Plínio Melgaré*
“Paz sem voz, não é paz, é medo” – O Rappa
Em Porto Alegre, leal ao retrocesso, a Câmara de Vereadores retira do espaço público uma exposição de cartuns. As charges eram ofensivas, a liberdade de expressão está banalizada, argumentou-se.
No Rio de Janeiro, fiscais caçam livros impróprios para crianças sob o argumento de conter conteúdo sexual inadequado: um beijo entre homens.
Em S. Paulo, o governador determina o recolhimento de material escolar para alunos do 8º ano alegando erro intolerável: supostamente, continha apologia à ideologia de gênero – seja lá o que isso for.
A liberdade de expressão é a coluna vertebral de um regime democrático. E nela se contempla um espaço de liberdade individual incontornável.
Como um direito fundamental, assegura a possibilidade de expressar em público ideias que não se deve reprimir. E é dever do Estado sustentar essa livre circulação do pensamento.
A liberdade de expressão se afirma, pois, em duas perspectivas: constitui um espaço intangível de manifestação da pessoa e, ao mesmo tempo, estabelece uma ordem ao poder público que deve salvaguardá-la.
Desde a Constituição Federal de 1988, a censura foi banida do cenário político brasileiro. Impressiona que autoridades não saibam.
Ou não se acostumam a conviver com a crítica e a diversidade. E aproveitam um período de déficit democrático para externar o apego ao arbítrio. Mas a democracia não se faz com discursos dóceis ao poder.
Ao contrário, a democracia é o regime das vozes dissonantes. O silêncio não é o seu som. E quem o pretende impor se posiciona fora da sua moldura. A democracia só se justifica se garantido o espaço para opiniões contrárias ao poder.
O Supremo Tribunal Federal repôs a ordem valorativa da Constituição. Reafirmou a liberdade de expressão artística e de informação como valores constitucionais superiores.
O contrário é a intolerância. E o Brasil não precisa de censores, mas de leitores. Porém, como na cena final do distópico Bacurau, isso é só o começo. Embora já devesse ser o fim.
*Advogado e professor da Escola de Direito da PUCRS e da FMP.
Autor: Análise & Opinião
Glenn Greenwald e a Vaza Jato
raul ellwanger
Glenn Greenwald conheceu certo tipo de jornalismo brasileiro, na
entrevista à TV Cultura de São Paulo.
Elaborador da maior façanha jornalística das últimas décadas em nosso país, pois mostrou o uso político pré-intencionado de um setor do Judiciário brasileiro (a operação orgânica que impediu um candidato de ser candidato), o norte-americano teve que recorrer a todas suas reservas de paciência, tolerância e elegância ante a
barragem de perguntas constrangedoras que suportou.
A reportagem Vaza-jato é da mesma família e magnitude dos casos
Watergate e Snowden, retomando a tradição do grande jornalismo de
serviço público, de compromisso com a verdade e sem contar com
nenhum grande veículo para iniciar sua divulgação.
Para fazer uma comparação, basta lembrar mais de dez anos de mau jornalismo que viveu nosso país a partir de 2005, com vazamento ilegal quase diário de
conteúdos de processos judiciais protegidos por sigilo, de divulgação
espalhafatosa de meros boatos ou supostas confissões nunca
referendadas (casos Palocci e Pinheiro), de promiscuidade e articulação
operativa entre policiais, promotores, juízes, jornalistas e mídia
monopólica (que operava como agencia de propaganda da Lava-jato).
Imaginemos, portanto, meia dúzia de jornalistas martelando duas horas
de ferozes perguntas em TV aberta sobre algum funcionário da família
Marinho, para que este explicasse como saiam dos autos sigilosos de um
processo sob segredo de Justiça em Curitiba informações que ganhavam
longos minutos no noticiário da mesma noite, muitas vezes sem sequer
tempo hábil para fazer tal percurso.
Os entrevistadores do programa Roda Viva perderam a oportunidade de
ilustrar seus espectadores, de dar-lhes elementos de análise, de permitir
que usem suas inteligências para chegar a conclusões próprias.
