JORGE BARCELLOS/Por que é falso o argumento do coronavírus como promotor da crise capitalista

Foi Branko Milanovic, em sua obra Desigualdade Global: Uma Nova Abordagem para a Era da Globalização (Harvard University Press, 2019) que apontou a falsidade do argumento da crise do capitalismo. Para ele, “a insatisfação ocidental com a globalização é erroneamente diagnosticada como insatisfação com o capitalismo, quando na verdade é o produto da distribuição desigual dos ganhos da globalização”.

Ele critica a avalanche de artigos e livros que apontam para a crise do capitalismo, literatura semelhante, em seu entendimento, a produzida sobre o fim da história, nos anos 90. O ponto é particularmente importante por dois motivos: primeiro, para afinar a argumentação de esquerda, que aposta na crise geral do capitalismo para justificar a luta social e o segundo, para compreender o contexto de emergência da pandemia do coronavírus, geralmente associado às condições de desenvolvimento e/ou crise capitalista em cada país.

Nossa hipótese é a de que, na linha do autor, em ambas as questões, à esquerda ao repetir o erro e menosprezar o problema dos efeitos da globalização, perde um argumento essencial para considerar a evolução da pandemia, distinta entre países onde o capitalismo esteja consolidado para países em desenvolvimento.

Essa inflexão permite, por exemplo, reavaliar o papel das elites empresariais e do Estado no combate à pandemia. É o caso da Suécia, onde Milanovic afirma que o setor privado emprega mais de 70% da força de trabalho e dos Estados Unidos, onde emprega 85%, ou da China, onde o setor privado organizado capitalisticamente produz 80% do valor agregado.

Nos três países citados, o capitalismo vai bem como modo de produção dominante e, em que pese a obvia exploração do trabalho já criticada pela esquerda, obviamente passou por diferentes processos de tomada de decisão em relação ao coronavírus. Por exemplo, tanto a Suécia quanto os Estados Unidos foram países em que a opção de isolamento horizontal não foi adotada imediatamente, retardando-se a decisão política ou preferindo-se o isolamento vertical com o argumento nefasto de não prejudicar a economia… capitalista! A opção é clara: entre os riscos financeiros e os riscos humanos, estes países preferem os últimos.

Por isso o exemplo da China é notável no combate a pandemia. Como uma economia de mercado que enfrentou o problema do vírus em primeiro lugar com uma politica de isolamento horizontal, hoje a China lucra os dividendos de uma economia que não perdeu seu lugar no cenário econômico mundial, ao contrário. Por esta razão, a esquerda e os defensores do isolamento radical precisam reelaborar seu discurso para enfatizar que isolamento e economia não são equidistantes, ao contrário daqueles que optaram pela economia e não pela defesa das vidas. Basta lembrar que os indicadores da Suécia chegaram a cerca de 311 pessoas mortas por milhão de habitantes, enquanto que países próximos que adotaram o isolamento horizontal, não passaram de 40 pessoas por milhão de habitantes. Quer dizer, economias que optaram pelo sacrifício da população, obtiveram uma pequena redução do PIB, incapaz de justificar a politica adotada. Da mesma, os Estados Unidos, que iniciaram o ataque tardiamente a pandemia, resultando em mais de três mil mortes por milhão de habitantes, hoje amargam a imposição de uma quarentena muito maior do que a que teriam realizado se tomassem a decisão no momento certo, e com isso, tem hoje um prejuízo maior.

As economias que optaram pelo sacrifício da sua população em vez do sacrifício da economia fracassaram ao menos em parte, nesse objetivo. Se for assim, a questão ainda é investigar como a pandemia a afeta a economia. No Brasil vê-se que os novos mercados surgidos com a globalização foram profundamente afetados pela pandemia, desde o Uber, Airbnb, bem como os mercados de trabalhadores precarizados. Esse processo não foi homogêneo, já que os mercados de tarefas de compras e entrega de comida foram dinamizados em valores que ainda precisam ser determinados, mas estão longe de serem insignificantes.

Se não produziram certo equilíbrio do sistema, a pandemia não foi responsável direta pelo fechamento econômico, já que a manutenção da abertura de mercados, farmácias, bancos e outros serviços novos como cuidados com animais de estimação (pets), etc., que em muitas cidades foram considerados essenciais, apontam para o fato de que mesmo em crise pandêmica foi possível à criação de novo capital. Aponta-se, por exemplo, áreas que inclusive aumentaram seus preços para níveis maiores do que os anteriores a pandemia, o que nas palavras do autor significa que “eles criam novo capital e, colocando um preço em coisas que não tinham antes, transformam meros bens (valor de uso) em mercadorias (valor de troca)”. A conclusão é que os novos mercados foram afetados de forma desigual pela pandemia, o que significa dizer que podemos andar menos de Uber, mas compensamos pedindo mais tele-entregas, o que significa que as perdas financeiras causadas pela pandemia podem encontrar um ponto de equilíbrio e até, reforçar certos mercados.

O problema da fragmentação dos novos mercados e sua demanda parcial é que a pandemia reforça a precarização da massa de trabalhadores através da exploração de fornecedores de serviços, como entregadores de pizza, produtos de mercados ao mesmo tempo em que estimula a produção de máscaras artesanais e escudos de proteção para satisfação das novas necessidades produzidas pelo isolamento, que reforçam, mais uma vez, ainda que indiretamente, a reprodução do mercado. Portanto, quando o governo enfatiza que é preciso terminar com o isolamento porque ele está matando os CNPJ, as empresas, o governo está sinalizando para um fato que pode ser questionado em parte, de que a pandemia é a causa da crise capitalista no país, o que, para o autor, confunde o problema real que é a distribuição desigual dos ganhos, que é o que existe de fato, e não crise do capitalismo. Não é exatamente isso que ocorre quando o Governo Federal, sob o pretexto de salvar a economia, libera milhões para os bancos privados? Ele não está novamente, redistribuindo de forma desigual a riqueza? Não é esse o problema que precisa ser apontado pela esquerda?

