IVANIR JOSÉ BORTOT / BC tem sido negligente no combate à volatilidade cambial

O Banco Central (BC) tem sido no mínimo negligente em sua política cambial. A volatilidade cambial com variações diárias de 1% a 2% para cima ou para baixo tem provocando muita dor de cabeça aos exportadores e importadores. Se as pessoas errarem de mão nestas operações poderão arcar com um prejuízo equivalente à inflação de um ano, trazendo consequências para rentabilidade do seu negócio.

Sem falar que o câmbio tem papel fundamental na formação de todos os preços da economia e na relação de trocas entre o Brasil e o exterior. De fevereiro a junho de 2020 o dólar passou de R$ 4,20 para R$ 5,30. Um remédio, um insumo agrícola, matérias-primas e industriais estão cada vez mais impactados pela valorização do dólar. É verdade que quem está ganhando neste momento é o exportador, mas esta valorização do dólar terá reflexo sobe o comportamento da inflação.

O presidente do BC, Roberto Campos Neto, disse há poucos dias que ainda não há uma causa clara para as oscilações e desvalorização do real. Sem um diagnóstico preciso fica difícil a autoridade atuar no mercado para acabar com essa volatilidade.

Mesmo sem saber os fundamentos, a autoridade monetária deveria seguir o mercado que atua na lógica da oferta e da procura. É simples: se está faltando dólar no mercado e o preço está subindo, a área de câmbio do BC deveria entrar vendendo papel moeda ou fazendo operações com seus papéis cambiais. Se tiver caindo muito, entra comprado.

O nível de reservas internacionais atual do Brasil, de US$ 350 bilhões, divisas a custos elevados para fazer frente a crises econômicas como esta da covid-19, deveria ser usado para conter as especulações do mercado. São recursos que deveriam ser usados para honrar compromissos externos e evitar que este tipo de especulação cambial que vem ocorrendo seja mais um fator de insegurança aos agentes econômicos, empresários e consumidores.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a dizer que a venda de US$ 70 bilhões poderia ser realizada para abater parte da dívida pública federal, sem que isso deixasse o Brasil vulnerável em suas reservas. O preço de hoje, a venda destes dólares, que foram comprados a um preço muito mais baixo pelo bancos centrais, sem falar no lucro da operação, daria para o Tesouro Nacional abater pelo menos RS$ 35 bilhões.

Estudos internos feitos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em 2019 indicavam que o Brasil poderia vender até U$ 150 bilhões sem comprometer a capacidade do País honrar seus compromissos externos. A regra é de que um País precisa ter reservas internacionais equivalente a 12 meses de suas importações.

Tudo indica que a autoridade monetária tem evitado fazer operações mais fortes no mercado de câmbio, não por desconhecer os fatores que têm provocado depreciação do real, mas sim pelo temor dos reflexos na sua política monetária. É que houve um encurtamento nos prazos  da dívida pública com a crise do Covid-19 e hoje os volume de rolagem dos papéis do Tesouro nacional equivalem a 1,7 vezes apenas ao saldo das reservas internacionais do País.

Ivanir José Bortot é jornalista.

MIRIAM GUSMÃO / O Jornalismo entre o cultivo da desinformação e o interesse público

Um alento: ficamos sabendo, nos últimos dias, que estudantes de jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco realizam um trabalho social, na periferia de Recife, colaborando com as comunidades que inventam meios próprios para combater o novo coronavírus. O projeto que desenvolvem chama-se “Manda no zap” e consiste na produção de breves mensagens para celular, em que traduzem, em linguagem clara e simples, as orientações científicas para evitar a propagação do vírus e enfrentar as infecções. Algumas pessoas atuam como contatos, nas comunidades, recebendo as mensagens e se encarregando do compartilhamento em grupos de whatsapp. É uma iniciativa aparentemente pontual, que dá resposta a uma circunstância específica. No entanto, além de atender a uma necessidade coletiva momentânea e localizada – o que, por si só, é importante – a produção da informação, com as devidas fontes e a serviço de todos, reveste-se de um simbolismo maior, no momento em que tantos jornalistas dedicam-se à desinformação. A atitude desses futuros profissionais da comunicação nos traz esperança de dignidade, em meio à canalhice vigente. Podemos colocar em contraste atitudes como essa e a ação experiente de jornalistas sem qualquer compromisso social, que adquirem prestígio servindo a interesses inconfessáveis em jornais, portais e emissoras de TV e rádio. O auge da manipulação tem ocorrido nos espaços jornalísticos supostamente dedicados à análise das notícias, com pretensas interpretações especializadas. É nesse palavreado enganoso que fatos são omitidos ou distorcidos, declarações são descontextualizadas e ocorrem juízos de valor com ausência do necessário posicionamento equidistante em relação aos envolvidos. Sem desconsiderar que há exceções respeitáveis, podemos dizer que a desinformação vem sendo cultivada por dentro dos veículos que teriam a função social de informar. Um exemplo gritante desse fenômeno é o programa  Os pingos nos is, da Rádio Jovem Pan de São Paulo. Um desalento.

Desde o nome, o programa engana o ouvinte desavisado. A conhecida expressão “colocar os pingos nos Is” (que, em linguagem mais rigorosa, seria colocar os pontos nos ii) dá ideia de clarear informações; resolver questões duvidosas, obscuras ou incompletas; esclarecer. E o formato, com um âncora (apresentador) e três comentaristas, presumidamente de alta competência, tenta indicar que o ouvinte terá, sem qualquer esforço, as informações dissecadas, analisadas, com objetividade e credibilidade, doa a quem doer. Não é o que ocorre ao longo dos seis anos de existência desse arremedo de jornalismo que, na verdade, mesmo com as trocas de elenco, sempre esteve a serviço de ideologias, fazendo verdadeiras campanhas, dissimuladas ou não. No momento, esses agentes da manipulação da informação (cujos nomes não merecem referência)  estão empenhados na defesa do governo Bolsonaro e da presença de militares em áreas técnicas do governo, bem como na execração pública de quem levantar algum questionamento sobre a dramática situação do país na pandemia. O alvo dos ataques, tradicionalmente no âmbito dos políticos de esquerda e dos movimentos sociais, agora abrange também o Supremo Tribunal Federal, bem ao gosto do presidente da República e de sua família.

Ainda no dia 22 último, o programa voltava a fomentar, sempre partindo de informação distorcida, a pretendida crise entre o ministro Gilmar Mendes e as Forças Armadas. Com arrogância e falso moralismo, os comentaristas voltaram a adjetivar – chamando de leviana – a suposta afirmação do ministro, que teria ofendido a instituição militar, associando-a à prática de um genocídio. Nem mesmo a transcrição, na íntegra, por outros veículos de comunicação, das afirmações de Gilmar Mendes serviu para colocar os verdadeiros pontos nos is. As referidas afirmações ocorreram no dia 11 de julho, quando da participação do ministro e de especialistas em Saúde Pública numa live da revista Istoé, mas seu conhecimento integral em nada mudou a campanha manipuladora. Igualmente não motivou ponderação a nota que o ministro publicou no dia 14 de julho, contextualizando suas afirmações e afastando a hipótese de pretender ofender as Forças Armadas. Os comentaristas preferiram continuar sua pregação, usando como dado novo, sem alterar a linha de abordagem, um vídeo em que o comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, falava do empenho da instituição no combate à pandemia. Não chamou a atenção desses “dedicados” analistas uma frase importante desse vídeo: o laboratório químico e farmacêutico do Exército aumentou significativamente a produção de cloroquina e de álcool em gel e distribuímos para as nossas organizações militares de saúde, colocando-os à disposição dos médicos e pacientes. Não era o intuito, mas eis que o vídeo traz mais uma comprovação da ação dos militares em sintonia com Bolsonaro e em dessintonia com a Ciência e com as orientações da Organização Mundial da Saúde. Como se sabe, a cloroquina não se mostrou adequada ao combate da covid19 e seu uso atestou incidência de efeitos colaterais graves, com risco e até ocorrência de morte.

