Aldo Rebelo
Conta o historiador grego Heródoto, em seu livro História, que depois da conquista da Lídia pelos persas, os soldados do imperador Ciro promoviam o saque de Sardis, capital do reino conquistado, quando Creso, o rei derrotado e prisioneiro censurou Ciro por permitir o roubo na cidade ocupada.
Creso fez ver a Ciro que não eram os bens de Creso que estavam sendo assaltados, pois a capital de seu país não mais lhe pertencia depois da derrota; mas as propriedades do próprio Ciro é que estavam sendo roubadas, uma vez que este acabara de conquistar a cidade.
Impressionado pela inteligente observação de Creso, Ciro ordenou que todos os bens saqueados fossem confiscados a pretexto de separar a parte destinada para a oferenda aos deuses.
A diplomacia brasileira vem sendo saqueada pelo atual governo em sua história, memória e tradições. Mas o assalto não atinge as realizações diplomáticas de um José Bonifácio ou de um Floriano Peixoto, para falar da diplomacia do passado; nem mesmo as realizações diplomáticas de Geisel, Figueiredo, ou dos governos civis de Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique, Lula, Dilma Rousseff e Michel Temer.
A diplomacia de Bolsonaro assalta o próprio governo Bolsonaro ao subtrair dele prestígio, autoridade e reserva de poder nas complexas negociações internacionais.
O acúmulo de erros, gafes e vexames do Itamaraty expõem o governo brasileiro na conturbada arena internacional.
O manual de erros da atual política externa vem sendo preenchido sem falhas ou lacunas:
1. A política externa divide o País quando deveria buscar a coesão social e a unidade nacional em torno dela como requisito para fazê-la forte internamente e respeitada externamente.
2. A política externa fabrica e multiplica conflitos com os vizinhos quando deveria buscar a mediação para administrar nossas próprias contradições com eles e as diferenças entre eles.
3. Desprovida da coesão nacional e fragilizada pelos conflitos e desconfiança dos vizinhos, a diplomacia brasileira tornou-se importadora das rivalidades geopolíticas das grandes potências no mundo e aliada incondicional de um dos polos do conflito, arrastando assim as nefastas consequências antinacionais produzidas por essa orientação.
A diplomacia de Bolsonaro assalta o prestígio de seu próprio governo e fragiliza suas ações na arena internacional.
Aldo Rebelo é jornalista, foi presidente da Câmara dos Deputados; ministro da Coordenação Política e Relações Institucionais; do Esporte; da Ciência e Tecnologia e Inovação e da Defesa nos governos Lula e Dilma.
Autor: Análise & Opinião
ELMAR BONES/ O crescimento sempre adiado, as reformas nunca suficientes
O comentário de Valdo Cruz, no G1, sobre o pífio desempenho da economia brasileira em 2019, agora revelado, é texto exemplar da versão governista para o malogro.
Ele diz em síntese: a frustração do crescimento ocorre porque a dose do remédio é insuficiente. É preciso aumentar a dose, o ajuste.
Não cogita que o remédio pode estar errado, resultado de um diagnóstico errado e que o tratamento pode matar o doente.
Eis o que diz o abalizado jornalista:
“A prévia do Produto Interno Bruto (PIB) de 2019 divulgada nesta sexta-feira (14) pelo Banco Central, registrando alta de 0,89%, aponta dúvidas sobre a capacidade de recuperação da economia brasileira depois da severa recessão de 2015 e 2016.
Se o índice for confirmado pelo dado oficial do IBGE, mostrará que o Brasil está sem tração para um crescimento mais forte e precisa de ajustes mais profundos para voltar a ter um ritmo mais veloz.
Na avaliação de assessores presidenciais, o recado é claro.
Primeiro, é necessário seguir com as reformas estruturais. A da Previdência foi importante, mas não suficiente para garantir a retomada dos investimentos.
Segundo, o governo precisa acelerar seu ajuste fiscal para abrir espaço para o investimento público, principalmente em infraestrutura e saneamento, além de vitaminar programas sociais.
No ano passado, a frustração pelo crescimento ocorreu por fatores fora do controle da equipe econômica, como o acidente da Vale em Brumadinho (MG), que afetou a mineração, e a recessão econômica na Argentina.
Se esses eventos não tivessem ocorrido, o país poderia ter um crescimento adicional de 0,7 ponto percentual.
Mas um outro fator poderia ser manejado pelo governo, a votação da reforma da Previdência Social.
Os conflitos entre o Palácio do Planalto e o Congresso no primeiro semestre do ano passado atrasaram a votação da mudança nas regras da aposentadoria no país.
Com isso, o ânimo dos investidores foi afetado nos seis primeiros meses de 2019.
O clima mudou apenas depois de setembro, depois que a Câmara concluiu a votação da proposta e a encaminhou para o Senado, que encerrou a votação antes do final do ano.
Agora, a equipe econômica vai monitorar de perto os indicadores dos primeiros meses de 2020 para checar se a economia está realmente num ritmo que garanta um crescimento acima de 2% neste ano.
A previsão do Ministério da Economia aponta uma alta na casa de 2,5%, mas se as reformas forem aprovadas. Economistas já começam, porém, a rever suas previsões para a casa dos 2%.
***
Aí está a versão, que vem de “assessores presidenciais” e que será massiva e reiteradamente a difundida: o crescimento não aconteceu porque as reformas (leia-se o ajuste fiscal) não foram suficientes.
É preciso mais arrocho, para que o Estado recupere a capacidade de investir “principalmente em infraestrutura e saneamento, além de vitaminar programas sociais”.
