Sérgio da Costa Franco: “Porto Alegre não se rendeu”

Sergio da Costa Franco | Foto: Cleber Dioni

Elmar Bones

Trecho de A Cidade Sitiada, livro de Sérgio da Costa Franco sobre o cerco a Porto Alegre, lançado em setembro de 2000
Trecho de A Cidade Sitiada, livro de Sérgio da Costa Franco sobre o cerco a Porto Alegre, lançado em setembro de 2000

Essa história ficou encoberta, até que o historiador Sérgio da Costa Franco encontrou nos arquivos do Instituto Histórico um calhamaço de mais de 200 páginas manuscritas, que lhe tomou seis meses de trabalho. “Foi uma trabalheira”, diz ele, lembrando o paciente esforço que teve de fazer para decifrar os garranchos de um certo Queirós, autor de um diário inédito sobre o período em que Porto Alegre esteve sitiada pelos farroupilhas.

A descoberta motivou‑o a enfrentar um desafio do qual ele tinha desistido por “fastio” da Revolução Farroupilha. Partindo das informações do diário, ele retomou suas pesquisas para contar o que foram os 1.231 dias em que a cidade viveu sob a ameaça de escassez e abaixo de bombardeios.

 

Franco recebeu a reportagem do JÁ para esta entrevista exclusiva no dia 13 de julho de 2016.

JÁ – O senhor voltou a estudar a Revolução Farroupilha …

Eu me aproximei novamente do assunto por causa da história de Porto Alegre. O sítio farroupilha à cidade foi um episódio muito importante, influiu no seu desenvolvimento, causou uma paralisia dos negócios durante quatro anos, então sob este aspecto é que interessou. Vi que tinha muita coisa ainda inexplorada… e o assunto tinha quase virado um tabu.

Como foi o cerco?

O sítio de Porto Alegre nunca mereceu maior atenção dos historiadores regionais. Este fato é, de certo modo, compreensível. Toda a historiografia do ciclo farroupilha é marcada pela devoção reverencial aos rebeldes, senão por sua apaixonada mitificação. Dessa fatal parcialidade provavelmente nunca se livrará a bibliografia histórica rio-grandense, por mais revisões que se faça.

O sítio foi um fracasso….

Foi um fracasso militar dos farroupilhas. Depois de perderem a cidade na reação de 15 de junho de 1836, os rebeldes nunca mais conseguiram retomá-la. Mesmo com forte superioridade numérica, submetendo os moradores da capital à fome e a restrições diversas, jamais conseguiram dominar a sede provincial. Por isso, a cidade ganhou o título honorífico de “leal e valorosa”, outorgado pelo governo Imperial em 1841.

A omissão do cerco então foi deliberada?

Não soaria simpático aos porto-alegrenses o relato dos reiterados canhonaços e bombardeios com que as forças de Bento Gonçalves, Souza Netto, Bento Manoel e David Canabarro alvejaram repetidamente a cidade, intranqüilizando e atemorizando sua população.

Que efeitos teve sobre a cidade?

Freou a expansão da cidade durante vários anos. Equipamentos e serviços precisaram conter-se dentro do estreito perímetro das fortificações e trincheiras, e a população rural da periferia viveu submetida a repetidas mudanças de senhores sob a angústia das requisições forçadas, das violências pessoais e dos saques. A Câmara Municipal tinha vários portugueses e foi engraçado. Eles deram no pé, porque os farroupilhas tomaram a cidade e esses vereadores comerciantes portugueses se afastaram com as alegações mais estranhas. Por exemplo, o Lopo Gonçalves, fundador da Associação Comercial de Porto Alegre, figura importante da cidade, pediu uma licença por três meses para ir aos banhos de mar…. e se mandou em inícios de outubro!

Por que eles mantiveram o cerco se era inútil?

Taticamente, a manutenção do sítio pelos rebeldes teve apenas a eficácia de manter numerosas forças legalistas retidas na capital, privando-as de tentar o controle militar no interior da província. O sítio de Porto Alegre não ilustra os feitos guerreiros dos Bentos e dos Netos, nem os irmana à memória sentimental da capital gaúcha. Incoerente, a cidade ergueu monumentos e votou homenagens aos sitiadores que a maltrataram, e esqueceu os soldados, marinheiros e paisanos voluntários que garantiram sua integridade em quatro anos de lutas.