Tendo perdido os momentos iniciais do programa, fiquei estupefato quando o
mesmo andou e terminou sem que os ditos jornalistas tivessem inquirido
Greenwald sobre o conteúdo de suas revelações; sem que tivessem
adentrado e esmiuçado aquelas condutas ilícitas de juiz, promotor e
policiais, que mais deveriam defender a licitude das condutas de agentes
públicos; sem que se interessassem pelas reiteradas operações de
Dallagnol em dobradiça com a mídia para caluniar e promover o
linchamento prévio e o julgamento “nas ruas” de seus alvos e vítimas
escolhidos com antecipação; sem olhar o comando de Moro sobre o
conjunto da obra, desde o inquérito policial até a inércia de seus superiores; sem visualizar o uso controlado do tempo político para influenciar na eleição; sem ter curiosidade sobre as articulações com grupos de opinião e pressão construídos adrede; sem averiguar o manejo financeiro articulado desses grupos com várias empresas; sem duvidar do olhar benevolente de Dallagnol sobre estas mesmas empresas que doavam para seus grupos de pressão; sem olhar o lucro pessoal e o desvio de função da vários operadores.
Pois tais jornalistas se dedicaram a cercar o entrevistado com perguntas
ou insinuações de conduta ilícita, de interesse político, de rancor contra
certa mídia, de talvez ter pago pelas informações.
Deixaram de lado o gigantesco fato jornalístico e político da Vaza-jato, e focaram todas suas baterias na conduta do profissional, na pessoa, no método de divulgação.
Tentaram desacredita-lo, ao citar reiteradamente sua opção afetiva ou
antigos trabalhos como advogado. Passaram a formular perguntas
hipotéticas, tentando confundir o jornalista-advogado.
Por fim, na fala de um casal, perderam diretamente a compostura e repetiram os
argumentos dos próprios autores dos delitos revelados na Vaza-jato,
operando como ventríloquos dos próprios indigitados.
A subversão politizada de parte do Judiciário brasileiro, revelada pela
reportagem Vaza-jato, não foi objeto do programa Roda Viva. Teria sido
um grande, um histórico programa.
Ele foi armado para derrubar a pessoa do cidadão Glenn. Ficou do mesmo diminuto tamanho e insignificância de seus operadores, não por acaso alguns deles funcionários das mesmas mídias involucradas em delitos que procuravam assacar ao entrevistado.
Jornal Nacional
A imprensa brasileira vive um grave momento de sua história. Dos últimos 50 anos que testemunhei, o pior, com certeza.
Um fato símbolo desse momento são as comemorações dos 50 anos do Jornal Nacional, pela Rede Globo.
O primeiro programa de televisão brasileira transmitido em rede nacional, “a notícia unindo 70 milhões de brasileiros”, era na verdade um mimo dado a Roberto Marinho pelos serviços prestados à ditadura que naquele momento se consolidava.
Por conta desse comprometimento, o Jornal Nacional estreou com uma notícia oficial que tentava esconder da opinião pública a real situação do país.
Naquele dia, o presidente de República, general Artur da Costa e Silva, estava semiconsciente, imobilizado num hospital e uma junta militar assumira o poder.
Há uma semana a saúde do presidente se agravava, mas a censura proibia as notícias. As poucas notas nos jornais justificavam o afastamento do presidente com “uma forte gripe”.
Com tudo isso, a manchete do jornal que estreava era: o preço da gasolina.
Em seguida, Hilton Gomes, que junto com Cid Moreira, apresentou o jornal, falou da saúde do presidente, como se estivesse se recuperando, quando na verdade naquele momento o presidente havia piorado e estava inconsciente.
Já reproduzi em outro artigo o texto lido por Hilton Gomes naquele primeiro de setembro de 1969, mas agora não encontrei. Recorri, então, aos arquivos da Globo e constatei, estarrecido, que a íntegra do primeira e tão festejada edição do Jornal Nacional não está disponível. Por que?
Tem a abertura, tem uma síntese das notícias, tem informações sobre os apresentadores, mas a íntegra do noticiário não tem…
Tentam esconder a fake original? É quase inacreditável. Mas, depois da encruzilhada dos vazamentos (os que renderam manchetes por três anos e os que apontam os vazadores, agora omitidos) não há motivos para surpresas.
Hong Kong, a ocupação que não terminou
Aldo Rebelo
Hong Kong, um dos últimos enclaves britânicos e, portanto, do ocidente, segundo o conceito de guerra civilizatória em moda, foi devolvido à China, ou seja, ao oriente, em 1997, depois de 155 anos de ocupação.
Mas a batalha por Hong Kong está longe de terminar. A ilha foi tomada dos chineses em 1842 ao término da primeira Guerra do Ópio, no primeiro grande ciclo de expansão do Império Britânico, quando o tear e a canhoneira a vapor construíram o império no qual o sol nunca se punha.