Esse argumento não contradiz o argumento central do ministro Guedes de que é só retirar o Estado do cangote das empresas privadas que o mercado resolve a questão do crescimento?
Quem sabe tirar as empresas privadas do cangote do Estado? Recuperar receita de que o fisco abre mão para estimular negócios privados não ajudaria a recuperar a “capacidade de investimento público”?
E a dívida? No orçamento de 2020, o primeiro do governo Bolsonaro o valor consignado para pagar os juros e amortizações da dívida pública representa 45% de todas as despesas da União. Quase metade do que o Tesouro Nacional arrecada é para rolar a dívida. É 1,6 trilhão de reais.
O governo não teria credibilidade para chamar os credores e mostrar a situação do país, a gravidade de uma recessão que vai para o sexto ano e conseguir melhores condições para pagar essa dívida?
Enfim, há caminhos, que poderiam ser complementares ao ajuste, mas a ortodoxia ideológica não admite nada além da marcha batida rumo ao Estado mínimo.
GERALDO SEIXAS / Corte na Receita agrava crise
Corte no orçamento da Receita Federal agrava as crises fiscal
e na segurança pública
A Receita Federal do Brasil (RFB) sofreu um corte de R$ 1 bilhão no orçamento de 2020. Redução que vai comprometer atividades realizadas nas 117 Delegacias, 30 Alfândegas, 42 Inspetorias, 327 Agências e 25 Postos de Atendimento.
Unidades, inclusive, devem ser fechadas durante o ano prejudicando ainda mais o atendimento aos contribuintes.
É importante ressaltar que esse corte não tem relação com salário dos servidores, mas sim com o pagamento de despesas da instituição com a manutenção de sistemas, de instalações, de equipamentos e de outros gastos essenciais ao funcionamento do órgão.
Para 2020, o orçamento previsto da RFB é de R$ 1,8 bilhão, R$ 1 bilhão inferior ao executado em 2019 que foi de R$ 2,8 bilhões.
O corte de 36% no orçamento afetará atividades do órgão de Estado, que é responsável por garantir a arrecadação, a segurança e agilidade no fluxo internacional de bens, mercadorias e viajantes, e que também contribui para a melhoria do ambiente de negócios e da competitividade do país.
A previsão orçamentária da RFB para o ano está no mesmo patamar de 2007, conforme a Portaria RFB nº 45, de 9 de janeiro de 2020, ou seja, é o mesmo executado pela RFB antes da criação da chamada “Super-Receita” que incorporou a Receita Previdenciária e desconsidera a inflação dos últimos 13 anos que foi superior a 70%.
Os contribuintes serão os mais prejudicados pelos cortes no orçamento da RFB.
Até a entrega das declarações do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) pode ser afetada pela falta de recursos. O calendário de liberação das restituições do IRPF e das declarações retidas em malha pode não ser cumprido em 2020.
Os cortes podem afetar a entrega de outras declarações e o processamento dessas informações. Isso porque a RFB tem caixa para manter o contrato com o Serpro somente até meados de abril.
Após essa data, não há garantia para manutenção dos serviços de suporte em tecnologia da informação que são executados pelo Serpro e pela Dataprev.
Além de comprometer a entrega das declarações do IRPF, a interrupção desses convênios pode paralisar atividades nas unidades da RFB e afetar a arrecadação de impostos e da contribuição previdenciária.
Os reflexos desse corte poderão comprometer outras políticas públicas. Isso porque os sistemas de cadastro e acompanhamento da RFB servem de base para outras instituições e para a sociedade de forma geral.
Prefeituras podem ser prejudicadas pela paralisação de sistemas da RFB e serem impedidas de realizar licitações e até mesmo de receber repasses do Fundo de Participação dos Municípios.
A falta de recursos também compromete o desenvolvimento de sistemas, que contribui para tornar mais simples e eficiente o atendimento das obrigações tributárias e vai dificultar a formalização e a regularização fiscal de empresas.
O quadro se agrava ainda mais quando se percebe que, além de não poder mais investir em soluções tecnológicas por falta de recursos, diversas unidades da Receita Federal serão fechadas, trazendo sérios prejuízos aos contribuintes no cumprimento de suas obrigações, principalmente porque nem todos os serviços executados pela RFB podem ou estão disponíveis na internet, e aqueles que vivem em cidades menores serão obrigados a se locomover até centros maiores para ter acesso a esses serviços.
Com menos servidores, o atendimento nas unidades será comprometido e o tempo para liberação de certidões vai aumentar, gerando prejuízos para empresas e cidadãos.
Nos aeroportos, a redução de plantões e no efetivo de servidores vai tornar mais lenta a liberação de passageiros e de suas bagagens.
Nos portos, o prazo para liberação de importações e exportações também pode ser afetado gerando prejuízos ao comércio exterior, com a elevação dos custos de importação e exportação.
A atuação das equipes de arrecadação, de cobrança, de fiscalização e de julgamento também está ameaçada pelos cortes no orçamento da instituição.
O trabalho desses servidores foi fundamental para o resultado da arrecadação federal que, mesmo no cenário de crise, atingiu, no acumulado de janeiro a dezembro de 2019, R$ 1,5 trilhão, representando um aumento de 1,69% em comparação ao mesmo período do ano anterior.
A atuação dos servidores da Receita Federal também teve um importante impacto para a segurança pública.
As ações de controle aduaneiro resultaram na apreensão de 57,15 toneladas de cocaína no ano passado pelos servidores da RFB, que têm a precedência constitucional para realização da fiscalização, vigilância, repressão e controle de mercadorias, veículos e pessoas na chamada zona primária que são as áreas de fronteira terrestre, portos e aeroportos.