O argumento do autor é uma defesa do capitalismo, é claro, mas o faz de uma maneira útil à esquerda já que aponta para o fato de que a premissa da globalização, de que beneficiaria a todos, não foi cumprida, inclusive no Brasil. Ao contrário, apenas alguns países, como a China, se beneficiaram “É a diferença entre as expectativas recebidas pelas classes médias ocidentais e o crescimento das de baixa renda, bem como a queda na posição de renda global, que alimenta a insatisfação com a globalização. Isso é erroneamente diagnosticado como insatisfação com o capitalismo”. É claro que nós não estamos satisfeitos de jeito nenhum com o capitalismo, mas o que ocorre quando no Brasil, a politica de combate ao coronavírus evidencia esta desigualdade? Veja o exemplo do que aconteceu quando o país correu ao mercado mundial para obter insumos para o combate à pandemia. Logo ficou claro que o país estava em desvantagem em relação a outros países como os Estados Unidos, que, inclusive, chegou a piratear produtos comprados pelo Ministério da Saúde. As expectativas das classes médias, de acesso a respiradores, logo começaram a ruir pela insegurança da prestação de serviços médicos por ocasião de uma explosão do sistema, como ocorreu em Manaus (AM).

Há também outra questão. Milanovic afirma que a expansão da abordagem de mercado também transforma a política em uma atividade comercial. Quer dizer, as relações políticas passaram a ser mediada por trocas, e com isso, a política tornou-se mais corrupta “agora é considerado semelhante a qualquer outra atividade, pois mesmo que não se envolva em corrupção explícita durante seu mandato político, eles usam as conexões e o conhecimento adquiridos através da política para ganhar dinheiro posteriormente”. É por essa razão que Ministros de Estado que são desligados da função pública entram em período de quarentena e o autor afirma com razão que é este tipo de mercantilização que ampliou o desencanto com a política e com os políticos. No caso da pandemia, isso ficou evidente com o aceno de Jair Bolsonaro aos partidos e políticos do chamado Centrão, com o objetivo de garantir suas medidas anticientíficas como o fim do isolamento social e o uso de cloroquina pelo SUS. Além disso, Bolsonaro busca apoio para um projeto polêmico, que isenta as autoridades – o presidente, inclusive – de quaisquer responsabilidades por erros na condução da pandemia.

A contribuição de Milanovic assim é de levar a esquerda a considerar a importância da crise subsequente do coronavírus não como uma crise do capitalismo, mas uma crise “provocada pelos efeitos desiguais da globalização e pela expansão capitalista para áreas que tradicionalmente não eram consideradas aptas à comercialização”. Esse argumento, ainda que reforce o grande poder do capitalismo, põe em evidência a produção de uma colisão com valores, direitos e crenças que é o campo de atuação da esquerda, que deverá se colocar a questão de como evitar que outras esferas da vida sejam comercializadas ou lutar para que seja controlado o campo de expansão do capitalismo.

Jorge Barcellos é historiador, mestre e doutor em Educação. Autor de O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Editora Fi, 2017) e A impossibilidade do real: introdução ao pensamento de Jean Baudrillard (Editora Homo Plásticus, 2018). Mantém a página jorgebarcellos.pro.br.

 

 

ALDO REBELO/ Regularização fundiária: urgente e necessária

Aldo Rebelo*

Está em debate na Câmara dos Deputados projeto de lei que trata do destino de centenas de milhares de pequenos proprietários rurais, mas também de médios e grandes, bloqueados no acesso ao crédito e outros benefícios por não serem detentores plenos de suas propriedades.

O relator do projeto é o deputado Marcelo Ramos, representante do Amazonas, experiente e com espírito público e patriótico. O autor do projeto é o deputado Zé Silva, de Minas Gerais, agrônomo e produtor rural, de comprovada competência como legislador.

A ambição da lei é alcançar desde o pequeno proprietário de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, enredado nas dificuldades das normas para legalizar posses mansas e pacíficas oriundas de partilhas antigas e de heranças, até assentados da Amazônia e de outras regiões, e proprietários do interior do Pará que adquiriram áreas do governo em processo licitatório, receberam os contratos de alienação de terras públicas e até hoje não conseguiram legalizar suas glebas.

Recebi sugestões que encaminhei ao relator no sentido de tornar a lei mais justa e mais eficaz, principalmente a remoção de entraves burocráticos e armadilhas de redação passíveis de serem utilizadas pelos adversários dos agricultores nos órgãos de controle e na administração pública.

Aos que acham que a matéria não tem pressa, peço que se coloquem no lugar dos proprietários, privados do usufruto pleno de seus bens. Eles já foram prejudicados por muito tempo, esperaram, alguns por décadas, providências dos poderes que muito tardaram e não podem ficar à mercê daqueles que tiveram todo o tempo e pouco ou nada fizeram.

A regularização fundiária, como diz documento assinado por Hilário Gottselig, diretor de Políticas para a Agricultura Familiar e da Pesca da Secretaria de Agricultura e Pesca de Santa Catarina é “promotora da melhor distribuição da terra, do desenvolvimento socioeconômico da população beneficiada e, de forma mais ampla, compreendida como instrumento de fortalecimento da produção de alimentos e da agricultura familiar.”

Aldo Rebelo é jornalista, foi presidente da Câmara dos Deputados; ministro da Coordenação Política e Relações Institucionais; do Esporte; da Ciência e Tecnologia e Inovação e da Defesa nos governos Lula e Dilma

 

GERALDO HASSE/ Fora da casinha

Uma amiga brasileira que viveu 30 anos em NY me pergunta por que Bolsonaro não cai, se está aparentemente na corda bamba.

Respondo que o principal fio a sustentá-lo é a legitimidade dos votos que o elegeram até 2022. Em outras palavras, ele é sustentado por Dona Democracia da Silva.

Frágil mas respeitável, essa senhorinha tem a sustentá-la um monte de instituições: o STF, o Congresso, o MP, as Forças Armadas, a PF, todas de olho na Constituição.