A Inglaterra combatia o tráfico de escravos no ocidente e impunha, pelas armas, o tráfico de drogas no oriente. O ópio, produzido a partir da papoula das colônias britânicas na Ásia, contrabandeado, ajudava a equilibrar a balança comercial deficitária com a China.
Depois das seguidas guerras perdidas para o ocidente, a China foi obrigada a aceitar tratados de paz humilhantes e a ceder dezenas de seus portos aos impérios coloniais europeus e aos Estados Unidos. Daí nasceu a expressão “negócio da China” para caracterizar qualquer transação extremamente vantajosa para uma das partes.
Até a Revolução conduzida por Mao Tsé-Tung, em 1949, era possível encontrar à entrada do bairro inglês em Xangai a inscrição: “Proibida a entrada de cães e de chineses”.
Até o início do Século XIX, a China era a primeira economia do mundo, algumas vezes maior que a economia britânica, com a qual acumulava expressivo saldo comercial.
Para tentar abrir o mercado chinês aos produtos britânicos, o rei George III enviou uma grande delegação à China, chefiada por lordMacartney. A numerosa comitiva fez uma escala de um mês no Porto do Rio de Janeiro para descanso e reabastecimento a caminho da China.
Mas o imperador Qianlong, depois de fazer a missão real esperar mais de 30 dias, recebeu lord Macartney em audiência para negar todas as propostas do rei George, inclusive a permissão para abrir uma embaixada na China. Não impressionaram Qianlong nenhuma maravilha da indústria britânica e nem os canhões enviados de presente pelo monarca da Inglaterra.
O resto da história é bem conhecido. Depois de mais duas tentativas diplomáticas de apresentar aos chineses as conquistas da tecnologia e da indústria a vapor, os britânicos decidiram enviar as canhoneiras a vapor e os portos chineses foram bombardeados e ocupados.
O ópio e as demais mercadorias britânicas passaram a ter acesso livre ao gigantesco mercado do país asiático, pelos “tratados desiguais” como denominaram os chineses as atas de rendição impostas pelo império ocidental em expansão.
A China conheceu então um longo período de declínio, revertido a partir da Revolução de 1949, e principalmente, depois das reformas promovidas pela liderança de Deng Xiaoping.
A devolução de Hong Kong foi acertada, no começo de década de 1980, entre a primeira ministra Margaret Thatcher e o líder Deng Xiaoping, e consumada em 1997, depois de 155 anos de domínio britânico.
Hoje, Hong Kong é colhida no epicentro da disputa geopolítica, científica, tecnológica, comercial, diplomática e militar entre os Estados Unidos e a China. Ameaçados em sua supremacia pelo rápido desenvolvimento de seu concorrente, os Estados Unidos procuram bloquear por todos os meios a ascensão chinesa ao posto mais elevado do pódio da economia mundial.
A China, protegida pela expansão de sua economia gigantesca e pela disponibilidade de recursos para investimentos e crédito interno e externo, não está disposta a renunciar aos dividendos decorrentes de sua posição privilegiada.
Deseja o máximo de segurança para suas rotas de navegação no Mar do Sul da China e para seu ambicioso projeto da nova rota da seda, denominado One Belt, One Road (Um cinturão, uma rota), o que inclui passagem pelo Pacífico e pelo Índico, vigiados pela supremacia da esquadra norte-americana.
Hong Kong e seu modelo de “um país e dois sistemas” é o ambiente ideal para o ocidente, leia-se Estados Unidos, testar os nervos e a resiliência do gigante asiático.
O presidente Trump tem feito uma defesa moderada das manifestações em Hong Kong, mas Pequim sabe que dólares norte-americanos abastecem as ONGs e os movimentos democráticos na ilha, além do apoio midiático, é claro.
Um porta-voz oficial chinês deu o tom da reação ao problema: “Nós gostaríamos de deixar bem claro para o grupo bem pequeno de criminosos inescrupulosos e violentos e para as forças sujas por trás deles: aqueles que brincam com fogo morrerão queimados”.
A disputa por Hong Kong não é por mais ou menos democracia, é muito mais do que isso, é por mais ou menos hegemonia entre China e Estados Unidos. Não era por democracia no Iraque e na Líbia, era por petróleo. Estados Unidos e China sabem disso e se movem em Hong Kong a partir desta lição.
Os ataques à Receita e os “infiscalizáveis”
Vilson Antonio Romero (*)
Decisões recentes de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal de Contas da União (TCU) determinaram medidas coercitivas à administração tributária federal que devem causar, no mínimo, preocupação aos cidadãos contribuintes brasileiros, em especial, aos que defendem o combate inclemente à corrupção de agentes públicos.