Esse é o tema de seu livro?

Sim. Ele foi também motivado pela recente descoberta de um esquecido diário manuscrito, no qual se narram, passo a passo, as peripécias do sítio entre 1837 e 1838. Tal documento, inédito, somado a outros já divulgados há muito tempo, patenteia o quanto foi dramático para a população citadina o cerco que lhe foi imposto, com algumas interrupções, desde junho de 1836 a dezembro de 1840.

Onde estava esse diário?

Eu o encontrei no Instituto Histórico, até copiei à máquina, me deu um trabalho enorme, porque era um manuscrito de difícil leitura. Interessante que a primeira parte desse manuscrito, o Moacyr Flores tinha encontrado e publicou num livrinho, uns anos atrás. Mas a parte que ele encontrou era pequena. O que eu encontrei é a continuação. Me dá a impressão de que o autor tinha um objetivo jornalístico, ele devia remeter para o Rio de Janeiro, provavelmente porque, ao fim de alguns capítulos, ele fala assim: “Seguiu pela sumaca tal”.

Quem era o autor do diário?

Era um português que se chamava Barreto Queirós. Ele só assina Queirós. O Moacyr dá como certo esse nome, e na investigação que fez diz que o sujeito era secretário do Cônsul da Sardenha, aqui. O que se identifica nele é que era português e hiper-reacionário, talvez partidário de Dom Miguel, porque é contra as Constituições, antiliberal. Mas ele registra o dia-a-dia: hoje, chegou o cara vendendo galinha, charque, então é interessante do ponto de vista de um relato do cotidiano.

2009-franco2Como era esse ambiente?

Porto Alegre ficou dividida. Os legalistas reconquistaram a cidade, mas havia o grupo dos partidários do Araújo Ribeiro, tio‑bisavô do deputado Paulo Odone, de tendência liberal, inclinado à negociação, e outro grupo radical, dos portugueses, que era contrário. Entre eles se digladiavam violentamente pela imprensa, e, no clima da cidade sitiada, as brigas eram ferozes. O português do diário era dos mais reacionários e suas observações são constantes. Eu tinha pensado em publicar, mas a copidescagem seria tão grande que não valia a pena. Depois, ele enchia muita linguiça, era linguagem de jornalista mesmo.

Com que freqüência ele escrevia?

Todos os dias. Mandava quando havia barco para o Rio, mas escrevia diariamente, textos enormes, até demais, descrevia o dia‑a‑dia e acrescentava divagações filosóficas. Eu entreguei a cópia ao Instituto Histórico, deu mais de 200 páginas datilografadas. O original era uma maçaroca no meio de outros documentos. Há outro diário, que foi publicado em 1885 ou 86, de um anônimo. Na verdade, era um advogado, Fagundes, que foi provedor da Santa Casa e deputado provincial. Ele escreveu sob o anonimato, mas era um diário dos anos 39 e 40, do final do sítio. Então, com o diário do Queirós, que se refere a 37 e 38, mais os documentos militares, a troca de correspondência e as atas da Câmara Municipal sobre problemas de desabastecimento e especulação de preços, com esse conjunto consegui fazer o livro.

Ficou esclarecido o local das fortificações?

As fortificações, sabe-se que eram só trincheiras cavadas, não havia construções de alvenaria, nada, salvo alguns baluartes que fizeram para botar canhões. Também havia os chamados “pontos” artilhados, que eram 16, um pouco mais fortificados, cada um tinha uns dois canhões.

O sítio chegou a perturbar a vida da cidade?

Ah, sim! A comunicação toda era via fluvial. O que garantia o abastecimento eram os lanchões que iam para São Leopoldo, isso quando os farrapos não estavam dominando aquela região, daí não passava nada. No mais, eram operações de guerrilha, na direção do Guaíba.

Como era a cidade dessa época?

Em Porto Alegre, viviam funcionários e comerciantes, principalmente. Deviam ser uns 10 mil na época da guerrilha, mas não era tão pouca gente. E dois mil homens foram defender as trincheiras, paisanos que não hesitaram…

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Pintura a óleo da primitiva Santa Casa de Porto Alegre, de autor desconhecido

Sobre as causas da Revolução, qual é a sua conclusão?