Complementarmente, trabalham pela mesma causa a ABI, OAB, a Igreja, a Mídia e até os chamados Mercados, nome genérico das forças do Capital, naturalmente amplas, abrangentes, variáveis e volúveis, mas sempre focadas na estabilidade institucional.

Entonces, esclareço a amiga, o presidente só poderá ser impedido ou substituído caso incorra em crime comum ou de responsabilidade.

Ou se cometer algum ato que possa levá-lo a ser considerado inapto para o cargo. Por exemplo, “dar um tiro na cuca”, como sugeriu o general João Figueiredo, ao ser indicado para ocupar o cargo em que agora está seu ex-colega de farda, que foi excluído do Exército por comportamento “fora da casinha”.

E aqui chegamos ao tema recorrente nos últimos dias, quando todo mundo assiste às diatribes presidenciais contra ministros e outras autoridades, incluindo a Polícia Federal.

Há indícios de que JB teria envolvimento com grupos fora-da-lei, dirigidos por ex-militares, mas até agora não foram juntadas provas judiciais disso.

Supostamente, poderia estar implicado em crimes de extermínio como o da vereadora carioca Marielle Franco, mas esse caso, por alguma razão, parece insolúvel.

De concreto se sabe que, sem dúvida, fez apologia pública da tortura e do estupro, dois crimes hediondos, mas nada disso lhe rendeu algum problema. Até a Mídia agiu complacentemente em relação a esses temas.

Fora daí, no final das contas, tudo se resume a opiniões, desabafos, ataques, fofocas e manifestações – contra e a favor — que não surpreendem nem escandalizam ninguém, desde que se popularizou o emprego das diversas ferramentas de comunicação social via tecnologia da informação, a endeusada TI.

O uso dos computadores e dos telefones celulares equipados com câmara fotográfica e diversos aplicativos banalizou a denúncia, o escracho, o humor etc.

Tudo é passível de “viralizar”. Há nas redes sociais uma pandemia de estupidez.

Assim, chegamos a esse ponto: sem ser médico, o presidente se acredita no direito de dar orientação técnica na área da saúde em plena crise do vírus covid-19.

Mal comparando, isso equivale a colocar militares nas redações de jornais e revistas, rádios e TV com a ordem de “escrevam isso” ou “é proibido falar daquilo”.

Ex-tenente voluntarista, hoje orientado pelos filhos parlamentares e aconselhado por sabe-se lá que amigos, ele se mostra desesperado para dar ordens sem ter se preparado para tal.

É nitidamente movido por ímpetos juvenis. Dias atrás, a psicóloga Rita de Almeida escreveu no GNN que a idade emocional dele é 5 anos.

Agressivo, autoritário, neurótico, montou um séquito de fanáticos que põem em polvorosa cidadãos, eleitores, professores, cientistas, países vizinhos e distantes.

Por motivos óbvios para alguns, conta com o apoio de empresários, políticos e militares. Sem projeto explícito de governo, sua meta é reeleger-se em 2022.

Não faz sentido, mas é parte da Democracia.

LEMBRETE DE OCASIÃO

“Trate seu povo como trata a uma mulher”

Benito Mussolini, ditador italiano enforcado em 1945

CLAUBER CRUZ/ O movimento dos orgânicos não parou

*Clauber Cobi Cruz

Perder vidas para um vírus agressivo é o que pode acontecer de pior para a sociedade. No entanto, a principal marca dessa pandemia foi o isolamento social para conter o COVID-19 e preservar o setor de saúde.

De quarentena, os habitantes das grandes cidades retomaram uma atividade à qual há muito não se dedicavam: cozinhar! E foi cozinhando que se deram conta da importância dos alimentos para a manutenção da saúde.

Alimentar-se com produtos saudáveis e naturais é decisivo para ter imunidade e proteger-se de qualquer doença.

Essa conscientização provocou um aumento na demanda por frutas, legumes e verduras – a chamada sessão de FLV nas redes varejistas – justamente os produtos que abrem as portas do mercado de orgânicos aos novos consumidores.

Resultado: o setor não perdeu o vigor ao longo dessa crise. Ao contrário, a expectativa é a de manter as estimativas de crescimento na ordem de 10% em 2020.

Dependendo do cenário, essa previsão poderá inclusive ser ampliada. Nas sondagens com diversos players do setor de orgânicos, percebemos um claro otimismo, já que muitos sentiram um crescimento expressivo na procura por seus produtos durante o período de quarentena.

De fato, o consumo de alimentos orgânicos, livres de agrotóxicos e cultivados de forma a preservar seus atributos nutritivos e ambientais, está associado pelo consumidor com a manutenção de um estilo de vida natural e saudável.

Se de um lado a conscientização aumentou, de outro, não faltou poder aquisitivo para esse flerte com os produtos orgânicos.

Da mesma forma que se dispõe a pagar mais pelo prazer de, por exemplo, degustar uma cerveja artesanal, o consumidor percebeu que é viável manter alimentos orgânicos na sua dieta, para agregar mais valor em termos de saúde e bem-estar.

O crescimento do e-commerce nesse período de quarentena também jogou a favor dos orgânicos. Os serviços de entrega on-line, com fornecimento de cestas orgânicas, garantiram o abastecimento regular e trouxeram uma nova experiência de compra e venda.

Os produtores, de repente, viram-se diante da necessidade de ampliar sua presença no ambiente digital, encontrando formas de divulgar suas ofertas e solucionar os problemas de logística diferenciada.

Para o setor de orgânicos, a volta à normalidade terá um impacto mais positivo do que aquele sentido por outros setores.

Sem aeronaves no pátio esperando para decolar, sem taxas de ocupação com que se preocupar, os produtores orgânicos vão se beneficiar da conquista de novos consumidores, que experimentaram e aprovaram seus produtos. Essa conquista não tem volta.

Inserido na dinâmica do agronegócio, o setor de orgânicos tende a seguir em sua trajetória de crescimento. Apesar da baixa previsibilidade que a carência de dados abrangentes ainda nos impõe, esse otimismo é reflexo do aumento contínuo que vínhamos percebendo no número de unidades produtivas cadastradas no MAPA.