Em razão de pouco mais de 130 contribuintes pessoas físicas, entre elas pessoas ligadas a ministros do STF e seus familiares, terem sido selecionados para um trabalho mais acurado de auditoria e fiscalização, foi determinado o afastamento de dois Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil do exercício regular de suas funções.
Além disto, em caráter liminar, devem ser ouvidos seis outros Auditores e, por incrível que pareça, suspensos os mais de uma centena de procedimentos de fiscalização dos demais contribuintes selecionados tecnicamente pelas equipes de programação da Receita Federal.
O supremo ministro coator alega em sua decisão, a possibilidade de “graves indícios da prática de infração funcional, penal e improbidade administrativa”. Com base no que não se sabe!
Já no âmbito do TCU, onde se debate uma rubrica salarial instituída por lei para os servidores da administração tributária federal, um dos membros do colegiado foi ele próprio ou uma pessoa próxima notificada pela Receita Federal em agosto para comprovar o pagamento de R$ 13 mil a um médico, lançado em declaração do ano-base de 2015.
Aparentemente como vindita, a autoridade do tribunal determinou que o órgão responsável pela administração tributária da União apresentasse, em menos de um mês, o rol de todas as autoridades dos Três Poderes que foram investigadas nos últimos cinco anos, bem como quais auditores participaram das investigações, com números, datas e fundamentação de cada procedimento.
Mais de 30 milhões de brasileiros entregaram, no início deste ano, regularmente suas declarações de ajuste anual, por terem rendimentos tributáveis ou isentos ou patrimônio acima de determinados padrões estabelecidos anualmente na legislação tributária.
Mas, além de entregarem suas declarações, todos esses contribuintes têm suas declarações passadas pelo crivo da Receita, devendo apresentar consistência nos valores de renda, patrimônio e tributação, nos termos da legislação vigente.
Os Auditores do primeiro caso explicaram que ambos fazem parte da equipe especial focada no combate a fraudes fiscais e que estavam trabalhando com base em critérios técnicos, objetivos e impessoais adotados pela Receita Federal, tudo em conformidade com as recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi). Inclusive a Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) contra a Corrupção determina uma maior vigilância do Fisco sobre autoridades públicas.
Portanto, os Auditores não têm o poder de “escolher” os contribuintes a serem fiscalizados. A defesa ratificou que os dois Auditores agiram de ofício, sem dolo, e não cometeram nenhuma irregularidade. Também demonstrou que o vazamento de informações sigilosas que deram origem ao inquérito se deu por um dos contribuintes envolvidos na fiscalização e não por parte dos Auditores.
Tanto a medida do TCU de exigir informações sobre a ação fiscal de meia década quanto a do STF de afastar dois profissionais de suas atividades e suspender mais de uma centena de procedimentos de fiscalização relacionados a altas autoridades causam mal-estar social e colocam em xeque a credibilidade, lisura e transparência com que operam as instituições brasileiras.
Como se isto não bastasse, ainda vêm do Palácio do Planalto reclamações de que familiares ou pessoas próximas do Presidente da República estejam sofrendo “devassas em suas vidas financeiras”, engrossando o coro dos que querem estar blindados contra o fisco.
Parece que querem criar uma casta de “infiscalizáveis”, acima da autoridade tributária legalmente constituída por agentes e servidores de Estado e não de governos. E querendo colocar-se acima e muito além do conjunto dos mortais contribuintes brasileiros, numa blindagem “suprema”.
Ou mudam-se a postura, os critérios e as deliberações dos ministros e autoridades, ou teremos a porta aberta para a impunidade e, até, para a imunidade tributária de uns poucos.
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(*) jornalista, auditor fiscal, conselheiro da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e assessor da Presidência da Associação Nacional dos Auditores da Receita Federal do Brasil – vilsonromero@yahoo.com.br
Itaipu
CLáUDIO Sales e Richard Hochstletere
Nos últimos anos, o Paraguai tem obtido reiteradas vantagens do Brasil.
Cerca de 10 anos atrás, conseguiu triplicar o valor cobrado pela energia cedida ao Brasil. Também recebeu US$ 400 milhões do Brasil para construir a linha de transmissão de Itaipu a Assunção.
Mais recentemente, o Brasil se comprometeu a construir mais duas pontes na fronteira.
O mais novo episódio com nosso vizinho começou no final de julho com o estardalhaço feito por senadores paraguaios sobre uma “ata diplomática” de reunião realizada entre os dois países há alguns meses.