O ponto central do debate promovido pela revista Istoé havia sido a preocupação de todos os participantes com os números alarmantes de infectados e mortos pela covid19 no Brasil, sem que exista uma política nacional integrada para o enfrentamento da pandemia. Os debatedores, na ocasião, apontaram como um dos grandes problemas a não nomeação, desde maio, de um ministro da área médico-sanitária para a Saúde, assim como o fato de o general que assumiu interinamente o ministério ter nomeado nove outros militares para cargos-chave da pasta, que deveriam ser ocupados por técnicos. Os debatedores refutaram, como tática politica inaceitável, a alegação de Bolsonaro de que o STF retirou o poder de ação da União e o entregou aos estados e municípios. Nesse contexto, o ministro Gilmar Mendes lembrou que o STF, na linha do modelo tripartite previsto na Constituição, reiterou a corresponsabilidade da União, estados e municípios, admitindo ações dos poderes estaduais e municipais, desde que pautadas por critérios científicos. A constatada negligência de Bolsonaro, sua falta de atenção à vida dos brasileiros, e a mencionada entrega de cargos a militares levaram o ministro do Supremo, nesse debate, a alertar que as Forças Armadas são instituição de Estado e não podem ser requisitadas para políticas de governo, e que o Exército não pode ser associado a um genocídio. Ainda na ocasião, defendendo a postura do STF diante da crise sanitária, Gilmar Mendes lembrou que foram suspensas normas relativas à Lei de Responsabilidade Fiscal, a fim de viabilizar a ação do governo na emergência. O ministro, além disso, levantou questões interessantes a serem pensadas, como o direito à boa governança, muito reconhecido na União Europeia. À luz desse direito, não seria aceitável o vazio no Ministério da Saúde. Também mencionou a desatenção às condições sanitárias da periferia, no Brasil, e, citando o economista José Roberto Afonso, com quem conversou a respeito, defendeu uma necessária Lei de Responsabilidade Social, talvez a ser pensada no pós-pandemia.

Como se pode constatar, é enorme a distância entre os acontecimentos e os comentários dos supostos analistas. Boa parte do público, que não acompanhou o referido debate, adotará como verdade a manipulação da informação feita por quem, supostamente, coloca os “pingos” nos is. Um dos três comentaristas, no dia 22, chegou a sustentar que o STF teria, de fato, impedido que o governo federal concretizasse seu plano de ação contra o coronavírus. Faltou dizer em que consistiria o plano de ação interrompido, algo além da inútil carga de hidroxicloroquina vinda dos Estados Unidos, da demissão intempestiva de dois ministros da Saúde, do foco único nos interesses empresariais, da incitação à desobediência às normas sanitárias, da destinação, por longo tempo, de apenas 29% do dinheiro disponível para as ações de combate à pandemia (conforme relatório do Tribunal de Contas da União), das afirmações desrespeitosas e insensíveis do presidente da República diante do luto de milhares de famílias. No entanto, os comentaristas manipuladores  prescindem dos fatos, não têm qualquer compromisso com a verdade. Não fazem jornalismo, apenas servem a jogos de interesses. Desse modo, negam à população o direito à informação, previsto na Constituição Federal de 1988. É o exercício desse direito que possibilita a democracia e a cidadania, com a inserção de cada indivíduo, como sujeito de suas ações, em questões coletivas. É com a informação que se torna possível o conhecimento de protocolos e a civilidade da população. A informação é também ferramenta de controle social, capacitando o monitoramento das atuações de governantes, permitindo a escolha consciente de representantes, a compreensão mínima dos contextos, a expansão dos projetos de vida.

Por isso é alentador saber que estudantes de Jornalismo, em Pernambuco e, possivelmente, em outros lugares do Brasil, não seguem o mau exemplo da canalhice vigente e mantêm vivo o compromisso com a informação. Aliados a voluntários, nas comunidades da periferia de Recife, realizam um trabalho social de extrema importância neste momento grave de pandemia. É a dignidade do jornalismo preservada, dentro da luta maior pela dignidade dos seres humanos, particularmente dos abandonados pelo Estado, em localidades pobres deste país tão desigual. No momento em que a rádio Jovem Pan e outros veículos manipuladores põem no ar os seus farsantes, é alentador saber que há ciclistas circulando por bairros, vilas e favelas, com aparelhos de som adaptados nas bicicletas, levando as necessárias informações aos moradores. E, driblando as Fake News do whatsapp, uma rede de informação valiosa consolida-se, ao mesmo tempo em que alicerça a formação de jornalistas que poderão recuperar a ética e fazer a diferença.

Miriam Gusmão é professora aposentada e jornalista.

ALDO REBELO/ Cobiças sobre a Amazônia

Aldo Rebelo

Ao comentar a carta de 38 executivos de grandes empresas nacionais e multinacionais com pedido de providências do governo contra o desmatamento na Amazônia, o vice-presidente Hamilton Mourão ponderou que a região é alvo de disputa geopolítica e que incomoda os críticos o fato de o Brasil despontar em breve como a maior potência agrícola do mundo. E acrescentou que os incomodados com a ascensão do Brasil buscam impedir que a produção agropecuária do País evolua.

Não há uma única inverdade nem uma só novidade nas observações de Mourão. A Bacia do Amazonas é cobiçada desde o Tratado de Tordesilhas (1494) e a presença das três antigas Guianas – francesa, holandesa e inglesa – na fronteira setentrional do Brasil é o testemunho da história de cobiça de todos os impérios coloniais pela natureza exuberante da região. debate sem precisar ter razão, que parece orientar integrantes do atual governo do Brasil e parte dos seus críticos.

Mas a declaração foi suficiente para desencadear uma tempestade de críticas contra ele e o governo. Aqui mesmo, nesta Folha, um articulista chegou a atribuir os argumentos de Mourão à geopolítica de general de pijama, ufanismo de liberal gagá e ignorância do que se passa no mundo. Não fosse o articulista em questão crítico do atual governo, seria de se imaginar que se inspirara na obra Como vencer um debate sem precisar ter razão, do filósofo alemão Schopenhauer, livro de cabeceira do ideólogo da hora no Palácio do Planalto.

Cobiça, inveja, curiosidade e interesse são substantivos que movem tantos quantos no mundo manifestam opiniões sobre a Amazônia. A indiferença foi o único sentimento que não percebi em relação à Amazônia nas viagens oficiais internacionais como presidente da Câmara dos Deputados, ou ministro em quatro pastas que ocupei.

O governo erra ao adotar uma atitude defensiva ou beligerante quando trata do tema Amazônia. Está certo ao repudiar qualquer tese de limitação da soberania do Brasil, mas peca ao não promover um esforço que reúna competência diplomática e científica para explicar a Amazônia, esforço que carece de autoridade e credibilidade, infelizmente em declínio no Itamaraty.

O estado do Amazonas isolado tem mais florestas do que os territórios somados da França, Alemanha, Noruega, Holanda e Dinamarca, campeões do ambientalismo interesseiro. Em que país da Europa o agricultor destina 80% da área de sua propriedade para proteção ambiental? Em nenhum, no mundo isso só acontece na Amazônia brasileira. A lei europeia não obriga seus fazendeiros a destinarem um mísero hectare para a proteção do meio ambiente. Aqui, 80% do Amapá e 70% de Roraima estão imobilizados em unidades de conservação e terras indígenas, e do que resta com potencial de aproveitamento para a agricultura ou pecuária 80% são reserva legal.

Em resumo: a Amazônia está protegida por terra, mar e ar e não se pode confundir atividades ilegais com a ocupação laboriosa e secular de brasileiros honrados e trabalhadores que vivem e produzem na região mais abandonada, mais pobre e mais incompreendida da Pátria.