Esse resultado, recorde histórico da instituição, supera em mais de 80% o volume de apreensão alcançado em 2018. Somadas aos demais entorpecentes, a RFB apreendeu no último ano, mais de 63 toneladas de drogas, resultado que supera em 60% o volume de apreensões do ano anterior.
O crescimento na apreensão de drogas está diretamente relacionado ao aperfeiçoamento de técnicas de controle aduaneiro, ao uso intensivo de gestão de riscos, de ações de inteligência e de integração institucional.
O crescimento das apreensões de drogas, armas, munições e de contrabando também é resultado dos investimentos em tecnologia, capacitação dos servidores e utilização do equipamento adequado como scanners, cães de faro e da intensificação das operações de vigilância e repressão aduaneira. Em 2019 foram realizadas 4.837 operações contra 3.343 ano anterior.
No entanto, todas essas atividades também serão afetadas pelos cortes no orçamento da RFB, que, sem recursos, pode paralisar o trabalho das equipes de vigilância e repressão aduaneira que atuam diretamente no enfrentamento dos crimes de contrabando, descaminho e tráfico internacional de drogas no portos, aeroportos e postos de fronteiras e nas zonas secundárias em todo o país.
A realização das operações de controle aduaneiro pelas equipes náuticas, responsáveis pelo controle em portos marítimos e em terminais instalados nos rios da região Norte, contará com apenas R$ 2,35 milhões.
As atividades aéreas receberão apenas R$ 2,85 milhões. Já as equipes de cães de faro, responsáveis diretas pelos recordes de apreensão de drogas nos últimos anos, terão apenas R$ 2,3 milhões para atuar em todo o país.
Na prática, os cortes no orçamento para as ações de controle aduaneiro já provocaram mudanças na rotina de unidades instaladas nas fronteiras. Em várias partes da fronteira, plantões fiscais foram encerrados.
Nessas localidades, após às 18h e nos finais de semana e feriados, não há mais controle de bagagens, de viajantes, de mercadorias e de veículos, que entram e saem do país, uma decisão que abre as fronteiras brasileiras para o tráfico internacional de drogas, o contrabando, o descaminho e fortalece o crime organizado.
Sem orçamento, até o trabalho de recuperação de créditos tributários realizado pela Receita Federal e que pode contribuir para o enfrentamento da crise fiscal será comprometido.
Segundo a Análise dos Créditos Ativos do Ministério da Economia, no mês de dezembro de 2019, o total de Créditos Ativos administrados pela RFB atingiu o patamar de R$ 1,86 trilhão.
Dessa soma, R$ 143,6 bilhões referem-se a valores sem qualquer impedimento para a cobrança e são devidos, principalmente, por grandes empresas que atuam nos setores de comércio e reparação de veículos, atividades financeiras e indústrias, responsáveis por 56,48% desse montante.
Somente a soma dos créditos tributários devidos por essas grandes empresas supera os recursos previstos na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2020, que destinou um orçamento R$ 125,6 bilhões para Saúde, de R$ 95 bilhões para Educação e é superior aos R$ 121 bilhões que o governo espera investir em todo o país neste ano, o que por si só justifica o incremento de investimento na administração tributária. (Fonte: http://receita.economia.gov.br/dados/CrditosAtivosdezembrode2019.pdf)
De fato, o país enfrenta uma grave crise fiscal, assim como uma crise de segurança pública e uma onda de violência que atinge a todos.
Mas, ao cortar o orçamento da Receita Federal em R$ 1 bilhão, o governo corre o risco de paralisar uma das mais importantes estruturas do Estado brasileiro e agravar as crises.
Sem orçamento, a Receita Federal pode não conseguir atingir as metas de arrecadação, reduzindo ainda mais os recursos disponíveis para manutenção das políticas públicas que são essenciais a toda a sociedade.
Sem orçamento, a Receita Federal corre o risco de interromper o histórico crescente de apreensões de drogas, armas, munições e de contrabando que financiam o crime organizado.
Cortar R$ 1 bilhão do orçamento da Receita Federal pode custar bilhões em perda de arrecadação e agravar as crises econômica, fiscal e de segurança pública.
Cortar o orçamento da Receita Federal e paralisar uma das mais importantes instituições do Estado brasileiro só interessa aos sonegadores de impostos e ao crime organizado.
Geraldo Seixas é presidente do Sindicato Nacional dos Analistas-Tributários da Receita Federal do Brasil (Sindireceita)
JOSÉ ANTONIO SEVERO/ A Máfia das Caatingas
Um livro para sacudir o mundo político: “Máfia das Caatingas”, do escritor e cineasta alagoano Jorge Oliveira, trás de volta para o cenário a brutalidade e o primitivismo da política no Brasil.
A única diferença dos tempos passados (ambos 1950 para cá) é que as questões de ódio e de fake News se resolviam na boca dos canos dos trabucos, em vez dos delicados teclados das redes sociais de hoje, tão cruéis e letais quanto as armas dos matadores do passado.
Nesse livro o autor recupera a vida e morte de Floro Novais, o mais fantástico matador do Nordeste, um hábil atirador lá chamado de “pistoleiro”, que seria, no Sudeste, denominado “sniper”.
O protagonista é membro do clã dos Novais, antagonista dos Oliveira. As duas famílias se exterminam numa sucessão de atentados, tocaias e duelos.