Senadores caracterizaram tal ata como “acordo secreto altamente prejudicial” para o Paraguai, o que culminou na demissão de autoridades paraguaias, entre as quais o ministro de Relações Exteriores.
Segundo a imprensa, a ata previa nada mais que a regularização da contratação anual da potência e da energia da usina pelos dois países nos termos do Tratado de Itaipu. Não se trata de novo acordo, mas de um plano para fazer valer alguns dos termos pactuados em 1973 no tratado que não estavam sendo cumpridos.
Há anos o Paraguai burla o Anexo C do Tratado de Itaipu, que prevê que os dois países devem contratar anualmente “frações da potência instalada na central elétrica” (cláusula II.2), sendo que cada parte terá o direito de “utilizar a energia que puder ser produzida pela potência por ela contratada” (cláusula II.4), e o dever de pagar os custos incorridos pela usina “proporcionalmente às potências contratadas” (cláusula IV.2).
As despesas da usina têm sido rateadas entre os dois países em razão de dois fatores: (i) as despesas de exploração, de amortização e de juros sobre a dívida da usina são divididas em função da potência contratada por país; (ii) enquanto as despesas para provimento de royalties e encargos de administração e supervisão são cobrados em função da energia consumida pelos respectivos países.
Como a “energia vinculada à potência contratada” é definida de forma conservadora (para recuperar os custos da usina mesmo em anos de baixa hidrologia), a usina geralmente produz mais que esse montante, resultando em “energia adicional”.
A vantagem paraguaia advém de rateio assimétrico dessas duas formas de energia.
Em 2018, o Paraguai contratou apenas 10,6% da potência, mas levou 34,7% da “energia adicional”, arcando com parcela menor dos custos, levando parcela maior da energia mais barata, mas ainda dividindo igualmente as receitas de royalties, remuneração de capital e reembolso de encargos de administração e supervisão.
Os grandes prejudicados dessa assimetria são os consumidores brasileiros, que pagaram USD 37,40/MWh pela mesma energia que os paraguaios levaram por USD 26,26/MWh. Ou seja, paraguaios pagam energia 30% mais barata que os brasileiros.
REMUNERAÇÃO POR CESSÃO DE ENERGIA
Como se essa vantagem não bastasse, os paraguaios desfrutam da “remuneração por cessão de energia”, um pagamento adicional pela parcela da potência contratada pelo Brasil advinda das unidades geradoras pertencentes ao Paraguai. O valor pago ao país vizinho, a título de cessão de energia em 2018, foi de USD 327 milhões. Quando se soma esse pagamento aos USD 37,40/MWh, o valor final pago pelos brasileiros sobe para USD 41,45/MWh.
A ata diplomática não previa o ressarcimento pelos valores pagos a menos pelo Paraguai nos últimos anos, nem previa a implantação imediata dos termos vigentes do tratado: previa apenas a regularização gradual ao longo dos próximos quatro anos.
O tratado de Itaipu é muito benéfico ao Paraguai. Itaipu não apenas fornece mais de 90% da energia consumida pelo nosso vizinho, mas também é importante fonte de receitas para o país.
Os valores que o Paraguai recebe de Itaipu (soma de royalties, rendimento do capital, encargos de administração e supervisão, e cessão de energia) superam o valor pago pela energia que o país consome. Em 2018, o Paraguai ganhou 15.043.900 MWh de energia e USD 249 milhões de receita líquida de Itaipu.
Ou seja, o Paraguai não paga nada, recebe energia e ainda ganha dinheiro. Quem de fato arca com todos os custos de Itaipu é o consumidor brasileiro. O Brasil precisa divulgar os números acima para combater o discurso de vitimização que políticos paraguaios têm adotado para alavancar, astutamente, sua posição de negociação. E nossos diplomatas precisam evitar que o consumidor brasileiro pague a conta, mais uma vez, do oportunismo de nossos vizinhos.
A Tragédia argentina e a ortodoxia econômica
ALDO REBELO
“Você sai da Argentina e volta 20 dias depois, e está tudo mudado. Você sai da Argentina e volta 20 anos depois, e nada mudou” (ouvido de um argentino)
O presidente Maurício Macri enfrenta, às vésperas das eleições de outubro, o momento mais difícil de sua trágica gestão, agravado pela retumbante e aparentemente imprevista derrota nas prévias eleitorais, quando ficou 15 pontos atrás de seu desafiante peronista Alberto Fernandez e de sua vice Cristina Kirchner.