Além disso, o espaço que os orgânicos vêm ocupando nas redes varejistas de todo o país é cada vez maior. O potencial para aumentar a produção é enorme, enquanto que o número de consumidores dispostos a consumir mais orgânicos só aumenta.

Diante da crise provocada pelo COVID-19, o setor de orgânicos não só está conseguindo se manter, como também é um dos poucos com expectativa de crescimento e aumento de produção.

Produtores, varejistas e prestadores de serviço, confinados nesse período de quarentena, estão aproveitando muito bem as oportunidades para aprender, planejar e inovar.

Clauber Cobi Cruz é diretor da Organis, entidade setorial dos orgânicos.

GERALDO HASSE/ O grande intervalo

Ninguém estava preparado para parar por um período tão longo

O vírus de Wuhan paralisou o mundo dito civilizado, colocando-nos num intervalo que se vai prolongando numa espiral sem fim.

Para nós brasileiros a quarentena começou em meados de março e já se vislumbra que o recesso de atividades escolares, comerciais, industriais e de serviços se estenderá até o inicio de setembro.

Muita gente não se conforma e sai pra rua disposta a trabalhar, segurar o emprego e ganhar a vida, mas a maioria não tem dinheiro para o consumo, de modo que as coisas tendem a ficar nesse vai-não vai, pesando nas costas de quem já vivia com o mínimo ou menos do que isso.

Estamos numa viagem sem prazo de término definido. Os otimistas torcem por um remédio, nem que seja uma panacéia temporária, mas sabem que a solução é uma vacina que pode surgir, na melhor das hipóteses, no primeiro semestre de 2021.

Enquanto isso, não é razoável pensar que se deve retomar todas as atividades, recolocando nos trilhos, a todo vapor, o trem da Economia. Pelo menos por um tempo, a Economia não é a prioridade. Além disso, a retomada haverá de ser lenta.

A crise mundial desencadeada pela pandemia evidenciou a importância da Saúde como item central da vida humana, desde que se ponha ao seu lado a Educação como fonte dos conhecimentos necessários para equacionar problemas sanitários da gravidade de uma virose como essa que aí está.

Dentro do conceito amplo de Saúde se alinham inevitavelmente a Higiene e o Saneamento; e faz parte da Educação, no mínimo, a Ciência, na qual se encaixa, ainda e sempre, a Ecologia. O resto é complementar.

Ganhar dinheiro, comprar coisas, construir patrimônio – tudo isso virou secundário. Estamos em processo de adaptação sem saber exatamente o que virá depois do grande intervalo forçado a que estamos submetidos.

O custo do intervalo é incomensurável e só pode ser sanado por uma aliança entre recursos públicos e privados, tudo isso com alcance internacional. Comprar briga com outros países, nesse momento, é dar tiros nos pés.

Sem Saúde não adianta forcejar. E, basicamente ainda, precisamos de Educação/Ciência para penetrar no labirinto e desvendar os mistérios que a Natureza nos apresenta. E que não nos falte Segurança para chegar são e salvos ao outro lado do rio.

LEMBRETE DE OCASIÃO

“Do dito ao feito hai muito eito”

Fructuoso Rivera (1785-1854), primeiro presidente do Uruguai

 

VILSON ROMERO/Cala boca já morreu

A insubordinação antes atribuída aos adolescentes e crianças quando admoestados, em priscas eras, ao se intrometerem em “conversas de adultos” transmutou-se em necessidade de alerta ao mandatário maior da Nação: “Cala a boca, já morreu, presidente!”.

E por que isto? Porque os vitupérios e vociferações presidenciais têm se sucedido em profusão no circo matinal dos horrores montado diariamente na saída do Palácio da Alvorada, transmitido ao vivo pelas redes sociais.

Mais até do que no período de escuridão, entre 1964 e 1985, quando jornalistas foram censurados, perseguidos, presos, torturados e até assassinados, nos plúmbeos tempos atuais, os profissionais de comunicação têm sido insultados, atacados e ofendidos, quando não agredidos, diuturnamente, nas redes e nas ruas.

No Dia Internacional da Liberdade de Imprensa, em 3 de maio, jornalistas e auxiliares sofreram ataques físicos ao cobrirem atos contra o isolamento social em razão da atual pandemia defronte outro palácio: o do Planalto.

Segundo a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), o presidente da República, no ano passado, atacou a imprensa 116 vezes em postagens nas redes sociais, pronunciamentos e entrevistas.

Defronte o Alvorada, a enxurrada de sandices se sucederam ao longos dos 17 meses de mandato: “Você está falando da tua mãe?”; “Você tem uma cara de homossexual terrível”; “Pergunta pra tua mãe o comprovante que ela deu para o teu pai”, “Vocês são uma raça em extinção”. “Ela [Patrícia Mello, da Folha de S.Paulo] queria um furo. Ela queria dar um furo a qualquer preço contra mim”; “Imprensa canalha”, “Globolixo”, etc.

O comandante em chefe das Forças Armadas assim se refere aos comunicadores, além de promover o boicote oficial à imprensa, ameaçando com o fim da publicidade oficial, a restrição às publicações contábeis, a não renovação das concessões, entre outras manifestações virulentas de sua ojeriza à vigilância imparcial da imprensa e às críticas formuladas pelos comunicadores nas diversas mídias.

Um festival de violência que atenta contra tudo o que possa se imaginar de obediência aos preceitos constitucionais e ordenamentos internacionais acerca das liberdades de imprensa e de expressão.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem é taxativa em seu artigo 19: “Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.

A Declaração de Chapultepec, de 1994, reafirma em seu inciso I: “Não há pessoas nem sociedades livres sem liberdade de expressão e de imprensa. O exercício dessa não é uma concessão das autoridades, é um direito inalienável do povo.”

Apesar de bradar que “eu sou a Constituição”, o mandatário não respeita o que está consignado nos artigos 5º. e 220 da Carta Magna, garantindo plena liberdade de imprensa cá em Pindorama. Em 5 de maio, o presidente, ao ser questionado por jornalistas sobre mudanças na Polícia Federal, em duas oportunidades, defronte o “cercadinho” na saída do Alvorada, vituperou: “Cala a boca, não perguntei nada!”.