O tom das vinditas é dado por outro personagem, dona Guiomar, matriarca dos Novais, mãe de Floro e de Antônio, o Tonho, irmão mais moço. Esse menino, aos 15 anos, foi chamado pela mãe: “Tonho, me, meu “fio”, ‘tá vendo aquele homem ali?: ‘Tô sim, “maeinha”; e lhe passando um retrato, acrescenta: “Só jogue fora esta foto quando esse miserável cair morto a seus pés”.
O alvo era Ezequiel Oliveira, chefe político da cidade de Olivenças, mandante da morte de Ulisses Gomes Novais, marido de dona Guiomar, e seu amigo Mané Roberto, desfiando, então, a teia de mortes e terror.
A história central penetra nos usos e costumes da politica de Alagoas, que constitui um sistema cultural que perpassa todo o Nordeste e, mais recentemente, implanta-se nos grandes centros do Sul e Sudeste, integrado por descendentes da migração dos anos 1950 em diante.
Introduzindo nos antigos costumes do submundo antigo dos tempos do samba, a civilização dos funqueiros elevou o grau de violência e de organização, reproduzindo em seus extremos a ética e a violência do cangaço lendário.
Jorge Oliveira traz à tona os seus primórdios quando as pendências políticas (e econômicas entre latifundiários) se desenvolviam com o chumbo das espingardas.
O livro é eletrizante. Seu conteúdo é um trabalho de grande valor literário, sustentado por uma pesquisa jornalística levada a efeito por um dos profissionais mais experientes e premiados do mercado da informação do País.
Com dois prêmios Esso no currículo, Jorge Oliveira foi destacado repórter dos principais jornais do País, como O Globo, Jornal do Brasil e do diário econômico Gazeta Mercantil. Integrou a nata do jornalismo até se reinventar cineasta e escritor.
No cinema, com vários filmes, destaca-se “O Olhar de Nise”, com a vida da psiquiatra brasileira Nise da Silveira, película premiada, que lhe valeu a escolha como homenageado a Brazilian Endowerment for the Arts (BEA), em Nova York.
Na literatura publicou vários livros, valendo aqui registrar a obra que antecede “Máfia…”, o thriller político “Curral da Morte”, descrevendo em detalhes o tiroteio no plenário da Assembleia Legislativa de alagoas, em Maceió, em 1957, que acabou com a morte um deputado e seis parlamentares feridos à bala.
No livro, tudo encadeado, Jorge Oliveira mostra como numa radiografia as entranhas de um sistema politico e de dominação econômica, que se inicia nos confins do Brasil e chega até o Palácio do Catete, com Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, ambos não diretamente, mas de alguma forma, associados à organização de extermínio em Alagoas, denominada Sindicato do Crime, onde se podia contratar pistoleiros para as mais diversas missões.
Descendo nas hierarquias, já em Alagoas, aparecem figuras de grande relevo, como os então governadores Silvestre Péricles (Gois Monteiro, irmão do general que comandou as tropas vencedoras da Revolução de 1930 e foi ministro da Guerra dos presidentes Vargas e de Eurico Gaspar Dutra), Arnon de Melo, pai do ex-presidente e atual senador Fernando Collor, e Sebastião Marinho Muniz Falcão.
Em 1964, ambos senadores de partidos opostos,Arnon e Péricles duelaram no plenário do Senado Federal. Nesse embate, errando o alvo, Melo matou com uma bala perdida (ou “achada”?) o senador José Kairala, do Acre. É cena mais grotesca da história dos parlamentos brasileiros.
Passando por presidentes, governadores, chefões, chefes, chefetes políticos e bagrinhos distritais, o livro mostra a anatomia das lutas políticas brasileiras, onde mais que ideologias ou posições programáticas, o que vale é o poder a qualquer custo.
O leitor terá uma surpresa, tamanha a ação que sai das páginas. Uma leitura empolgante, sem fôlego. Ainda não foram marcados os lançamentos festivos, fora de Alagoas, mas o esperado “Máfia das Caatingas” é a primeira obra a chamar a atenção do mundo do livro neste ano de 2020.
A saga do pistoleiro Floro acaba numa emboscada, como tantas que o protagonista fez para suas vítimas. Crivado de balas, ele não pode cumprir a promessa que fizera à mãe aos cinco anos de idade.
Deixou a missão para seu irmão Tonho que “concluiu” o vilão Ezequiel Oliveira, para orgulho de Dona Guiomar: “ Pois é meu “fio”, foi ali em frente, naquela feira, que vi Ezequiel pela última vez, antes de Tonho, o meu caçula… E assim cumpriu-se a lei dos sertões, como se diz naquelas bandas: vingança vingada.
VILSON ROMERO/ Previdência, a que ponto chegamos!
Vilson Antonio Romero (*)
Podemos retroceder a 1888 na pré-história da Previdência Social em solo brasileiro.
O Decreto n° 9.912-A, de 26 de março daquele ano, regulou o direito à aposentadoria dos empregados dos Correios. Já, na época, fixava os requisitos para a aposentadoria em 30 anos de efetivo serviço e idade mínima de 60 anos.
Mas o marco histórico é de 35 anos antes.
Inicia com o Decreto n° 4.682, de 24 de janeiro de 1923, aliás Lei Elói Chaves, em homenagem ao deputado autor do projeto, através do qual foram instituídas as Caixas de Aposentadoria e Pensões para os empregados de empresas ferroviárias.
Passados quase um século, vemos a Previdência Social sacudida por uma reforma que pôs por terra parâmetros consolidados há décadas, instituiu idade mínima para os trabalhadores em geral, reduziu benefícios como pensão por morte e outros, aumentou a contribuição para a maioria dos segurados e vive uma gestão de caos, com ameaças de militarização de seu atendimento.