Os números são implacáveis contra Macri: o aumento da pobreza e do desemprego, a disparada da inflação e dos juros e o derretimento do peso argentino frente ao dólar; exatamente o contrário de tudo o que prometera Macri na sua posse.
A vitória de Macri foi recebida nos meios econômicos e políticos conservadores e partidários do liberalismo econômico ortodoxo como uma promessa. Os epígonos da economia liberal plantavam na mídia o fenômeno Macri como a boa nova que salvaria a Argentina e, se seguida por aqui, salvaria também o Brasil.
O atual presidente da República, então deputado federal, Jair Bolsonaro, ao comentar minha nomeação para o Ministério da Defesa em 2015, deu a eleição de Macri como exemplo de mudança na Argentina e esperança para o Brasil.
A verdade é que a presidência de Macri consolidou-se como um grande fracasso. Três anos de crescimento negativo, uma ida desastrada ao FMI, e uma desorientação completa ao final do governo que deixou sua candidatura à reeleição ameaçada de substituição pela governadora de Buenos Aires Maria Eugenia Vidal.
Às vésperas das prévias e da humilhante derrota, Macri já não fazia a defesa de seu legado ou de seu futuro governo. Desalentado, apenas agitava o espantalho da volta de Cristina Kirchner ao poder.
O fantasma que ronda a ortodoxia liberal argentina não atende pelo nome de Kirchnerismo. É o velho peronismo que, entre êxitos e fracassos, permanece na memória do povo argentino com seus dias promissores de crescimento e bem-estar.
O primeiro governo de Perón (1946-1952) deu aos argentinos rápido crescimento da economia, elevação do padrão de vida material e espiritual dos trabalhadores, liquidou a dívida externa de 12,5 bilhões de dólares e tornou a Argentina credora de 5 bilhões de dólares perante o mundo. A França tomava dinheiro emprestado da Argentina e a Espanha escapava da fome pela generosidade do general Perón e de sua esposa Evita.
No governo Nestor Kirchner, a Argentina cresceu a taxas superiores a 8% e os trabalhadores receberam de volta uma parte do que tinham perdido nos períodos da ortodoxia liberal. É verdade que na fase final de Cristina Kirchner no poder a economia argentina desabou, mas nada que se compare aos maus momentos dos governos militares com Martinez de Hoz, ou a fase de Domingo Cavallo e seu corralito, espécie de confisco que limitava o saque em conta por parte da população.
O governo militar acumulou a humilhação nas Malvinas, sequestro, tortura e morte de opositores e a quebra de 400 mil empresas argentinas, tragédia que isolou e transformou em párias as forças armadas do país.
É esse o confronto de fundo que fragiliza as pretensões de Macri a um novo governo. Em eleição tudo, ou quase tudo, pode acontecer, mas é provável que a memória antiga do peronismo dê a Alberto Fernandez o trunfo definitivo contra seu adversário.
Quando não resta nada, resta esperança, e parece que Macri deixou de ser a esperança para os argentinos. Restaram, então, a memória, e cavalgando a memória, Alberto Fernandez, Cristina Kirchner e o peronismo.
A maldição das Tordesilhas
Aldo Rebelo
A capa da última edição da revista inglesa The Economist é uma denúncia contundente contra o Brasil.

A revista acusa o governo brasileiro de estar destruindo a maior floresta tropical do planeta, quando deveria protegê-la.
Quase em tom de ultimato, a publicação ameaça o Brasil com sanções e boicotes de consumidores e de países importadores de mercadorias produzidas na Amazônia.
A matéria da Economist é o ponto mais elevado da escalada recente promovida por ONGs, organismos multilaterais, mídia nacional e internacional e governos estrangeiros em torno do destino da grande floresta.
O aumento do desmatamento apontado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e a posterior demissão do pesquisador Ricardo Galvão, presidente do órgão, esteve no centro da polêmica.
Além disso, o governo cogitou abrir as áreas indígenas para a exploração de minérios, posição contestada por organizações ambientalistas e de direitos humanos.
A verdade é que as estatísticas sobre o desmatamento nem sempre separam o desmatamento legal, permitido por lei, daquele realizado ilegalmente. Apresentados sem essa distinção, os números repercutem na imprensa do Sul e do exterior como uma verdadeira tragédia.
Já a mineração em terras indígenas, prevista na Constituição e não regulamentada até hoje, é outra possibilidade a melindrar as sensibilidades dos defensores dos direitos humanos daqui e de além-mar, que não se dão conta de que essa exploração já é praticada de forma clandestina pelos próprios índios ou por garimpeiros a eles associados.