*Aldo Rebelo é jornalista e foi presidente da Câmara dos Deputados, relator no Novo Código Florestal e ministro de Estado da Secretaria de Coordenação Política e Relações Institucionais; do Esporte; da Ciência Tecnologia e Inovação e da Defesa.

LUIZ-OLYNTHO TELLES DA SILVA / Divide et impera

Se um reino se dividir contra si mesmo, tal reino não poderá subsistir.

Marcos, 3:24.

O mundo, visto pelo ângulo de cada um, é sempre diverso. Frente a uma mesma paisagem, a um chamar-lhe-á a atenção as nuances do verde; a outro, uma pequena casinha, entrevista em meio ao arvoredo, de onde exala, suave, uma bucólica fumacinha branca; um outro ficará embevecido com a luz do lugar; um Cèzanne olhará para as casinhas e pensará nas pessoas que vivem nela; alguém, com os olhos fechados, dirá da energia do ambiente; e sempre haverá aquele que não verá aí graça nenhuma, antes pelo contrário. A pluralidade de pontos de vista e de opiniões sempre foi a base de nossa riqueza cultural.

Por outro lado, se, sob o efeito de experiências diferentes, cada um vê o mundo à sua maneira, na escola, entretanto, somos levados a vivenciar experiências comuns e assim aprendemos a tabuada, muitas vezes cantando e dançando, as regras da gramática, a biologia e a história dos feitos de nossos antepassados. Aos poucos vamos construindo uma identidade, tanto pessoal como social, fruto de nossas aprendizagens.

Hoje, contudo, a diversidade de compreensão do mundo não parece tão simples. Nosso povo parece dividido em dois – apenas dois – grandes grupos. Divididos como se fossem inimigos. Não se falam e, quando o fazem, ou não discutem suas opiniões, na busca de preservar as amizades, ou então se xingam. As opiniões, isso que é o mais próprio do ser humano, porque a certeza – diziam os gregos – pertence aos deuses, tendem a ser discutidas apenas entre os que pensam igual (como se isso fosse possível).

Foi ao perceber isso, em desacordo à minha premissa, que me lembrei deste antigo ditado latino, Divide et impera. Investigando sua origem, encontrei que, a rigor, ninguém sabe de onde veio. Há quem o atribua a Filipe da Macedônia, mas as referências são incertas. Não há dúvidas, porém, quanto a tratar-se de um recurso maquiavélico para administrar o poder, pondo uns contra os outros. Prosper Mérimée atribuiu-o ao rei Luís XI, da França, que, no século XV, teria criado o slogan Diviser pour régner, dividir para reinar, enquanto o jesuíta Thomas Fitzherbert, de origem inglesa, em seus estudos sobre Maquiavel, que viveu praticamente na mesma época de Luís XI, registrou a variante Si vis regnare divide, se queres reinar, divide. Seja como for, estavam sempre apoiados no princípio de que os meios justificam os fins. A verdade é que há muitas maneiras de dizer o pretendido e talvez nenhuma absolutamente satisfatória. Em todo o caso, quando Mérimée fez essa citação, ele estava ocupado com o reinado do jovem Carlos IX, na França, no momento em que este, querendo libertar-se da tutela de sua mãe, Catarina de Médicis, se une aos protestantes do almirante Coligny para intervir nos Países Baixos em apoio aos adeptos da Reforma. Contudo, frente ao fracasso da intervenção e não tendo como opor-se à sua mãe, nem às lideranças católicas, o rei termina por renegar esses protestantes reformistas, os huguenotes, e permite, ainda que não oficialmente, seu massacre na Noite de São Bartolomeu, uma noite que durou de 24 de agosto de 1572 a meados de outubro do mesmo ano. Embora o número de mortos varie de dois mil a setenta mil, dependendo de quem conte a história, o que se sabe é que depois disso, por causa dos corpos desaguados nos rios, por muito tempo não se pôde comer peixe.

Quer dizer, dividir para imperar não é o melhor dos recursos para quem pensa no povo, e quando digo povo, antes que às multidões, não raro tomadas como massa de manobra, estou me referindo ao coletivo de pessoas, cada um com seus sonhos. Em sua propaganda, o que os pretendidos imperadores não dizem é que dos fins só sabemos depois e que, para jogar uns contra os outros, tanto os uns como os outros precisam estar unidos entre si, seja em torno de alguma religião, de alguma cloroquina, seja do que for, mas cada um para o seu lado.

Em minhas investigações, também encontrei que Goethe, por certo com a melhor das intenções, propôs ao aforismo uma contrapartida: Vereinund leite, Une e guia. Mas talvez já fosse tarde.

DIEGO PAUTASSO / A China na África

A densificação das relações sino-africanas remonta ao quadro de forças emergido no Pós-Guerra Fria. A China buscava evitar o isolamento internacional após os eventos da Praça da Paz Celestial (1989) e o sequencial colapso do campo socialista. Assim, mobilizou esforços para garantir fontes de recursos (hidrocarbonetos, alimentos e matérias-primas) e a paralela abertura de novos mercados, capazes de contribuir com seu acelerado processo de modernização. O panorama de marginalização do continente africano no ciclo de globalização neoliberal foi percebido pela China como oportunidade, e permitiu a conformação daquilo que os chineses intitularam de diplomacia zhoubian (periférica).

Desde então, são ascendentes as relações entre a China e os países do continente africano, como bem evidenciam os números. Se em 1996 o fluxo comercial era de US$ 4 bilhões, em 2000 já chegava em US$ 10 bilhões, e mais contemporaneamente, em 2018, em quase US$ 185 bilhões – bem acima dos US$ 61,8 bilhões do fluxo comercial do continente com os Estados Unidos da América (EUA) no mesmo ano. Nesse mesmo sentido, os investimentos externos diretos (IED) chineses na África vêm aumentando constantemente. Entre 2003 e 2018, o número passou de US$ 75 milhões para US$ 5,4 bilhões – ultrapassando o montante dos EUA desde 2014, já que estes têm diminuído seus investimentos na África desde 2010.

Ressalte-se que a China tem instituído Zonas Econômicas Especiais (ZEEs) no continente africano, impulsionando a geração de empregos, a industrialização e a consequente redução da pobreza em muitos de seus países.  Entre 2003 e 2015, a ajuda ao desenvolvimento prestada pela China ao continente africano aumentou constantemente, passando de US$ 631 milhões em 2003 para quase US$ 3,3 bilhões em 2018.

Ainda mais importante, a cooperação multilateral se multiplicou e se institucionalizou. Seu mais relevante mecanismo é o Fórum de Cooperação China-África (FOCAC), criado em 2000, que realiza Conferências Ministeriais a cada três anos, sediadas de forma alternada entre a China e os países africanos, elaborando complexos Planos de Ações. Além disso, com a cooperação China-África em constante expansão e aprofundamento, vários fóruns foram estabelecidos no âmbito do próprio FOCAC, tais como o Fórum do Povo China-África, o Fórum de Jovens Líderes China-África, o Fórum Ministerial de Cooperação em Saúde China-África, o Fórum de Cooperação Mídia China-África, a Conferência de Desenvolvimento e Redução da Pobreza China-África, o FOCAC-Fórum Jurídico, o Fórum sobre a China Cooperação entre governos locais, entre outros. As relações da China com a União Africana ou mesmo o papel da África do Sul no BRICS intensificam ainda mais estas interações

Traçados esses parâmetros empíricos, é possível refletirmos sobre as abordagens ocidentalistas voltadas a configurar a presença da China na África como imperialista ou neocolonial. E nisso reside o entrelaçamento entre a má-fé patrocinada pelo centro do sistema com certas tendências etnocêntricas e até mesmo profundas incompreensões teóricas acerca dessas dinâmicas. Por um lado, atribuir perfil neocolonial à atuação chinesa na África significa assumir o desconhecimento acerca da história do imperialismo do século XIX e mesmo das práticas atuais das grandes potências norte-atlânticas, notadamente dos Estados Unidos da América, pautadas nas mais diversas ingerências externas diretas e indiretas em diversas regiões do globo.

