas palavras dos auditores.
“Verificaram-se deficiências na fiscalização decorrentes da falta de autonomia da autarquia (SPH) para deliberar sobre ações inerentes à função”, revela o relatório do TCE.
Eles enumeram problemas, desde o fato de o expediente administrativo sobre o projeto ficar armazenado no Piratini até a negativa do governo em atender a recomendação de multar o empreendedor pelo atraso na entrega de documentos.
“Contrariando as informações, o governador do Estado, Tarso Genro, juntamente com o diretor superintendente da SPH e do diretor-presidente da PCMB, anunciou a Emissão de Ordem de Início das Obras da Fase I, em ato público”, lamentam os auditores no texto.
Lei do silêncio impera entre envolvidos
O discurso da gestão atual é que as coisas mudaram e que a Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH) passou a contar com o assessoramento do Grupo de Trabalho organizado no âmbito da Secretaria dos Transportes. “Os grandes temas têm sido tratados através do GT, que orienta; porém quem realmente toma as decisões é a SPH”, garante o diretor geral da pasta, Vanderlan Frank Carvalho.
Apesar disso, há uma norma “vinda de cima” segundo a assessoria de imprensa da SPH, para que nenhum funcionário conceda entrevistas ou repasse informações sobre o assunto. “A gente estabeleceu (que fosse assim) para não haver muitos interlocutores, para dar uma unidade às informações, para falar a mesma linguagem”, reconhece Carvalho.
Na Prefeitura, o secretário Edemar Tutikian, que carrega toda a memória do processo de revitalização do Cais Mauá nos últimos 15 anos, também se recusa a falar sob a justificativa de “aguardar os desdobramentos da audiência pública do dia 16/03 antes de dar entrevista”.
Na Agência Nacional dos Transportes Terrestres (Antaq), do Governo Federal, foi preciso aguardar 20 dias para receber respostas a perguntas enviadas por e-mail, porque a diretoria não autorizou o chefe da unidade regional da agência, Fábio Cadore Flores, a falar pessoalmente com a reportagem.
O consórcio Cais Mauá do Brasil é mais radical e sequer recebeu os questionamentos da reportagem.
Parecer sobre índices é mantido em sigilo
Informação consta no relatório de esclarecimentos sobre audiência pública de 2015 | Reprodução
Informação consta no relatório de esclarecimentos sobre audiência pública de 2015 | Reprodução

O acesso a documentos também é difícil. Um parecer da Procuradoria Geral do Município (PGM), mencionado em um documento que compila esclarecimentos aos cidadãos presentes na audiência pública de setembro de 2015 é mantido sob sigilo pela Prefeitura.
Desde janeiro o JÁ solicitou a três secretarias o envio do texto que validaria os índices construtivos determinados pela LC 638/2010, sem sucesso.
Ocorre que essa lei assegurava os índices construtivos “aos investidores que licenciassem e iniciassem suas obras até 31 de dezembro de 2012” – o que não ocorreu efetivamente. Os agentes da prefeitura argumentam que como o atraso não se deve a falhas do empreendedor, ele não pode ser penalizado com a perda dos índices.
A resposta que consta dos esclarecimentos à audiência pública, entretanto, não é objetiva. Vem assinada pelo Gabinete de Desenvolvimento e Assuntos Especiais e informa que “segundo um parecer da PGM, emitido em 27/07/2013, não há necessidade de revogação do artigo 17 por meio de Lei Complementar, pois o mesmo não prejudica a futura aplicação na medida em que assegura aos empreendedores a possibilidade disposta expressamente em lei”.
Na Procuradoria, a informação é que o documento foi assinado por um servidor do jurídico do próprio Gades e não da PGM, que, portanto, não poderia disponibilizá-lo. Já a pasta comandada por Tutikian passou a bola para a Secretaria de Comunicação Social depois de um mês analisando o pedido do JÁ, que segue aguardando um retorno.

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