Quase dois milhões de benefícios “represados”, milhares de segurados reclamando da burocracia, da demora no atendimento e do desrespeito a direitos nas agências do INSS.
Enquanto isto, o Ministério Público Federal (MPF) anuncia ação para obrigar o governo a recompor o quadro da autarquia, que tem déficit de 10 mil servidores, sem contar os cerca de 9 mil funcionários em vias de se aposentarem, a maioria com requisitos preenchidos para tanto.
Em documento de abril de 2019, o MPF já alertava que “os canais remotos de atendimento da autarquia, em especial o ´Meu INSS´ ou ´INSS Digital´, mascaram a precarização dos serviços (…) e do seu quadro funcional”, e “obstaculizam o acesso de milhões de pessoas a direitos que lhes assistem e propiciam”.
Também de acordo com a Recomendação n° 19/2019, da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, “inúmeras ações judiciais e denúncias recebidas no Ministério Público atestam a incapacidade do INSS de dar vazão à demanda de requerimentos formulada pela população, gerando atrasos no agendamento de serviços, na análise de processos administrativos previdenciários e assistenciais e, consequentemente, no deferimento de benefícios”.
Triste momento desta quase centenária organização pública, cuja missão institucional é “garantir proteção aos cidadãos por meio do reconhecimento de direitos, com o objetivo de promover o bem-estar social.” E cujos valores de sua gestão estratégica (por incrível que pareça) são “a ética, respeito, segurança, transparência, profissionalismo, responsabilidade socioambiental”.
A Previdência Social é fundamental para a sociedade como um todo, mas em especial para os mais de 35 milhões de aposentados, pensionistas e demais beneficiários do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e para os mais de 84 milhões de cidadãos brasileiros que integram a população economicamente ativa (PEA) e estão ocupados na iniciativa privada.
A que ponto chegamos! Cuidemos de nossa previdência social! A dignidade do trabalhador e do aposentado corre risco.
(*) jornalista e auditor fiscal aposentado, conselheiro da Associação Brasileira de Imprensa e coordenador de Estudos Socioeconômicos da Anfip – fone 61-981174488 – e-mail vilsonromero@yahoo.com.br
ELMAR BONES/Faca no pescoço
A pauta que vai dominar o noticiário no Rio Grande do Sul neste início de 2020, óbviamente é o pacotaço do governador Eduardo Leite a ser votado em convocação extraordinária da Assembleia Legislativa, ainda este mês.
O pacote de oito projetos (um já foi aprovado) muda previdência, carreira do magistério e corta benefícios dos funcionários, com o objetivo explícito de economizar 25,4 bilhões em despesas com pessoal nos próximos dez anos.
É a parte final do falado “ajuste fiscal” que desde o governo Sartori vem preparando o terreno para que o Estado possa se habilitar a um acordo com o governo Federal, principal credor de sua dívida impagável.
Um ponto essencial desse pacotaço está fora da pauta, um fator que excluído do debate por razões políticas, distorce o resultado.
Estou me referindo à famosa Lei Kandir, que isentou os exportadores do imposto estadual.
É uma lei de 1996 que causa grandes perdas de arrecadação aos estados exportadores.
O Rio Grande do Sul, grande exportador, é um dos mais atingidos. Calcula-se que tenha perdido mais de 60 bilhões até 2018.
O governo Leite e seus porta-vozes dizem que é uma “miragem da oposição” esperar qualquer indenização pelas perdas causadas por essa lei e que o caminho é o acordo com a União, para aliviar o peso da dívida por três ou seis anos.
Em troca o Estado promove um rigoroso “ajuste fiscal”, além de abrir mão das indenizações pelas perdas da Lei Kandir.
A oposição há muito insiste que a indenização é prevista em lei e lutar por ela é a prioridade, em vez dos pacotes que há 40 anos só cortam despesas, sem resolver a falta de dinheiro no caixa do governo, cada vez mais grave.
Agora, uma outra voz, que tem eco nas bases do governo Eduardo Leite, se manifesta. O ex-governador Pedro Simon, líder histórico do MDB, está dizendo que o Estado vai perder a chance de sair da crise, se abrir mão das indenizações da Lei Kandir.
Simon foi o governador (1987/90) antes da Lei Kandir. Já havia crise nas finanças, mas foi com a Lei Kandir, em 1996, que a situação começou a se tornar insustentável, segundo ele: “Lei Kandir foi a desgraça do Rio Grande”, diz.
A máquina governista vai tentar passar o trator por cima desta e de outras questões incômodas para os objetivos imediatos do governador Eduardo Leite.
Não vai ser fácil, porém, depois destas declarações de Simon, os deputados do MDB aceitarem que a lei Kandir “é uma miragem” para apoiar um acordo em que o Estado abre mão de créditos, que podem zerar sua dívida.
Simon diz que o governo federal está com a “faca no pescoço do Rio Grande do Sul” e que o Estado não pode trocar “por migalhas um direito já reconhecido até pelo STF”.
GERALDO HASSE/ Saída pelas urnas
Nas redes sociais que estão tirando a função social dos botecos e nas filas das lotéricas onde o povo paga as contas e faz sua fezinha, muitas pessoas oscilam entre o desencanto e a revolta, mas a maioria parece não estar entendendo o que se passa. Precisamos refrescar-lhes a memória.
Entramos no sexto ano de vacas magras na economia, ciclo que começou com o inconformismo de Aecio Neves com a vitória de Dilma na eleição presidencial de 2014.
Chorar a derrota faz parte do jogo, mas não é democrático conspirar, como fizeram os perdedores. Também não faria sentido apostar em soluções pela violência.