Por outro lado, é preciso considerar que, apesar das assimetrias, há importantes pontos de convergência entre os países emergentes e os países periféricos, em razão das disputas pela distribuição de poder no mundo. Ou seja, o relacionamento Sul-Sul se torna uma alternativa crucial para resistir aos constrangimentos que os países periféricos e emergentes estão submetidos ao adotarem seus projetos de desenvolvimento nacionais não alinhados aos interesses norte-atlânticos. Assim, não raramente estes mobilizam suas estruturas de poder e seus princípios legitimadores, como a defesa da “democracia”, dos “direitos humanos” e da “liberdade” para impor seus interesses.

Em outras palavras, o imperialismo não pode ser reduzido ao processo de exportação de capitais, e de fato nunca foi, afinal a soberania política, a autodeterminação e o desenvolvimento nacionais conformam, conjuntamente, uma complexidade infinita de variáveis. Se as relações interestatais estão impregnadas de interesses nacionais e corporativos, de conflitos e assimetrias, é preciso compreender os padrões de relacionamento levando em conta a correlação de forças e as alternativas políticas em questão. Não se pode, pois, negligenciar que as relações sino-africanas não têm sido baseadas em qualquer imposição de modelos político-institucionais e de ajustes macroeconômicos; não recorrem às práticas de desestabilização e ingerências políticas e militares; têm proporcionado vantajosas condições de financiamento e disposição para a cooperação tecnológica; e ainda possuem uma agenda diplomática em muitos aspectos convergentes no que se refere à reorganização da governança do sistema internacional.

Aliás, segundo Deborah Bräutigam, uma das maiores especialistas nas relações entre China e África, os recorrentes argumentos anti-chineses não se sustentam quando confrontados com a realidade: cerca de 75% dos trabalhadores em obras chinesas no continente são africanos; longe de atenderem a interesses especulativos, 70% dos empréstimos servem às obras de infraestrutura energética e de transporte, com taxas de juros baixas e longos períodos de pagamento; e, apesar de setores midiáticos anunciarem com tom catastrofista que empresas chinesas já teriam adquirido “6 milhões de hectares” de terras africanas (que na verdade não ultrapassam a marca de 1% de todas as terras agricultáveis da África), sequer o dado é verdadeiro, afinal pesquisas indicam a compra de apenas 240.000 hectares (ou seja, apenas 4% da porção relatada).

Isto não quer dizer que a presença da China e dos demais países emergentes na África esteja isenta de problemas e contradições. Ou seja, de modo algum se deve negligenciar as agendas conflitantes das distintas nações, os conflitos sociais intra e interestatais ou os embates entre os interesses governamentais e de certas corporações. No entanto, o dado central dessa questão reside no fato de que a presença dos emergentes – especialmente da China, mas também do Brasil, Índia e demais – têm ocorrido em prejuízo das grandes potências norte-atlânticas, sobretudo das antigas detentoras de vastos impérios coloniais (França, Reino Unido, Bélgica e Portugal), dos “desinteressados” e “altruístas” países nórdicos e da grande superpotência mundial, os EUA. A mesma carga dos frágeis argumentos que ataca as relações dos países africanos com a China também já foi utilizada quando do crescente adensamento dos vínculos entre o Brasil e os países africanos e até mesmo com seus vizinhos sul-americanos. Como exemplo, foi amplamente estimulada por veículos midiáticos franceses e ativistas políticos desorientados para obstruir relevantes iniciativas como a cooperação trilateral Brasil-Japão-Moçambique para a implementação do ProSavana em Moçambique, que teria crucial participação da Embrapa.

Assim, distintamente do que vem sendo apontado pelos formuladores do “neocolonialismo chinês” (ou até mesmo do “subimperialismo brasileiro”), essas relações têm se constituído, de forma geral, num flagrante elemento de promoção da estabilidade e desenvolvimento – e endossadas sem mecanismos de imposição político-militar ou técnicas de regime change. Isso ocorre porque se apresentam como alternativas para os países africanos na busca por melhores condições de crédito, pela atração de investimentos, pela obtenção de cooperação técnica, pelo fortalecimento de suas soberanias e, consequentemente, por maior convergência diplomática nas articulações em prol das reformas dos principais organismos multilaterais globais. Longe de representarem anseios imperialistas ou predatórios, atuam no sentido contrário, e exatamente por isso se tornam alvo predileto daqueles que, por detrás da retórica da liberdade e de um denuncismo de frágil sustentação empírica, visam sustentar as apodrecidas estruturas de dominação que lhes garantem um lugar ao sol.

*Diego Pautasso é doutor e mestre em Ciência Política e graduado em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor de Geografia do Colégio Militar de Porto Alegre e professor convidado da Especialização em Relações Internacionais – Geopolítica e Defesa, da UFRGS. Autor do livro China e Rússia no Pós-Guerra Fria, ed. Juruá, 2011. E-mail: dgpautasso@gmail.com

LUCAS ALVARES / Não há positivistas no governo federal

O general Benjamin Constant, ministro da Instrução Pública durante o governo republicano provisório do Marechal Deodoro, nasceu em Niterói em 18 de outubro de 1836. Sua contribuição aos generais brasileiros formados após a Guerra do Paraguai (na qual teve destacada performance como engenheiro militar) na Escola Militar da Praia Vermelha e na Escola Superior de Guerra, foi inestimável.

Pela eloquência de Constant nas salas de aula floresceram no Brasil as primeiras manifestações da apropriação nacional do ideário positivista de Augusto Comte, que aqui tomou (como bem lembra o acadêmico José Murilo de Carvalho) cores próprias, antropofagizando-se à realidade brasileira e contribuindo para a construção de iniciativas pioneiras e generosas de progresso social e inclusão social pela educação, especialmente no Rio Grande do Sul de Júlio de Castilhos e no Pará de Lauro Sodré.

Decisivo para a queda da monarquia, o positivismo de Benjamin Constant, calcado no aperfeiçoamento do Estado, na profissionalização dos militares (dentro do princípio do soldado-cidadão, semeador da Razão, da Ciência e da Soberania), na inclusão pela instrução pública, na matriz industrial com divisão do trabalho social, na crítica ao individualismo e às práticas ocultas, com o princípio do “viver às claras”, tornou-se contra-hegemônico durante a República Velha, uma democracia de fachada marcadamente liberal.

Muito embora recebido post mortem o epíteto de “Fundador da República Brasileira”, por intermédio da Constituição Federal de 1891, e oferecendo seu nome ao Instituto Benjamin Constant (antigo Imperial Instituto dos Meninos Cegos, por ele dirigido), Constant em particular e os positivistas em geral permanecem esquecidos, escamoteados que foram em vida pelos liberais e, perante a História, diminuídos pela historiografia de esquerda, que os reputa “autoritários” e “conservadores”.

Foram, pelo contrário, os maiores promotores da inclusão em seu tempo: com Nísia Floresta, da participação política da mulher. Com Benjamin Constant, do ensino aos excluídos. Com Júlio de Castilhos, da proteção ao trabalho. Com Rondon, da cidadania do indígena.

Quando lemos uma personagem como a deputada Carla Zambelli, de rasas convicções e nenhum conhecimento de causa sobre os problemas do Brasil, afirmar que “os positivistas são o pior câncer do Brasil”, como hoje fez, lembramos que não há um único ministro como Constant em um governo permeado, do presidente da República ao mais modesto comissionado, por liberais globalistas, anti-nacionais e de costumes fúteis e mercadológicos.

Não há, lamentavelmente, positivistas no governo, deputada.

A Benjamin Constant, por sua contribuição à Educação pública com a inclusão dos cegos e a formatação das primeiras escolas de professores (especialmente da Escola Normal da Corte, atual ISERJ), as nossas homenagens. À contribuição dos positivistas, heróis nacionalistas, os nossos respeitos.