Ao tentar calar e desacreditar a imprensa, o político eleito com mais de 57 milhões de votos coloca em xeque sua biografia, desacredita seu governo, ameaça a democracia e confronta inclusive parcela significativa daqueles que o elegeram.

A imprensa não é nem nunca será massa de manobra, nem deve informar ao bel-prazer do governante de plantão ou do inquilino de ocasião do Palácio do Planalto. A imprensa é pilar fundamental do Estado Democrático de Direito. É a trincheira da boa informação e repositório da cidadania. Cala a boca já morreu, presidente!

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(*) jornalista, membro da Comissão de Direitos Humanos e Liberdade de Imprensa da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
 

 

PATRUS ANANIAS/ Tempos de crise, tempos de esperança

  • Vivemos um momento histórico mundial que nos desafia. Fiquemos com a difícil realidade brasileira. Além do coronavírus e da fragilidade assustadora em que se encontra o sistema público de saúde e outras políticas públicas voltadas para a defesa e promoção da vida, temos um presidente da República que celebra a morte, o ódio, a violência, a ditadura.

Trabalho um cenário, existem outros é claro, segundo o qual Bolsonaro não é um presidente tão fragilizado como sugerem algumas pesquisas. Torço muito para que minha análise esteja errada, mas não posso silenciar as inquietações que me assaltam. Cheguei a associar, no passado, a eleição espúria de Bolsonaro às eleições de Jânio Quadros e Fernando Collor de Melo. Tenho hoje sérias dúvidas.

Bolsonaro, ao contrário dos outros mencionados, não parece um ponto fora da curva. Jânio e Collor navegaram ao sabor das ondas, mas não tinham apoios consolidados. Bolsonaro tem apoiadores. Eles estão presentes nas forças políticas e econômicas conservadoras, saudosas da ditadura, formadas pela ideologia neoliberal e o pensamento autoritário.

Bolsonaro entrou firme nos 30% que formam a direita do nosso cenário político e dentro dela construiu um grupo intolerante e sectário de extrema-direita, pronto para as provocações e confrontos que podem se desdobrar em ações violentas. A rigor, já estão se manifestando.

Mais do que o apoio, Bolsonaro está submetendo as Forças Armadas, especialmente o Exército. Os recursos e cargos liberados parece que não foram em vão.

Dentro deste contexto adverso, considero que todas as iniciativas que visam se contrapor ao Bolsonaro são muito importantes – ações judiciais, CPIs, impeachment, novas eleições –, importantíssimas, necessárias, mas não suficientes.

Não se trata de balançar o galho e Bolsonaro cai. Torço para que isto aconteça, e ajudo a balançar o galho. E se ele cair? Quem vai ocupar o galho? Devemos trabalhar, sem perdermos a dimensão do presente, cenários mais longos e difíceis. Além dos apoios e cumplicidade que apontamos, Bolsonaro busca o apoio político do Centrão, que pode lhe dar maioria no Congresso Nacional. Penso que devemos, trabalhando diferentes cenários, buscar ações de curto, médio e longo prazo.

As de curto prazo estão bem encaminhadas no Congresso, junto ao Poder Judiciário, nos espaços possíveis das mídias. As ações de médio e longo prazo referem-se a iniciativas que demandam cada vez mais reflexão e estratégia. Como retomar, aprofundar e ampliar o nosso diálogo com a sociedade? Os 30% que se colocam no campo da esquerda ou centro-esquerda e os 40% que oscilam? Aqui vivemos um grande desafio – reaprendermos nossa escuta, reelaborarmos uma pedagogia política.

Como confrontar o poder dos meios de comunicação? As fake-news? O sentimento de pressa e urgência das pessoas? A sedução dos celulares? As dificuldades que a violência e o crime organizado colocam no diálogo com as comunidades mais pobres? O fascínio das soluções de curto prazo, onde aparecem as soluções ligadas à violência e à ditadura?

O outro desafio, e os dois se articulam e complementam, diz respeito ao que nós, Partido dos Trabalhadores, forças políticas e sociais à esquerda, centro-esquerda, o nosso campo democrático popular, queremos para o Brasil. Qual é o nosso projeto de nação? Onde queremos chegar no processo emancipatório nacional?

Vivemos a partir da vitória de Lula, em 2002, momentos inesquecíveis, políticas públicas e ações vigorosas, sempre presentes em nossas lembranças e corações, que mudaram a vida de milhões e milhões de brasileiras e brasileiros pobres. Muitas dessas boas políticas públicas e obras sociais deverão ser retomadas, aperfeiçoadas e ampliadas, mas temos desafios novos. Como estabelecer efetivamente o primado da vida? Como subordinar os interesses econômicos, sempre muito sedutores e poderosos, o direito de propriedade, a livre iniciativa, a economia de mercado, ao valor maior que deve coesionar a sociedade?

Como aplicar, no plano do direito e dos fatos, o princípio da função social da propriedade e das riquezas, subordinando-as ao direito à vida, ao bem comum, ao projeto nacional? Como adequá-las à preservação da natureza e das fontes da vida? Como acertar os recursos que garantem os direitos sociais básicos, educação de qualidade em todos os níveis, os cuidados preventivos e curativos da saúde, a segurança alimentar, o saneamento básico, a assistência social, o trabalho decente, a moradia digna, o meio ambiente saudável?

Como renovar as leis trabalhistas diante das mudanças no universo do trabalho, que já se apresentam tão concretas, garantindo a defesa daquele que trabalha e não é o dono efetivo do negócio, ainda que precise utilizar seus próprios bens para exercer os serviços?

Como financiar as obras necessárias de infraestrutura? De que maneira construir políticas públicas mais robustas, amparadas pelas bases de dados que tão arduamente estruturamos para entender nosso país e pelos profissionais capazes de fazer a leitura acurada da realidade, tantos deles formados durante nossos governos do Partido dos Trabalhadores?