É verdade que Dilma facilitou, mas o impeachment veio como uma avalanche.
Tivemos então dois anos e meio de Michel Temer que botou Meirelles na Fazenda e iniciou o processo de desmanche dos pilares da mínima democracia social garantida pela Constituição de 1988.
Primeiro Temer congelou o orçamento por 20 anos. Foi um choque de gestão neoliberal em nome de ajuste fiscal.
Segundo, fez uma reforma focada na retirada de direitos dos trabalhadores para atender reclamações de empresários, que queriam reduzir custos operacionais.
A combinação dessas duas medidas – gelo orçamentário e reforma trabalhista — aprovadas pelo Congresso é responsável pela estagnação da economia que se prolonga dramaticamente com o aprofundamento do arrocho fiscal, a redução da massa salarial, o desemprego, o subemprego e a queda das vendas da maior parte das mercadorias.
Como os governos têm poucos recursos para investir em infraestrutura e no atendimento de necessidades básicas da população, cai a geração de empregos e se amplia a miséria; com o rebaixamento da qualidade de vida, congestionam-se postos de saúde, hospitais e as calçadas próximas de bancos e supermercados onde carentes e desvalidos pedem ajuda.
Um dos retratos da grave situação social brasileira está no aumento do número de pessoas pedindo comida, roupa e dinheiro nas ruas. Tornou-se comum ver catadores carregando sacos plásticos com materiais recicláveis ou empurrando carrinhos de supermercados nas calçadas. São formas de trabalho autônomo numa sociedade em transformação por medidas políticas e/ou por vias tecnológicas.
Milhões de pessoas não compreendem o que acontece, mas percebem que nos andares de cima há festa: dos privilegiados do mercado financeiro, dos bacanas da vida executiva, dos marajás dos serviços públicos, entre outras festas espantosas em que poucos se divertem enquanto a maioria cata migalhas ao redor.
Os governos, com o presidente Bolsonaro à frente, estão fazendo um estrago considerável no acervo de direitos civis e humanos do povo brasileiro.
Há algumas exceções, mas no geral estamos em marcha à ré. Inverteu-se a norma democrática segundo a qual o estado existe para ajudar a maioria a progredir na vida por meio da oferta de infraestrurura, escolas, postos de saúde etc. Não é exagero afirmar que o governo federal atua na contramão da democracia.
A bola da vez é o desmanche do INSS, cujo enxugamento o tornou incapaz de dar conta das demandas da sociedade após a reforma previdenciária promovida para favorecer o sistema financeiro. Se passar para a iniciativa privada, a gestão do fundo da Previdência Social poderá até ter custo menor do que o do funcionalismo do INSS, mas terá de gerar lucro (hoje equivalente a zero no sistema estatal).
Pela lógica que rege a atual política econômica, entregue às mãos do economista Paulo Guedes “Posto Ipiranga”, a saída para o governo é vender ativos estatais grandes, médios e pequenos.
Estamos a caminho disso na União e em alguns estados e municípios. A venda da Dataprev, por exemplo, colocará em mãos privadas o maior banco de dados do país, configurando um crime de lesa-pátria.
Em resumo, o que está acontecendo no Brasil é uma insanidade, mas nada justificaria uma intervenção das Forças Armadas, como pedem algumas pessoas. Golpes são intrinsecamente ruins.
A saída tem de ser democrática. Pelo voto consciente em outubro.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“Desenvolvimento sem educação é criação de riqueza apenas para alguns privilegiados”
Leonel Brizola
VILSON ROMERO/A inflação e a tabela do Imposto de Renda
Vilson Antonio Romero (*)
Sem mexer na estrutura de impostos, o governo descumpre a promessa de campanha de não aumentar a carga tributária.
Não só este governo, mas todos, desde 1996, acumularam defasagens na tabela de desconto do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF).
Com a divulgação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de 2019, registrando, em 12 meses, uma elevação de 4,31%, a defasagem da tabela do IRRF ultrapassa, pela primeira vez, os 100%, segundo revela estudo dos Auditores Fiscais da Receita Federal.
No período analisado, entre 1996 e 2019, a variação do IPCA somou 327,37%, muito superior aos reajustes realizados pelo governo nas faixas de cobrança do tributo, que ficaram em 109,63%.
Esse fato gerou uma defasagem de 103,87% nos valores da tabela. O ano inicial do estudo é 1996 porque foi a partir de quando a tabela começou a ter os valores em reais.
Nos últimos 23 anos, em apenas cinco as correções superaram a inflação: 2002, 2005, 2006, 2007 e 2009.
Se fosse totalmente corrigida, a faixa de isenção do Imposto de Renda Retido na Fonte saltaria de R$ 1.903,98 para R$ 3.881,65, e cerca de 10 milhões de contribuintes a mais deixariam de pagar o tributo, avaliam os auditores.
Como a faixa de isenção não se eleva, a cada ano, mais contribuintes com proporcionalmente menos renda tributável (em especial, assalariados) ingressam na faixa de retenção. Portanto, essa defasagem eleva a carga tributária dos menos aquinhoados, dos mais pobres.
Se for feita a correlação com o salário-mínimo, no início do período (1996), a faixa de isenção alcançava as rendas líquidas de até nove salários mínimos. Passados mais de duas décadas, os que tem renda líquida (deduzindo previdência, dependentes, etc) acima de R$ R$ 1.903,99 (91% de dois salários mínimos de 2020), já sofrem desconto em suas remunerações a título de IRRF.