Lucas Alvares é do Movimento de Resgate Nacional (MORENA), doutor em memória social pela Unirio e diretor cultural do Instituto da Brasilidade.

CARLOS FERREIRA / Um basta ao racismo estrutural!

África.

Eu  não vivi os dias que o preto em mim foi escravizado, mas tenho a memória e carrego a dor e a tristeza disso todos os dias com esta tatuagem orgânica que faz a minha pelo ser preta. Todo o santo dia que vivi em Porto Alegre, sem ao menos um descanso por dia eu fui rebaixado pelo branco. Todos os dias da casa grande arrogante, a cada olhar, a cada palavra, para a senzala. Mas houve o basta e libertação para o quilombo. Engana-se você que acha que estes lugares são apenas físicos, são também geografias humanas. O branco a casa grande, o preto inferiorizado pelo branco habita a senzala em sua mente de racismo estrutural. Esta a perspectiva quando cada branco abre a boca, abre o olho para descrever o preto. Não há branco sem racismo estrutural. Sinto, como eu sinto. Na pele, na boca de lábios, grossos, no cabelo grosso que já não tenho.

A Senzala (A palavra tem origem africana e significa morada. Mas ganhou novo significado com a escravidão significando jaula.)

Vale dizer que os escravizados não eram considerados homens, nem animais, mas peças. O idealizador sistema da escravidão africana foi a Igreja Católica, o principal financiador a realeza portuguesa e demais países europeus.

A senzala foi uma forma de alojamento destinado aos escravizados vindos da África. As senzalas estavam diretamente relacionadas à casa-grande. Enquanto os senhores e suas famílias viviam sob a casa-grande, escravizados serviam e habitavam esses alojamentos com raros recursos e nada de conforto.

A experiência das senzalas existe desde o início da experiência da escravidão na América Portuguesa. Desta forma o alojamento em questão esteve presente do século XVI ao XIX, ou seja, dos engenhos de açúcar, das minas de ouro às fazendas do cultivo de café. Elas foram a principal forma de aprisionamento dos escravizados dos períodos colonial e imperial. As senzalas inspiram o sistema presidiário neste país.

Com as Senzalas preveniam fugas colocando grades nas poucas janelas existentes e instalando à frente da senzala o pelourinho – tronco destinado aos castigos físicos da população escravizada. Essa estratégia era utilizada a fim de utilizar a tortura como forma exemplar aos demais e inseria as sevícias na vida cotidiana e na morada desses homens e mulheres

A senzala fez parte da vida cotidiana de sujeitos escravizados, envolvendo formas de organização social, resistência e convívio social.

A divisão interna da senzala é bastante diferente de como são organizadas as moradias atuais. A divisão interna que prevê espaços individuais (quartos, banheiros) não existia, nem mesmo a divisão por unidades familiares, tendo em vista que a própria noção de família se alterou com o tempo. Não havia divisão de cômodos e dormiam todos juntos, num mesmo espaço, apenas com separações entre homens e mulheres e crianças. Lembrando muito as condições dos antigos e atuais presídios brasileiros onde a maioria de presos são homens e mulheres pretos.

Para dormir o chão era o destino. Diretamente na terra ou sobre palhas eram as formas que os escravos encontravam para se acomodar para a noite de sono.

A vida na Casa-grande e nas senzalas traz aspectos da formação social brasileira e está presente nos debates atuais. A PEC das domésticas, aprovada em 2013 é exemplo deste debate. Os direitos garantidos aos trabalhadores pela CLT são bastante difundidos, entretanto, somente em 2013 que o trabalho doméstico assalariado passa a ter tais garantias. Isso acontece pois o fator doméstico – ou a intimidade e as relações pessoais que surgem desta relação – implicam outras regras. A ideia desta suposta proximidade entre patrão e empregado (ou entre senhor e escravo, no mundo colonial) faz do direito trabalhista das domésticas uma questão sensível. A proximidade e a intimidade fizeram com que a ideia de que a empregada doméstica “é quase da família” seguisse os padrões patriarcais e escravocratas da experiência na Casa-grande e nas senzalas. Que horas ela volta? filme de Anna Muylaert de 2015 retrata essas relações.

Cinema 
A origem da palavra “cinema” deve-se à circunstância de ter sido o cinematógrafo o primeiro equipamento utilizado para filmar e projetar. Por metonímia, a palavra também se refere à sala onde são projetadas obras cinematográficas. A invenção da fotografia, e sobretudo a da fotografia animada, foram momentos cruciais para o desenvolvimento não só das artes como da ciência, em particular no campo da antropologia visual.

Cinema (do em grego: κίνημα, kinema “movimentos” e γράφειν, graphein “registrar”), também chamada sétima arte, ou, em certos contextos cinematografia, pode ser definida como a técnica e a arte de fixar e de reproduzir imagens que suscitam impressão de movimento, assim como a indústria que produz estas imagens. As obras cinematográficas (mais conhecidas como filmes) são produzidas através da gravação de imagens do mundo com câmeras (câmaras) adequadas, ou pela sua criação utilizando técnicas de animação ou efeitos visuais específicos. Mais especificamente, pode ser descrita como o “conjunto de princípios, processos e técnicas utilizados para captar e projetar numa tela imagens estáticas sequenciais (fotogramas) obtidas com uma câmera especial, dando impressão ao espectador de estarem em movimento”. O diretor de arte pode ser descrito como o principal colaborador visual de um diretor de cinema. Também se usa a palavra ‘cinegrafia’, estando dicionarizada.

Os filmes são assim constituídos por uma série de imagens impressas em determinado suporte, alinhadas em sequência, chamadas fotogramas. Quando essas imagens são projetadas de forma rápida e sucessiva, o espectador tem a ilusão de observar movimento. A cintilação entre os fotogramas não é percebida devido a um efeito conhecido como persistência da visão: o olho humano retém uma imagem durante uma fração de segundo após a sua fonte ter saído do campo da visão. O espectador tem assim a ilusão de movimento, devido a um efeito psicológico chamado movimento beta.

O cinema é um artefato cultural criado por determinadas culturas que nele se refletem e que, por sua vez, as afetam. É uma arte poderosa, é fonte de entretenimento popular e, destinando-se a educar ou doutrinar, pode tornar-se um método eficaz de influenciar os cidadãos. É a imagem animada que confere aos filmes o seu poder de comunicação universal. Dada a grande diversidade de línguas existentes, é pela dublagem (dobragem) ou pelas legendas, que traduzem o diálogo noutras línguas, que os filmes se tornaram mundialmente populares.

Cinema de Senzala 

É possível debater o racismo estrutural sem tochas e cabeças cortadas? Noto que em Porto Alegre ergueu este debate com a live da APTEC (Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do RS). Estamos nós, pretas e pretos, mais ativos em revisitar as questões sociais ligadas a abdução de uma cultura preta para um contexto escravista e diante disto há um oceano de distância em embate onde a configuração agora é de dizer basta.

Faço parte da associação, sou diretor cinematográfico, sou preto, mas confesso que não tenho demanda ativa de contestação e participação em suas pautas. Mas recebi uma mensagem sobre essa questão que polemizou racismo estrutural e machismo.

Com a atenção devida assisti o videolive e formei a minha opinião sobre o ocorrido. Antes de qualquer coisa, digo isto como homem preto, há que debater o racismo estrutural, na minha opinião sem tochas, sem fogueira, mas lanternas de conscientização em alertas críticos porque tochas, fogueiras é o jeito do homem branco extremo. O Europeu que ascendeu o criacionismo e fomentou o nazismo, antes disso a escravidão senzala aportada pelos navios negreiros. A superioridade branca então nunca foi apenas em um período das grandes guerras do século XX. A superioridade branca é fácil de ver. Perpetua em uma linha de narrativa da história onde agora despertadas as minorias em movimentos de basta atuam para baixar a curva da perversidade humana.