Os partidários do governo se defendem ensaiando um tímido discurso nacionalista de defesa da Amazônia e reproduzindo ataques às ONGs interesseiras financiadas por dinheiro externo.
A oposição liberal e de esquerda, em tons variados, faz coro com as pressões internacionais, na lógica nem sempre verdadeira de que o inimigo do meu inimigo é meu aliado.
A Amazônia continua sendo um desafio geopolítico, econômico, social e demográfico ainda não compreendido pelo Brasil, e essa incompreensão está na origem de seu atraso, subdesenvolvimento e vulnerabilidade.
Em 2001, o escritor e consultor de geopolítica e de defesa da ONU e do Ministério de Defesa da França, Pascal Boniface, publicou o livro Les Guerres de demain (As Guerras do amanhã, sem tradução no Brasil), e deu a um dos capítulos o título de Guerras do Meio Ambiente.
O cenário mais provável desta guerra, segundo Boniface, seria a Amazônia brasileira, quando potências internacionais interveriam com apoio da ONU, pretextando a negligência do Brasil na proteção da floresta.
Embora Boniface possa ter exagerado na projeção de seu cenário de guerra ambiental, o Brasil não pode subestimar o fato de a Amazônia se encontrar no centro de uma grande controvérsia internacional envolvendo o tema do momento, ou seja, meio ambiente e aquecimento global, com todas as suas implicações econômicas, comerciais e geopolíticas.
Enquanto escrevia este artigo, tomei conhecimento da publicação na prestigiada revista norte-americana de diplomacia Foreign Policy do texto do professor da Universidade de Harvard, Stephen M Walt, com o título provocador: Quem vai invadir o Brasil para salvar a Amazônia?
O professor Walt projeta o cenário imaginário para 2025, quando então os Estados Unidos dariam um ultimato ao Brasil para interromper o desmatamento ou sofreria uma intervenção militar.
Atenção: o presidente da República e seu ministro das Relações Exteriores se consideram aliados dos Estados Unidos e pela aliança estão dispostos a sacrificar os interesses geopolíticos e comerciais do Brasil. Estariam dispostos a também sacrificar a Amazônia?
A ausência e as deficiências do estado brasileiro na região estimulam as ações das organizações não governamentais nacionais e estrangeiras e a sua tentativa de tutelar as populações indígenas, aproveitando-se de sua situação de abandono e de suas enormes carências.
Some-se a isso o surgimento, mesmo que em caráter embrionário, de movimentos “separatistas”, mais como um clamor e denúncia diante do desprezo do poder central pela região.
O agrônomo paraense Ciro Siqueira, editor do blog Ambiente Inteiro é um dos que propõem o debate “vamos conversar sobre a independência da Amazônia”. Ciro redigiu uma espécie de manifesto, que busca inspiração na Cabanagem, movimento popular de caboclos, seringueiros, índios e fazendeiros, que na primeira metade do século XIX chegou a tomar a cidade de Belém e exigiu grande esforço do império para ser debelado.
Ele é da opinião que o confronto atual governo x ONGs, longe de enfraquecer estas, devolveu a elas o discurso da ameaça e do risco das florestas, com o qual atrai o dinheiro e a atenção para sua ação desagregadora.
Em um de seus textos, Ciro registra que ao propor o encerramento do antigo modelo de ocupação que implicava em desmatamento, as ONGs nada propõem para substitui-lo. Segundo ele, ao asfixiar a economia velha, os ambientalistas acabam com os empregos, as expectativas de vida e o futuro dos amazônidas, sem que se implante em seu lugar uma economia sustentável. O resultado é necessariamente a miséria e o conflito social.
Penso que pesa sobre a região amazônica o que denominei maldição de Tordesilhas, traduzida na incapacidade do Brasil de incorporar plenamente ao seu território a área que separava os domínios de Portugal e Espanha pelo tratado de 1494, e que a tenacidade portuguesa veio a integrar à base física do nosso país.
Linha de Tordesilhas
Quase tudo no Brasil permanece a leste de Tordesilhas (linha imaginária que corta o país de norte a sul, a partir de Belém, no estado do Pará, até Laguna, em Santa Catarina): a economia, a infraestrutura, a população, a ciência, quase tudo está a leste.