Penso que na perspectiva desse projeto nacional, de afirmação da soberania popular, das escolhas das prioridades, devemos retomar as práticas da democracia participativa – planejamento e orçamento participativos – vinculados ao desenvolvimento regional. Estes são temas sempre presentes em nossas reflexões e que já trabalhamos em outros textos.

Creio que devemos nos ater a essas e tantas outras questões que lhe são correlatas, refletirmos sobre elas, abrirmos a partir delas um processo crescente de interlocução com a sociedade brasileira, especialmente com os pobres.

Devemos buscar novamente o poder, sabendo dos desafios que ele hoje nos coloca. Não o poder pelo poder. O poder assentado na soberania popular e que nos possibilite construirmos o projeto de nação que priorize a vida e os direitos fundamentais para os atuais 210 milhões de brasileiras e brasileiros e tantos quantos vierem no futuro. Compromisso inarredável com as gerações presentes e futuras desta grande e querida pátria brasileira.

Pelas novas condições de cuidado com a saúde que se apresentam, temos agora uma nova situação: cuidar de todos, sem esquecer ninguém, se tornou fundamental, do modo mais concreto, para manter a saúde de cada família e de cada um. É um novo mundo, realidade inesperada.

Vamos juntos, solidários, enfrentar os desafios presentes e construirmos os alicerces do nosso projeto nacional brasileiro. Não vamos edificar a nossa casa na areia. Lembremos os ensinamentos de Jesus, que começaram de baixo e atravessam os tempos e chegam hoje ao Papa Francisco.

Patrus Ananias, deputado federal (PT/MG), ex-Ministro do Desenvolvimento Agrário, no governo Dilma Rousseff; ex-ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, no governo Lula; ex-prefeito de Belo Horizonte; professor da Faculdade de Direito da  Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

 

 

VILSON ROMERO/ A geladeira dos parasitas

Vilson Antonio Romero (*)

Em julho de 2017, a Lei n° 13.464 trazia o resultado de meses de atuação da Mesa de Negociação entre servidores e governo federal, com uma parcial recuperação de perdas salariais que foi parcelada até janeiro de 2019.

Portanto, o salário dos servidores da União se encontra congelado desde então. O governo e o Congresso ameaçam com muito mais, num evidente estrangulamento daquela parcela da população que ainda permanece em condições equilibradas para manter os níveis de consumo e por consequência minimizar a crise.

O estudo Três Décadas de Evolução do Funcionalismo Público no Brasil (1986-2017), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), revela que, em 32 anos, o funcionalismo público ampliou 123%, com o número vínculos subindo de 5,1 milhões para 11,4 milhões. Mesmo com o avanço, a máquina pública nacional é menor que a média dos países desenvolvidos. Cerca de 12,1% da população ocupada trabalhava no setor público em 2017, menos do que os 18% de média das nações da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e até do que países de tradição liberal como os EUA (15,2%) e a Grã-Bretanha (16,4%).

Cabe ressaltar que apenas um em cada dez servidores públicos tem vínculo na União. O aumento em quantitativo de funcionários se verificou com mais expressão nos municípios, onde houve um crescimento de 276%, passando de 1,7 milhão para 6,5 milhões, enquanto aumentou em 50% na esfera estadual e em 28% na esfera federal, incluindo civis e militares. No caso dos municípios, diz o estudo, 40% das ocupações correspondem aos profissionais dos serviços de educação ou saúde como professores, médicos, enfermeiros e agentes de saúde.

Por outro lado, a sociedade, com respaldo do Congresso, foi muito ousada e vanguardista ao defender na Constituição de 1988 que a “saúde é direito de todos e dever do Estado”.

A crise da Covid-19 chegou como um tsunami que exige ação coletiva dos três níveis de governos, da iniciativa privada, das organizações não governamentais (ONGs) e dos cidadãos. São nesses momentos que se sobressaem os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS): universalidade, integridade e equidade.

Na crise, volta a discussão sobre o papel do Estado e de seus funcionários, em especial das atividades essenciais, como a da saúde.

Nos últimos tempos, os servidores voltaram a ser alvos. Autoridade federais os estereotipam como “parasitas” e em recentes manifestações exageraram no vernáculo ao dizerem que o funcionário “não vai ficar em casa trancado com geladeira cheia, assistindo à crise enquanto milhões de brasileiros estão perdendo emprego”.

O próprio Banco Mundial atesta que o Brasil gasta o equivalente a cerca de 13,1% do PIB com salários do funcionalismo público, incluindo todas as esferas e poderes, abaixo de cerca de 15 nações que investem muito mais neste setor para ter qualidade no atendimento à sociedade.

Numa crise como a atual, há profissionais de muitas áreas indispensáveis na linha de frente. No serviço público ou na iniciativa privada, o que não faltam são pessoas comprometidas com o futuro do país.

Além de serem tachados de “parasitas”, agora autoridades federais acusam ou “culpam” o funcionalismo de ainda ter recursos para manter a roda da economia girando, adquirindo produtos e abastecendo sua geladeira, enquanto 7 a 8% da população ainda não tem nem o eletrodoméstico.

Com geladeira cheia ou não, estender a mão a quem precisa faz parte da índole do povo e do conjunto dos servidores públicos, principalmente a grande maioria que ganha pouco mais de um salário mínimo, incluindo horas extras e adicional noturno.

Os “parasitas” são também homens e mulheres, chefes de família que já estão com salários congelados desde 2018, na União. Em muitos estados não viram ainda a cor da gratificação natalina de 2018 e 2019.

Inequivocamente, os servidores já estão dando sua cota de sacrifício e, paradoxalmente, estão à frente da luta contra a pandemia. São os profissionais de saúde, os pesquisadores, os servidores de Assistência Social e Segurança Pública que estão na retaguarda. São os auditores da Receita que estão nos portos e aeroportos desembaraçando insumos e equipamentos que vão ajudar na crise sanitária, são os diplomatas tentando repatriar milhares de brasileiros, enfim, diversas áreas em plena atividade. São os servidores da segurança pública que contribuem para manter a normalidade apesar das tensões naturais decorrentes do isolamento social.