Porto Alegre é uma cidade racista. O Rio Grande do Sul é extremo estado racista e perverso, mas há movimentos de gente que quer aprender a deixar essas raízes profundas do racismo estrutural.
Como diretor de cinema, como autor de quadrinhos eu tenho consciência prática em dizer isso para todos que estavam nessa live que foi importante o debate, o embate e a onda que vem com isso. Por que me citei como autor de quadrinhos? Porque fui processado por uma editora que quis que eu abrandasse o final do meu livro Zumbi- Guerreiro dos Palmares mostrando o negro na sociedade de hoje considerando o Quilombo dos Palmares como um assunto superado. Isso me fez por 5 anos lutar na justiça e me defender, defender o meu livro em co-autoria com outro autor negro e depois de 5 anos vencer o processo que foi sim um fomento de racismo estrutural.

Li o pedido de desculpas por parte de quem cometeu os erros. Racismo estrutural não há como desculpar, as pessoas envolvidas acredito que precisam sim receber a aprendizagem necessária para achatar a curva dessa arma genocida que é o racismo em um país que ainda segue escravista. Essas pessoas precisam ser educadas no mundo anti-racistas e sou humanista e percebo que o debate deve servir sim em fazermos como foi feito no Quilombo dos Palmares, acolhermos não apenas pretos, mas índios e até gente branca que não estavam a favor do sistema escravista.

Você, branco, realmente não é a favor do racismo estrutural? Então faça o seu pedido de desculpas e revisa a sua história e a história para o seu despertar. Nós, pretos, conscientes armados com as nossas lanças, espadas, escudos representados com as nossas artes e discursos precisam ser mais bombeiros que policias. Não podemos reverberar violência, mas justiça.

Há outra questão que preciso falar. Mercado. Não existe essa coisa de mercado em Porto Alegre, no RS quando se fala de audiovisual, quando se fala em cinema. Existem iniciativas, vontades, lutas. Querendo ou não estamos todos não mesmo barco, no mesmo balde. Somo siris ou caranguejos tentando sair do balde. Esta é a configuração de Porto Alegre, a POAWOOD.

Não me falem de mercado. Mercado precisa ter bases, estações empresariais de veículos de massa para fomentar séries, filmes, animações, bases financeiras e de industrializações para as série e filmes. Aqui em POAWOOD são todos artesãos do audiovisual. Puxadinhos. Somos uma comunidade, uma favela de profissionais, e é nas artes que afloram os egos (os egoicos não dando espaço pra perdão pra ninguém aqui). Todos acreditam um uma certa dinastia das artes. Só que isso uma ilusão. Dá-lhe bolha sombria de Porto Alegre Poawood!

Olhando a live falta a mea culpa neste sentido. Cada um faz a história e a narrativa errada quando o assunto é sim, preciso aparecer, não contestar ou a auto análise.

Isso de Porto Alegre ter as panelinhas, isso de Porto Alegre apontar para o caminho da EXTREMA DIREITA ESQUERDA MACHISTA FASCISTA não pode ir para a polaridade da EXTREMA FACA DECAPITAR COM ÓDiO. Repudiar, barrar, orientar educar sim.

Há um movimento estranho dentro dos movimentos autênticos que vai trazer uma consequência de ainda mais ódio. Isso se não aproveitarmos este exato momento para debater e revisar tudo.

Há que cuidar ao máximo esta energia de o dedo na cara do outro, vão todos acabar matando um aos outros por tamanha hipocrisia.

Há que também entrar na lista dos Anti o preconceito aos velhos. Tá rolando isso também. Te cuida que na velhice chegamos todos. Artista envelhece, mas a sua arte, como real arte não. A arte do artista não é apenas o seu passado, mas o presente e futuro. Para perpetuar no tempo o artista sempre tem que está aberto a escutar, aprender e expandir a sua vivência. Seja um jovem, seja um velho.

APTEC, por favor, seja mais coerente e seja ponte com o diálogo. GRAFAR, aprenda com a APTC em reconhecer os seus limites.

Mesmo que eu já não pertença mais a esta cidade, esta cidade é pertinente em mim. E desejo que ela volte a brilhar arte consciente e com um plural das suas divergências.

Arte preta, feminina e GLBT se precisa sim. Cuidar da nossa trajetória até aqui também.

Queimamos as casas grandes e senzalas, mas salvamos vidas, ok?

 

*Carlos Ferreira nasceu em Porto Alegre em 1970. Artista gráfico, diretor e roteirista, já teve histórias em quadrinhos publicadas no Brasil, Argentina e Japão. É roteirista da biografia em quadrinhos Kardec, desenhista e roteirista de O castelo e da revista Picabu, e diretor dos curtas-metragens Phil (2001), Pessoas incertas (2003), Castigo (2009), Os cafalhões (2009) e Bacantes (2019).

GUILHERME CARVALHO / Inteligência artificial no Jornalismo

O dilema entre seres humanos e máquinas é, sem dúvida, um dos mais instigantes temas da modernidade. Seja por instrumentos movidos por força mecânica, a vapor, carvão, ondas eletromagnéticas, eletricidade, bytes ou algoritmos, este assunto é motivo de medos e, ao mesmo tempo, fascínio. Filmes como “Blade runner” (1982), “Matrix” (1999), “A.I. Inteligência Artificial” (2001), “Eu Robô” (2004) e “Ela” (2013), além da série “Black Mirror” (2019) não fizeram sucesso à toa. Além dos efeitos especiais, são produções que tocam na ferida e apontam para um futuro possível na convergência humana e tecnológica, geralmente retratada de modo conflituoso.

Como é característica de toda polêmica, este assunto é permeado por um dualismo. Parafraseando Umberto Eco, os “apocalípticos” tendem a traçar um futuro sombrio, no qual o trabalho humano se torna obsoleto. Para muitos destes, as máquinas são inimigas e o discurso soa conservador, percepção que remete aos tempos de ludismo, quando operários resolveram quebrar máquinas de tear no início do século XIX ao notaram que estavam sendo substituídos.

Esta percepção muitas vezes pessimista é confrontada pelos “integrados”, que tendem a ver os benefícios do desenvolvimento científico e tecnológico, sobretudo para o mundo dos negócios. Para estes, o uso de máquinas, robôs, e outras tecnologias é imperativa e um caminho sem volta que deve ser considerado como o futuro da humanidade. Temos então uma visão mais otimista que se referencia nos benefícios que isto pode trazer.

Eu, que não gosto de ditados populares, principalmente aqueles que reforçam o senso comum, me rendo em busca de uma frase que possa explicar de forma simples meu pensamento. “Nem tanto ao céu, nem tanto à terra”, meus amigos.

O jornalismo, atividade profissional como poucas que trabalha no tratamento da informação, vive intimamente uma relação de amor e ódio com as tecnologias. De um lado, acelerou a produção de conteúdos, facilitou o acesso a dados e fontes de informação, diversificou as atividades destes profissionais, expandiu de forma ilimitada a circulação de produtos jornalísticos, comprimiu tempo e espaço aumentando a produtividade. Ninguém negaria que estes são bônus colecionados ao longo dos anos para o jornalismo. Entretanto, vemos também as demissões de jornalistas, o esvaziamento das redações, a explosão de notícias falsas e desinformação, o cenário de hiperconcorrência midiática, o fim do monopólio da informação e as crises do modelo de negócios, entre tantos fatores que impactam negativamente a profissão.

A mais recente fronteira tecnológica atravessada pelo jornalismo é a do uso de inteligência artificial (IA) para a produção de notícias. Acontece que comparado a outras áreas como a indústria, o mercado financeiro, a medicina e a engenharia, o negócio jornalístico está ainda engatinhando. Apesar que devemos reconhecer as iniciativas que já circulam em nosso meio. É o caso da Narrative Science, empresa norte-americana que processa dados e os transforma em textos noticiosos. A agência Associated Press utiliza a ferramenta Automated Insights. O Washington Post, o Heliograf. O Los Angeles Times, o Bot Quake, que produz pequenas notas sobre tremores de terra.  CNN, Forbes e The Wall Street Journal também já utilizam estes recursos. Em um nível intermediário, encontramos iniciativas como a Local Labs que opera pequenos jornais regionais e oferece edições locais e outros serviços para jornais de metrôs nos subúrbios. Também a ProPublica, que inspira vários projetos brasileiros, já utiliza um aplicativo de notícias, a Opportunity Gap. Estes exemplos são empregados desde 2009.