Por exemplo, quem ganha valor líquido próximo ao teto do INSS (R$ 6.100,00), o desconto seria de R$ 195,32, se a tabela fosse corrigida integralmente. Como isto não ocorreu, a carga tributária somente neste imposto é 313% maior, pois o desconto mensal hoje é de R$ 808,15.
Este efeito regressivo é sentido, como já afirmamos, nos contribuintes de menor poder aquisitivo, cujo prejuízo aumenta inversamente à renda líquida percebida.
Como o governo só anuncia sua reforma tributária para mais adiante, sem sinalizar com a possibilidade da correção desta defasagem, o trabalhador mais pobre continua pagando mais efetivamente esta conta.
A recuperação da economia, mesmo que lenta, e a aceleração nas reformas estruturais poderiam abrir um flanco para minorar as perdas da grande massa trabalhadora que não tem como fugir deste encargo.
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(*) jornalista e auditor fiscal aposentado, conselheiro da Associação Brasileira de Imprensa e coordenador de Estudos Socioeconômicos da Anfip – fone 61-981174488 – e-mail vilsonromero@yahoo.com.br
ELMAR BONES/Pensamento Único
Uma corrente de economistas reconhecidos questiona cada vez mais essa política de cortes orçamentários profundos para reduzir o déficit público.
“É uma política equivocada do ponto de vista macroeconômico, uma vez que o pais ainda sofre com altas taxas de desemprego e insuficiência de investimentos públicos em setores essenciais”, é o que tem dito André Lara Resende sempre que lhe dão oportunidade.
Autoridade não lhe falta: ex-diretor do Banco Central, Lara Resende integrou a equipe que fez o Plano Real.
O problema é que o pensamento único que domina os meios não dá oportunidade a quem pensa diferente.
GERALDO HASSE / Pardo Moraes
Nada é mais trivial do que a morte, mas só nos damos conta de sua virulência quando ela passa a foice no nosso quintal. Ou no nosso jardim. E leva alguém próximo, querido ou muito respeitado – justo quando a gente menos espera.
Hay que se registrar a perda súbita de Carlos Moraes, gaúcho de Lavras do Sul, falecido aos 78 anos no dia 14 de dezembro em São Paulo, onde viveu a maior parte da existência dividida entre o sacerdócio, o jornalismo e a literatura.
Nos seminários em que estudou (em Pelotas e Viamão), era chamado de Nego Moraes por ter a pele morena dos “pelos duros” (descendentes de portugueses, espanhóis e açorianos) do Pampa gaúcho. Ao ficar grisalho, na maturidade, gostava de tratar os contemporâneos e a si mesmo com os adjetivos “pardo velho”, cujo som fazia todos se lembrarem do substantivo “padre” que nunca se separou dele.
Como jornalista, trabalhou nas revistas Realidade, Psicologia Atual e Ícaro, publicação de bordo da Varig – todas sediadas em São Paulo, onde ele chegou em 1971, liberado dos votos religiosos pelo Vaticano e absolvido pela Justiça Militar de uma intriga armada contra ele em Bagé, onde trabalhou como padre.
Na Paulicéia, achou que a grande cidade colocara sobre seus ombros “um capote cinza”, alusão ao anonimato e à solidão que caracterizam a vida nas metrópoles.
Torcedor do Internacional de Porto Alegre, apaixonou-se pela torcida do Corinthians, na qual encontrou uma espécie de manifestação da força divina.
Pai de dois filhos (nascidos no Chile) e avô de três netos (idem), Moraes casou-se duas vezes e escreveu outros livros como O LOBISANJO (Vozes, 1970), A VINGANÇA DO TIMÃO (2002) e COMO SER FELIZ SEM DAR CERTO, mas seu livro mais marcante é AGORA DEUS VAI TE PEGAR LÁ FORA (Record, 268 páginas, 2004), no qual conta, de forma muito bem-humorada, como foi sua temporada na cadeia pública de Bagé, onde esteve preso sob a acusação de pregar a subversão política mediante sermões sobre a escassez de justiça social no Brasil e no mundo.
Ao contrário do que se possa pensar, AGORA DEUS VAI TE PEGAR LÁ FORA é uma narrativa sem amargura ou ressentimentos sobre um dos “causos” mais bizarros da época da ditadura militar (1964/85). Se fosse menos tímido e tivesse se mantido no seio da Igreja, o padre de Lavras teria talvez galgado os degraus da hierarquia católica. Não nos olvidemos do padre argentino eleito Papa.
Como pregador, Moraes foi tão “subversivo” quanto o “cardeal vermelho” D. Helder Câmara (vigiado e atacado, nunca foi preso), mas entrou em cana por pregar a igualdade numa cidade com cinco quartéis com o agravante de ser a terra natal do general Médici, que chefiou o governo no período 1969/1973, os “anos de chumbo”.
Como escritor, Moraes elevou-se um degrau acima do frei Leonardo Boff, “condenado” pela Igreja Católica a manter-se em “silêncio obsequioso”. Mas Boff se manteve fiel à teologia da libertação, enquanto Moraes preferiu pairar num “corredor” metafórico entre a esquerda e a direita.
Nos seus últimos anos de vida, ele se dedicou a escrever um ensaio sobre a vida de Jesus – desde a infância até sua transfiguração em filho de Deus por decisão da Igreja Católica chefiada pelo imperador romano Constantino no século IV; e daí em diante, com Jesus sendo usado por charlatães, picaretas e outros líderes, foi um deus-nos-acuda.
Ainda não publicado (foi concluído alguns dias antes da morte do autor), EM BUSCA DO PRIMEIRO JESUS é um livro indignado com a exploração das carências humanas pelo mercantilismo religioso.