As recentes declarações denegridoras da categoria por parte de autoridades federais são falácias, impropérios e destemperanças que nada contribuem para o clima de unidade e harmonia dos brasileiros para o enfrentamento da pandemia.

Os mais de 11 milhões de servidores públicos, na União, Estados, Distrito Federal e municípios, têm entregue o melhor de si, tanto em forma presencial como em “home office” dentro das prerrogativas de cada cargo e função. E uma parcela expressiva cada vez mais tem consciência de seu dever, convalidando a condição de que não são servidores de governo e sim do Estado brasileiro.

E graças à sua dedicação, podem repudiar a pecha malfadada, mentirosa e despropositada de “parasitas” e, com o suor de seu rosto e trabalho, manter a geladeira “relativamente cheia”. Torçamos todos para a pandemia acabar logo, rezando para que os cidadãos deem respostas positivas ao #ficaemcasa.

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(*) jornalista, auditor fiscal aposentado, vilsonromero@yahoo.com.br, fone/zap 51-981174488

JORGE BARCELLOS/ Não é necropolítica, é necroeconomia!

O afrouxamento do isolamento em várias cidades mostra que o verdadeiro soberano é o capital, que revela sua capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Achille Mbembe define a soberania em termos de poder, mas as condições práticas hoje de exercer o poder de matar não estão na política, mas estão no capital financeiro, no poder exercido por empresários e todos aqueles que em sua capacidade de afetar as políticas governamentais em seu desejo da volta ao trabalho, exercem o poder de matar. Enquanto correm a imprensa com seus artigos exigindo que parte da sociedade volte ao trabalho, veem editadas medidas de liberalidade – só em Porto Alegre, foram autorizadas a funcionar lojas de venda de chocolate – produzem ali adiante o assassinato de trabalhadores. Não é apenas guerra contra o vírus que estamos vivendo, é a guerra contra os interesses de mercado que se quer soberano, como foi à guerra contra o poder dos reis do século XVIII “a guerra, afinal, é tanto um meio de alcançar a soberania como uma forma de exercer o direito de matar”, diz Mbembe. Agora, não é a política que é uma forma de guerra, é a economia que assume o lugar de decidir a vida e a morte de trabalhadores.

Sabe-se que na epidemia brasileira as vítimas do coronavírus não são apenas os idosos, mas trabalhadores em sua melhor faixa produtiva, jovens e adultos. As filas junto aos bancos, as aglomerações nos parques e tudo aquilo que desrespeita as medidas de isolamento irão se tornar nossos campos de morte, campos de extermínio ao ar livre, equivalente às avessas dos campos de concentração. O que os empresários querem é a suspensão do estado de direito, direito à vida, a proposta de volta ao trabalho de frações de idade é a disputa entre as formas de soberania sanitária e econômica, por isso trata-se de um acordo onde as peças estão viciadas: os empresários sabem na comodidade de seus lares, são os operários que estão em exposição permanente e mortal.

No paradigma hegeliano, diz Mbembe, a morte é resultado de ações voluntárias, de “riscos conscientemente assumidos pelo sujeito”. Somos sujeitos porque enfrentamos a morte, o contrário daqueles que nos expõem ao vírus e nos tornam objetos, retirando nossa humanidade. Por isso ficar em casa frente à pandemia é um ato humano, não se trata mais da politica como poder de morte de quem vive a vida humana, a economia quer assumir esse lugar, definir de forma soberana arriscar a totalidade de uma vida, e por isso, se torna assim, desumana! Foi preciso a morte provocada pelo vírus para encararmos a verdade do capital: para ele, a vida é só utilidade, o limite da morte foi abandonado pelo empresariado, pelo capital financeiro, enquanto que o trabalhador respeita a morte, não há limites para a economia.

O afrouxamento das regras de isolamento é o ponto de início do sacrifício de milhares de trabalhadores, e por isso é um excesso, uma “antieconômia” que os empresários ignoram porque trará prejuízos maiores na segunda onda do vírus que já se anuncia.  A economia opera na base de uma divisão entre os que podem viver e morrer, a facilidade para o capital está no fato de que as elites não vivenciam os efeitos de suas decisões: a morte de seus trabalhadores é visto como o seu dano colateral, no sentido dado pelo sociólogo Zygmunt Bauman. Não é mais o estado que detém funções assassinas: com a pandemia, é a economia “a condição para aceitabilidade do fazer morrer”.

O empresariado é este estado nazista dentro do estado democrático de direito exercendo seu direito de matar, expondo seus trabalhadores à morte, combinando as características de um estado assassino, racista e suicidário como sugere o filósofo Wladimir Safatle. Não é a fusão da guerra com a política, é a fusão da guerra com a economia, pois a exposição do Outro no trabalho é essencial para o lucro, reduzido o trabalhador a lógica impessoal da racionalidade instrumental. A racionalidade econômica passa pela imposição do risco a morte, capacidade de expor ao risco a fim de obter lucro. Para quê câmaras de gás e fornos se basta expor os trabalhadores ao ar, ao trabalho para fazer a completa desumanização e produção de morte baseado na falsa premissa racional de que alguns podem trabalhar?

Na Revolução Francesa, a passagem da execução pela força para a execução pela guilhotina foi repleta de significados. O vírus é a nova guilhotina que mantém as características do enforcamento. Ela é democrática como a guilhotina que estendeu a prerrogativa da execução dos pobres para todos os cidadãos, mas impõe uma morte humilhante como a do enforcamento, a morte solitária sem a presença de seus entes queridos, o enterramento de massa e por isso cruel. Chamar ao trabalho é uma forma civilizada de matar, um grande número de pessoas num curto espaço de tempo, prova da insensibilidade das classes abastadas, e, portanto, atualização da fusão da razão com o terror da Revolução Francesa.