No Brasil, tirando alguns poucos casos (um exemplo é o Aos Fatos, que oferece aos leitores um robô checador de informações chamado “Fátima”), o assunto ainda é um tabu entre muitos jornalistas e pesquisadores. Parte deste silêncio se deve ao desconhecimento sobre o assunto. Termos como Machine learning e NLG e mesmo a utilização de algoritmos são pouco tratados no meio. Talvez, seja esta a sina expressa naquela velha máxima jornalística de que o jornalismo fala de tudo, menos de jornalismo.

É o que explica porque notícias que apontam a adoção de Inteligência artificial no jornalismo causem ainda arrepios. O episódio mais recente foi o anúncio da Microsoft Notícias e da MSN e que estaria demitindo 50 jornalistas para substituí-los por IA. Casos semelhantes já haviam sido publicados em outros lugares. A editora portuguesa MotorPress já havia sido denunciada pela demissão de 28 funcionários em 2009 pelo mesmo motivo.

Um dos desafios atuais, portanto, daqueles que vivem o meio jornalístico, seja profissional ou academicamente, é justamente o de entender o uso destas ferramentas e compreender de que maneira podem ser utilizadas para o bem do próprio jornalismo. Se partirmos da premissa descrita pelo pesquisador finlandês Carl-Gustav Linden, ou seja, de que se trata de um sistema regido por “um conjunto de operações autossuficientes a serem desempenhadas passo-a-passo, como cálculos, processamento de dados e raciocínio automatizado – um conjunto de regras que definem precisamente uma sequência de instruções que serão compreendidas por um computador”, perceberemos que a ação humana é insubstituível. Afinal, quem programa estes sistemas, quem define o que é mais ou menos relevante, qual estrutura hierárquica de informações deve ser considerada na elaboração do conteúdo?

Não perceber esta realidade pode relegar os jornalistas a um papel secundário neste processo, enquanto programadores, engenheiros, gestores e tecnólogos da informação, entre outros profissionais, assumirão este posto.

A partir de uma compreensão mais técnica, podemos vislumbrar o uso destas tecnologias no processamento de grande volume de dados, a busca de informações em bases restritas ou segmentadas, o acesso a informações de arquivos históricos, na checagem de informações e declarações de autoridades, na produção de notas complementares que podem ser somadas a reportagens e outros conteúdos. Enfim, são várias as possibilidades.

Estou convencido de que ponto fundamental deste debate deve seguir no sentido de compreender os aspectos técnicos da IA associado aos princípios éticos do jornalismo e seu caráter de interesse público, que incluem a honestidade para com os consumidores de produtos jornalísticos. Nesse sentido, é preciso superar o dualismo entre humanos e máquinas e começar a pensar sobre as aplicações e implicações desta associação, reconhecendo o papel do trabalho humano, crítico, criativo, sensível às condições sociais e aos mais variados contextos.

A superação destas limitações pode não apenas apontar a superação da crise de legitimidade do jornalismo aberta com a difusão da internet, mas colocar o jornalismo de fato no século XXI, associando precisão, volume e rapidez, aspectos que caminham de braços dados com a sustentação financeira e relevância social dos veículos.

*Guilherme Carvalho é pós-doutor em Jornalismo e coordenador do curso de Bacharelado em Jornalismo do Cento Universitário Internacional Uninter.

 

LUIZ-OLYNTO TELLES DA SILVA / Adiós Nonino

Há tempos não vejo ressaltada a importância da ascendência familiar. Não faz muito, quando alguém se aproximava da casa, logo vinha a pergunta sobre sua origem. Ainda que não houvesse nenhuma garantia, pois ovelhas negras existem até nas melhores famílias de Boston, o conhecimento da estirpe era sempre uma referência. Na falta de uma grande fortuna, os pais esforçavam-se para legar aos filhos um bom e honesto nome, buscando assegurar-lhes uma nobre profissão.

Não sei bem por quê, mas esse questionamento parece não ter mais a mesma importância. Verdade que cada um tem que vencer por si mesmo e isso desde sempre. Mas, para tanto, não se pode reconhecer a contribuição dos pais?

Interrogações que me foram despertadas quando me caiu nas mãos a biografia de Eric Clapton. Não conheceu o pai e tornou-se um dos maiores guitarristas de todos os tempos.

Filho de uma mãe adolescente, foi criado pelos avós, pensando que sua mãe fosse apenas a irmã mais velha. De qualquer modo, e isto é o importante, durante a infância acreditava ter pais, e o fato de os avós o terem adotado não foi sem consequências, pois foi o avô quem o iniciou, desde criança, na flauta doce. Quando sua mãe biológica teve outros casamentos e a verdade veio à tona, tudo indicava ter-se aberto um vazio, um buraco na vida desse músico notável, e veio o período das drogas. Depois, quando perdeu seu filhinho, Conors, de quatro anos, em um acidente, salvou-se no trabalho compondo Tears in heaven, Lágrimas no céu. É depois disso que, tendo visto nos olhos de seu filho os olhos de seu pai, desse pai que jamais vira e que jamais soube quem era, ele compõe uma de suas melhores músicas, se não a melhor, My father’s eyes, Os olhos de meu pai. Pareceu-me não haver forma melhor de expressar a nostalgia pela ausência do pai. O curioso é que seu pai, mesmo sendo músico, e por certo tendo tomado conhecimento da fama de Eric Clapton, jamais suspeitou fosse ele seu filho, uma relação vinda à tona somente após a morte desse pai.

A partir daí comecei a interessar-me pela infância de outros gênios da música, todos tão precoces como Eric Clapton.

Tomando por critério a data de nascimento, minha lista inicia com Vivaldi, em 1678. Seu pai, de profissão barbeiro, foi também um ótimo violinista e, tendo reconhecido a aptidão do filho, incentivou-o desde muito cedo. Bach, nascido em 1685, logo considerado o Pai da Música, veio também de uma família de músicos e seu pai iniciou-o precocemente nos instrumentos de corda. Mozart nasceu quase um século depois, em 1756, e era filho de um compositor, cantor e violonista profissional. Quando percebeu a extraordinária habilidade do menino, ao cravo, ainda aos quatro anos, passou a dar-lhe as primeiras aulas que lhe possibilitaram compor e tocar, aos cinco anos, alguns minuetos. Beethoven, de 1770, graças à insistência de seu pai, um respeitado Mestre-Escola e também um bom músico amador, aos sete anos, deu seu primeiro concerto e, aos dez, conforme uma carta de seu mestre, Christian Gottlob Neefe, dominava todo o repertório de Johan Sebastian Bach. Chopin, que veio à luz em 1810, era filho de uma pianista polonesa e de um francês expatriado, professor de literatura francesa na Polônia. Aos sete anos já havia composto duas polonaises e aos vinte mudou-se definitivamente para a França, terra de seu pai.

Como vemos, a presença e o incentivo paterno são sempre marcantes. Mas não quero terminar minha lista dos clássicos europeus, à qual teria muitos nomes ainda a serem acrescentados, sem mencionar, pelo menos, Richard Wagner, vindo ao mundo em 1813. Seu pai, um chefe de polícia, morreu um ano após seu nascimento e sua mãe, alguns meses depois, casou-se com Ludwig Geyes, um artista da pintura, da literatura e do teatro. Foi ele quem percebeu, antes dos oito anos de Richard, seu talento ao piano e o incentivou aos estudos musicais, embora ele preferisse, na ocasião, o teatro e a literatura; foi só aos quinze anos que passou a dedicar-se inteiramente à música, fazendo da literatura sua aliada. Entre tantas óperas, compôs Os Mestres Cantores de Nuremberg, cujas figuras principais são os mestres artesãos de distintas profissões que se juntam para cantar. Sejam joalheiros ou sapateiros, as pessoas valem por sua aptidão na profissão, o mais das vezes aprendidas com os pais.