Bom, o primeiro manifesto dos farroupilhas não fala absolutamente em qualquer problema econômico. Não há nada. Só fala no problema político, nos presidentes estranhos à província, só isso. Depois, quando houve a proclamação da Independência, no manifesto de 1838, três anos depois, vem a justificativa econômica, já para legitimar a República. Aquilo sempre me chamou a atenção, a argumentação a posteriori. Eles queriam mesmo era o poder. Logo após a Guerra da Cisplatina, Bento Gonçalves, Bento Manoel e outros haviam sido generais do Exército brasileiro, tinham sido mal-sucedidos… Perderam a guerra, perderam o Uruguai, para eles foi um revés enorme. Eles eram gente da fronteira, acostumados a negociar com a Cisplatina, a ir e vir. Aquilo foi uma forte causa de inconformidade. É uma das causas mais quentes da Revolução Farroupilha, a derrota da Cisplatina.

Foi deflagrada por razões políticas, então?

Sim. A meu ver, no início foram razões estritamente políticas. Depois, então, surge aquela fundamentação toda para justificar a declaração da independência. Aliás, quem faz aquilo, o manifesto todo é do Domingos José de Almeida, que de gaúcho não tinha nada, era mineiro. A Revolução nunca contou com o apoio de Porto Alegre, nem de Rio Grande ou de São José do Norte, as praças do litoral ligadas ao comércio. E o comércio não tinha interesse nenhum naquilo. Os farrapos estavam em completa impopularidade, tanto que meia dúzia de oficiais que estavam presos se organizaram e reconquistaram a cidade. Enfrentaram o cerco dos farrapos e os dominaram, com apenas 200 homens contra mais de 500. Aguentaram porque tinham o apoio popular. E, no final, vieram os populares para as trincheiras. Nisso também entrava o medo dos escravos, o exército dos farroupilhas era puro negro. No diário desse Queirós, ele só fala nisso “os negrinhos voltaram aí, olha a turma do São Benedito”, era tudo negro. Quando eles davam cifras de prisões, elas eram assim: 20 negros e cinco brancos. Os soldados e os lanceiros eram os escravos dos legalistas, que haviam sido recrutados com promessas de liberdade. Claro que a população da cidade tinha medo disso: imagine um exército de ex-escravos.

O que fica, hoje, dessa Revolução?

Agora é um negócio que se incorporou ao imaginário, uma porção de mitos se acumulou ao longo do tempo. A Revolução Farroupilha, na verdade, foi uma divisão dentro da sociedade. A disputa pelo poder, não era mais do que isso. Eu tenho estudado muito a história de Jaguarão, que é a minha terra, e descubro coisas engraçadas… O chefe farroupilha e o chefe legalista da cidade eram vizinhos, moravam no mesmo quarteirão. Os pátios das casas se encontravam. Eles até morreram na mesma época e pude ver o inventário dos dois. Era semelhante, os dois cheios de escravos.

A Câmara Municipal de Jaguarão foi a primeira a apoiar a República, logo que proclamada. Tinha um vereador que era irmão de Bento Gonçalves, e outros parentes, então a Câmara solidarizou-se com a República Rio-grandense. Quando de novo se reúnem, em 1845, a mesma Câmara que tinha prestado solidariedade ao Bento Gonçalves e à República Rio-grandense saúda o Duque de Caxias e agradece a pacificação, com um caloroso elogio à Caxias. Em seguida, realiza-se a eleição e vê-se o seguinte: os que foram declaradamente farrapos tiveram menos votos e os eleitos são gente da nova geração, que estavam aparecendo naquele momento.

Sobre o suposto acordo do Canabarro com Caxias, qual a sua versão? A carta forjada seria uma manobra de contra-informação?

Não sei. Mas que os escravos vêm a ser uma pedra no sapato dos Farrapos, isto sim. Eram. Eles tinham a promessa de liberdade e o acordo não saía por isso. Quer dizer, não é fora de propósito que os Canabarro resolvessem sacrificar os negrinhos…

Iam buscar os escravos dos adversários para lutar nas suas fileiras em troca de liberdade, mas mantinham os seus.

Chamavam os escravos dos adversários, sim. A Constituição Farroupilha não aboliu a escravatura, mesmo vindo depois da uruguaia, que aboliu.

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