A falsa verdade de que “só os velhos morrem”, e por isso, libertemos os jovens para o trabalho, esconde a verdade do conflito de interesses entre o capital e o Estado, entre quem deve viver e quem podem morrer. Qualquer narrativa que se construa com base no rompimento do isolamento radical está claramente propondo uma experimentação bio-econômica e não biopolítica, como diz Foucault. Perda de direitos sobre o corpo, perda da casa como lugar de proteção ao risco, morte social pela expulsão da sua humanidade, não é o retorno do plantation por outros meios, onde o escravo pertence ao senhor? Nesse apelo ao trabalho, somos todos escravos, propriedades, temos valor, respondemos a necessidade de lucro dos empresários. Todos os que foram as ruas em passeata chamar ao trabalho são o equivalente do capataz, comportando-se de forma descontrolada no espaço público, o discurso do desemprego é o equivalente das chibatadas do senhor no escravo para impor o terror, disputa entre a liberdade de propriedade e liberdade da pessoa, imposição comercial de quem se acredita proprietário do trabalho e da vida do trabalhador.

Quando o direito de fazer a guerra, de tomar a vida, se expande do estado para a economia, o que acontece? O direito de matar ou negociar a vida, privilégios do estado como apontado por Foucault cede espaço à ideia de que a fronteira do estado é inferior às fronteiras econômicas. A economia não reconhece nenhuma autoridade superior a sua dentro das fronteiras de estado e por isso o relaxamento do isolamento proposto pelo Ministro da Saúde em sua negociação para permanecer no cargo ou as iniciativas de relaxamento de prefeitos de norte a sul do país é apenas o modo civilizado de matar para que a economia atinja seus objetivos, prova de que a necropolítica perde seu lugar para a necroeconomia, que a biopolítica se transforma em bio-economia: o capital sabe que, frente aos mortos, tem a disponibilidade de um exército industrial de reserva para substitui-los, mão de obra renovável, como se o empresariado tivesse o direito divino de existir e os trabalhadores não.

“A Faixa de Gaza é aqui!” prognóstico fatal das múltiplas separações e limites que é preciso impor aos cidadãos pelo isolamento radical, limites que precisam serem impostos pelo estado sob vigilância e controle “não ir às praias”, “não aglomerar nas ruas”, tudo é o novo estimulo a reclusão, somos as novas gated communities, praticando a rápida circulação. Agora, os campos de batalha estão nas filas sem distanciamento dos mercados e bancos, nas lojas abertas e exposição de seus trabalhadores a um vírus que não respeita divisões de classe social. O estado de sitio deixa de ser uma instituição militar para se tornar econômica, a obrigação de trabalhar é essa máquina da necroeconomia ”As guerras da época da globalização, assim, visam forçar o inimigo a submissão, independentemente de consequências imediatas, efeitos secundários e danos colaterais das ações militares”, diz Mbembe. Não é exatamente assim que é tratado o trabalhador que se recusa a trabalhar, não é visto como inimigo que é preciso ser combatido, submetido nessa guerra, sua morte não é vista como “dano colateral”? Na era da mobilidade global, impõe-se a imobilidade planetária, já que “a própria coerção tornou-se produto do mercado”.

Jorge Barcellos é historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. Autor de O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Editora Fi, 2017) e A impossibilidade do real: introdução ao pensamento de Jean Baudrillard (Editora Homo Plásticus, 2018), é colaborador de Sul21, Le Monde Diplomatique Brasil, Jornal Já e do jornal O Estado de Direito. Mantém a página jorgebarcellos.pro.br.

 

 

 

VILSON ROMERO/ O jabuti e as raposas no CARF

Vilson Antonio Romero (*)

Entre 2017 e 2020, cerca de R$ 110 bilhões em créditos tributários federais foram mantidos como devidos em razão de decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

O Carf, criado pela Lei nº 11.941, de 27 de maio de 2009, é um tribunal administrativo, paritário, integrado por representantes da Fazenda Nacional e dos contribuintes, vinculado ao Ministério da Economia, sendo responsável pelo julgamento em grau recursal de irresignações de contribuintes relativas aos tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil.

É tamanha a importância dessa instância que, conforme dados de fevereiro de 2019, sob sua análise estavam 122.371 processos, correspondendo a R$ 603,77 bilhões em créditos tributários, quase metade de um ano de arrecadação federal.

O Carf, atualmente, é integrado por mais de uma centena de conselheiros, metade Auditores Fiscais da Receita Federal e outra metade por representantes de confederações empresariais e entidades de classe, representando os contribuintes. Em situações de empate no julgamento de demandas tributárias, o voto de qualidade cabia ao representante do governo.

Essa regra existia como forma de equalização do litígio tributário pois, em caso de derrota, os contribuintes sempre e ainda poderiam ir ao Poder Judiciário para contestar a exigência, possibilidade inexistente para a Fazenda Pública que, em caso de insucesso, não pode judicializar a questão.

Pois isto mudou com a sanção presidencial e publicação no Diário Oficial de 14 de abril da Lei nº 13.988/20. Contrariando posições inclusive de renomados advogados tributaristas e recomendações do ministro da Justiça e do procurador-geral da República, no texto resultante da conversão da Medida Provisória (MP) 899/2019, a caneta presidencial permitiu prosperar um “jabuti” (dispositivo alheio à matéria) que transfere o voto de qualidade dos representantes da Fazenda para os representantes dos contribuintes.

Com essa mudança, perde o Estado em inúmeras frentes, por exemplo, no seu poder julgador e na palavra final na interpretação da legislação.

É bom registrar que o Carf decide e corre grande risco nesse momento com análise de autuações de grande interesse da sociedade, como são as oriundas de operações como a Lava Jato e outras.

Na prática, serão as raposas (grandes empresas autuadas e com fortes bancas de advocacia tributária) tomando conta do galinheiro.

Há uma perplexidade e indignação generalizada entre todos os que se dedicam a defender a boa administração dos recursos públicos e a moralidade administrativa.

Se não houver medidas judiciais e legislativas urgentes corrigindo esse descalabro, teremos inequivocamente uma situação de enfraquecimento do combate à sonegação e à corrupção, bem como a inexorável possibilidade de gerar prejuízos bilionários ao erário público.

(*) auditor fiscal aposentado e jornalista. vilsonromero@yahoo.com.br