Do lado de cá do Atlântico também nasceram gênios. Um deles foi Heitor Villa-Lobos, em 1887, também incentivado pelo pai desde os primeiros anos de vida. Diretor da Biblioteca do Senado e músico amador, tendo logo percebido a vocação musical de seu filho, iniciou-o ao violão e ao violoncelo. Aos seis anos, o pequeno Heitor já havia composto uma peça para violão e aos oito começou seu interesse por Bach. Entre tantos músicos precoces, talvez o que tenha dado mostras de amadurecimento mais cedo, tenha sido Nelson Freire. Aos três anos tocava de ouvido as peças executadas pela irmã mais velha ao piano. Nascido em Boa Esperança, no interior de Minas Gerais, em 1944, seus pais, reconhecendo o extraordinário dom de seu filho, mudaram-se para o Rio de Janeiro para que Nelsinho pudesse ter bons professores.

Pessoalmente, permitam que lhes conte, também estive próximo da genialidade. Quero dizer, tive um vizinho de minha idade, lá pelos quatro anos, que era um violonista excepcional. Certa tarde fui brincar em sua casa e lá estava ele, junto dos pais, tocando violão. Era um instrumento feito sob medida para seu tamanho, e seu pai havia-lhe acoplado, na lateral superior, uma gaitinha de boca. Enquanto ele tocava ambos, ao mesmo tempo, eu ficava abismado com aquela cena inusitada. Foi quando seu pai perguntou-me se eu também tocava violão. Imediatamente respondi que não, e acredito ter me sentido muito diminuído com minha resposta, tanto que, tendo visto, em um dos cantos da sala, um cavaquinho que, à minha ignorância ab ovo, era apenas um violão pequeno, um brinquedo para crianças, bem menor do que o do meu amiguinho, logo acrescentei: – Mas aquele ali – e apontei para o violãozinho –, acho que toco. Poderia ter feito pior? Experimentei uma vez, duas vezes e, não tendo saído um som que dissesse algo a outro, só me restou sacudir a cabeça, os olhos baixos, para um lado e para outro, em sinal de frustração. De volta, em casa, muito envergonhado, meu pai salvou-me mostrando-me não haver motivo para tanto, pois, afinal, em casa não tínhamos instrumentos musicais; em nossa família ninguém se voltara para a música. Contudo, ele acrescentou: -Temos livros. E em seguida aprendi a ler.

O apoio paterno mostra-se sempre muito importante no desenvolvimento de um filho, mesmo quando o pai não é do mesmo sangue, como se diz. Depois de anos trabalhando com essas relações, estou convencido de que pai é aquele que adota o filho, seja ou não da mesma consanguinidade. Além desse vizinho, que depois se tornou diretor de uma orquestra famosa, conheci muitos que, incentivados pelos pais, estão hoje completando suas formações na música erudita.

E, entre tantas biografias, há uma que ainda preciso mencionar. É de outro vizinho, não da mesma rua, mas um vizinho nosso, de um país muito próximo, que é a Argentina. Trata-se de Astor Piazzolla, nascido em 1921. Seu pai apercebeu-se de sua vocação ainda em tenra idade e, ao completar oito anos, presenteou-o com um bandoneon. Morando em Nova Iorque desde os quatro anos, aos doze teve a oportunidade de participar de um filme, contracenando com ninguém menos que Carlos Gardel em El dia en que me quieras. Pois durante um intervalo das filmagens (em que fazia o papel de um jornaleiro), por trás dos cenários, exibiu suas habilidades ao bandoneon para o grande astro das ribaltas. Gardel gostou e pediu-lhe para tocar um tango, ao que Astorzito teria respondido não haver ainda entendido direito o tango. – Pois então, vaticinou Gardel, tão logo o entendas, não o largarás jamais! Nesta época, sempre incentivado pelo pai, teve aí os melhores professores de música clássica, a começar pelo húngaro Bela Wilde, que fora aluno de Rachmaninoff. Já adulto, foi a Paris estudar com Nadia Boulanger, considerada, na época, a melhor professora de música do mundo. Foi ela quem lhe disse: – Seu instrumento é o bandoneon! E durante todos esses anos de estudos clássicos, com participações em grandes orquestras, como a de Aníbal Troilo, teve sempre junto a si o apoio do pai, seu grande amigo. Quando ele se foi, em 1959, Piazzolla compôs, em sua homenagem, aquele que considerou seu melhor tango, Adiós Nonino. Nonino – diminuitivo de nono, avô em italiano –, era como seu filho carinhosamente o chamava. E quando escuto essa música, estou certo de que o adeus aí expresso não é aquele adeus dito a quem se vai para sempre. O adiós de Piazzolla, ao seu pai, significa que ele ficará para sempre no seu coração.

CARLOS HENRIQUE MENCACI / Os jovens precisam de oportunidade!

Ao ser eleito o novo presidente da Abres, perguntaram-me sobre as expectativas para os próximos dois anos. Estamos em um momento extremamente desafiador para o jovem no Brasil. Segundo o IBGE, no primeiro trimestre de 2020, antes de iniciar a Covid-19,  27,1% deles já estavam sem uma oportunidade de trabalho. Entretanto, eles são fundamentais para contribuir com a inovação nas empresas e a superação da crise! Por isso, devemos estimular os empresários: invistam no estágio e na formação dos mais novos!
Nesse cenário de pandemia e dificuldade econômica, a Abres tem um papel ainda mais decisivo em preservar a Lei do Estágio! Afinal, ela é extremamente moderna e eficaz para inserir estudantes no mundo corporativo e, ao mesmo tempo, mantê-los na escola, seja na universidade, no ensino médio ou técnico, com uma carga horária limitada em 6 diárias e 30 semanais.
O estágio proporciona renda, experiência, chance de efetivação, acaba com a evasão escolar e prepara a juventude para o futuro. Esse porvir está cada vez mais complicado devido à situação da saúde pública a qual gerou um volume altíssimo de desemprego e pobreza. Por isso, é preciso aumentar os níveis de estudo e pesquisa para as empresas e brasileiros conseguirem competir mundialmente, ou teremos um país focado em produzir commodities com altíssimo subemprego.
Contudo, quando falamos em educação, temos um triste cenário. Apenas 21% dos cidadãos brasileiros de 25 a 35 anos possuem ensino superior completo, de acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A média dos demais países analisados é de 44%! Necessitamos mudar essa realidade urgentemente.
Se você é empresário, faça a sua parte! Abra vagas de estágio e auxilie os educandos a iniciarem suas carreiras e se qualificarem. Ao contratar alunos, as corporações ainda têm como vantagem a isenção de tributos como INSS, FGTS, 13º salário e multas rescisórias. É o formato ideal para treinar e efetivar alguém sem vícios prévios de mercado.
Mesmo com o distanciamento social, as tecnologias atuais permitem realizar todo processo seletivo remotamente. Além disso,  os estagiários também podem fazer home office! Isso foi previsto pela Medida Provisória 927/2020:
“Art. 5º  – Fica permitida a adoção do regime de teletrabalho, trabalho remoto ou trabalho a distância para estagiários e aprendizes, nos termos do disposto neste Capítulo.” 
Portanto, vale a pena investir nesses talentos. A Abres está disposta a ajudar empresas, jovens e o país a superarem essas dificuldades e, cada vez mais, garantir um futuro brilhante a quem mais precisa!
Carlos Henrique Mencaci é presidente da Associação Brasileira de Estágios