Principalmente no Norte, restou o que o historiador Craveiro Costa chamou de deserto ocidental, referindo-se à Amazônia. Aí vive a população com a menor expectativa de vida do país, com a menor taxa de saneamento básico, com o maior número de escolas sem água e sem luz.
Aí estão capitais de estados que não têm ligação rodoviária ou ferroviária, aí está ainda a completa ausência de infraestrutura para o desenvolvimento, principalmente as infovias. Uma de suas capitais, Boa Vista, sequer está ligada ao Sistema Nacional de distribuição de energia, dependendo da vizinha Venezuela ou de soluções locais.
A defesa da Amazônia e sua plena integração ao Brasil exige um governo de união nacional, que coesione todos os brasileiros e a inteligência do país frente às incompreensões, as cobiças e interesses externos.
Um governo que aposta na divisão dos brasileiros está exposto à impotência interna e ao isolamento externo, e, portanto, limitado no desafio gigantesco de superar a maldição de Tordesilhas e fazer de uma Amazônia desenvolvida e socialmente equilibrada parte indissolúvel da geografia e da sociedade nacional.
*Aldo Rebelo é jornalista, foi ministro da Coordenação Política e Relações Institucionais; do Esporte; da Ciência e Tecnologia e Inovação e da Defesa nos governos Lula e Dilma.
Chimba
Nos despedimos hoje de uma das mais carismáticas figuras que já passaram pelas redações em Porto Alegre: Ademir Fontoura, o Chimba, que morreu aos 71 anos. Foi como ele pediu, com muito samba e pouco choro.
Foi numa roda de samba que o conheci, no Beco do Salso, no Partenon, a priscas eras. .
Ele teria 15 anos, namorava minha prima Santa. Mas, quando o samba pegava, o que ele queria mesmo era ficar na volta, de olho mas mãos do Valtinho, mestre do pandeiro, com quem aprendeu a arte.
Nessa época, empregou-se como tipógrafo aprendiz na Livraria do Globo, dominou rapidamente o ofício e passou a diagramador.
Foi parar na redação da Zero Hora, num momento muito especial da evolução do jornal. Pelo seu humor, seu carisma e sua simplicidade tornou-se uma referência.
Viveu integralmente um período romântico, em que uma redação aguerrida e plural afirmou o jornal, desbancando a hegemonia conservadora do Correio do Povo e da Caldas Junior. Uma história a ser contada.
Um dos marcos desse período eram os sábados no Porta Larga, um bar-mercearia que nunca fechava, ao lado do jornal. Morando em São Paulo, era lá que eu tinha contato com o jornalismo de Porto Alegre.
João Aveline, Luiz Pilla Vares, Danilo Ucha, Juarez Fonseca, José Antonio Ribeiro, o Gaguinho, Melchiades Stricker, Glênio Peres, Wanderley Soares, Sérgio Quintana, Anilson Souza, Moisés Mendes,Luiz Fonseca, Jorjão… e o Chimba, obviamente.
São nomes que lembro, além das fotos que guardo de uma memorável tarde em que apareceu ninguém menos do que Paulinho da Viola. (O Chimba aparece atrás com a camisa aberta e o pandeiro esperando enquanto o Gaguinho e Paulinho da Viola afinam os instrumentos).

Chimba foi um dos testemunhos-chave desse período que se apagou tragado por tempos burocráticos, uniformizadores, oficiosos, faltos de alegria genuína.
Se tivéssemos noção de história, alguém teria gravado suas memórias.
Para a história do jornalismo
O livro do Gilberto Pauletti* se encaixa com outras duas peças imprescindíveis para montar a historia do jornalismo no Rio Grande do Sul, quando a historiografia estiver interessada nisso.
A primeira delas é o “Astronauta de Pandorga”, memórias de Rivadávia de Souza, que cobrem dos anos 1930 a 1960, quando os jornalistas, mesmo os mais brilhantes, eram penduricalhos do poder.
A outra é “Arca de Blau”, do Carlos Revebel, que foi um dos primeiros a se dedicar exclusivamente ao jornalismo.
Pauletti é da geração que surge nessa transição, entre Rivadávia e Reverbel.
Ele estava na primeira redação formada por jornalistas com dedicação exclusiva, na Folha da Manhã, em 1972, sob a direção de José Antônio Severo.
Essas três peças não formam o quadro, outras já escritas e a escrever haverão de completa-lo. Mas elas são imprescindíveis para entendê-lo. Além de serem leituras deliciosas.
*De Cruz Alta ao Irã – Memórias de um Jornalista, de Gilberto Lenuzza Pauletti, Já Editora, 2019.