Cristão até debaixo d’água – apesar de dispensado dos votos religiosos, Moraes manteve seu trabalho como “pastor de almas”, comparecendo à casa de amigos que reclamavam sua presença para diversas funções religiosas –, ele chicoteia todas as igrejas em seu ensaio.
Leia abaixo um trecho extraído do copião enviado por Moraes a amigos em meados de 2018:
“Por que nos tempos modernos há tanta gente respeitável irritada com as religiões?
Já no século 18, Philippe Pinel (1745-1826), o pai da moderna psiquiatria, parece que não estava brincando quando afirmou que só conhecia duas doenças praticamente incuráveis: o inchaço do ego e o fanatismo religioso.
Chocado talvez com alguns horrores desse fanatismo, o cientista Steven Weinberg, Prêmio Nobel de Física de 1979, chegou a dizer: “Com ou sem religião teríamos pessoas boas fazendo o bem e pessoas más fazendo o mal. Mas para que pessoas boas façam coisas más é necessária a religião”.
Quando, em sua famosa música Imagine, John Lennon sonha um novo mundo, faz questão de ressaltar que ele será – sem religião!
Visões assim tão pessimistas suscitam perguntas igualmente incômodas.
Se todas as religiões se mostram tão plenas das melhores intenções, onde e como elas se pervertem?
Quando e por que, na história da humanidade, a pureza e a fé deram de matar mais do que o pecado e a dúvida?
Por que tantas religiões insistem em partir para um controle minucioso e totalitário das consciências em vez de uma serena e misericordiosa iluminação da vida?
E por que, às vezes, dentre os grandes filhos de uma puta deste mundo, os mais convictos, os mais inatingíveis e, não raro, os mais cruéis são os filhos de uma puta em nome de Deus?
Uma resposta única para tantas e tão exasperadas perguntas não é fácil, mas tudo indica que esse desencanto todo diz respeito principalmente aos arreglos mundanos das instituições religiosas em si, sem levar em conta todo o bem, todo o amor, todos os rituais e cantos de esperança com que pessoas de fé iluminam e sempre iluminaram milhões de vidas neste mundo. Um pequeno exemplo tirado de um jornal. Numa entrevista, dois brilhantes irmãos intelectuais de esquerda relembram suas vidas, os primeiros duros anos em que, órfãos de pai, viram a mãe aguentar a barra da família toda com extrema valentia. No fim, um deles só lamenta: “É, ela só era meio carola, coitada”. Pergunta: e onde eles acham que ela buscou forças e confiança para aguentar a difícil barra? Em Marx, Engels ou Noam Chomski?
Mas é preciso reconhecer: as comunidades dos que crêem nunca haverão de ser perfeitas e ainda bem que cristianismo é a religião da extrema exigência e da extrema misericórdia. Belamente diz o apóstolo Paulo que em vasos de barro carregamos nossos tesouros. Alguém igualmente inspirado escreveu que todos nós, de uma forma ou de outra, seremos sempre respingados pela lama do mundo, o importante é que ela não nos chegue ao coração. Por isso é tão crucial tentar distinguir, sempre, o tesouro do barro, que só assim será possível, para uma Igreja e ou qualquer cristão, sentir-se tentado e até respingado pelas sordidez em volta, mas sem nunca entregar o coração. Há muitos séculos o Livro dos Provérbios (4:23) já sugeria que, acima de todas as coisas deste mundo, o que mais importa é preservar o coração, pois é dele que provêm as grandes fontes da vida. Era do que Jesus mais queria saber: o coração. Para o resto, para os sistemas locais de salvação e pureza, ele não parecia ligar muito.
Quando uma Igreja entrega o coração? Tudo sugere que o que o mais perverte as religiões é a facilidade com que se rendem aos deuses deste mundo, o poder, a ganância, as vaidades e assim mundanizadas nada de novo podem de trazer – ao mundo. E é pena porque, como acabamos de ver, elas representam experiências e valores sagrados que vêm de longe, muito longe e ainda hoje teriam muito a contribuir com os melhores sonhos da humanidade. Ou especialmente hoje, pois, apesar de toda a amargura com que a modernidade foi vista pelos papas do século 19, ela só trouxe boas perspectivas não só para a Igreja Católica como para todas as religiões que não queiram viver apenas da baixa escolaridade ou alto grau de desamparo dos seus fiéis.
Só para citar algumas das grandes bênçãos que o mundo moderno trouxe para as Igrejas:
Com o advento da democracia laica, elas ficaram livres da tentação de implantar na marra o Reino de Deus na terra, como tantas vezes tentaram.
Com o advento do estado de direito, elas foram dispensadas de julgar a tudo e a todos, com grande economia, no caso da Católica, de latim e lenha nos tribunais eclesiásticos.
Com o fortalecimento das ciências, as Igrejas não precisam mais perder tempo explicando biblicamente a origem e funcionamento do Universo.
Com a evolução da medicina e da psiquiatria, elas foram dispensadas de curar ou atribuir ao demônio doenças que hoje contam com nomes e tratamentos bem definidos.
Com o advento do Estado de Bem–Estar Social, das ONGs e das Fundações, elas não são mais a única instituição a se preocupar com a educação e a miséria, embora todas tenham feito e continuem fazendo obras comoventes nessa área.
Livres enfim dos rolos e ambições mundanas, as religiões podem agora, mais do que nunca cuidar de áreas de transformação do coração e do mundo onde a democracia, a ciência, a economia, o direito e a medicina não têm obtido grandes resultados.”
LEMBRETE DE OCASIÃO
Se falta lã para alguns, não é por culpa das ovelhas.
Carlos Moraes (1941-2019)